O enfrentamento de jornadas prolongadas de trabalho, os gargalos na infraestrutura da saúde pública e a fragilidade das políticas voltadas ao bem-estar profissional integram uma cadeia com impacto direto na saúde mental dos médicos. No Rio Grande do Norte, onde o cenário negativo soma-se a uma realidade nacional, cerca de 30% a 40% desses profissionais já relataram ter sofrido com sintomas de ansiedade ou depressão.
É o que apontam dados preliminares de pesquisa realizada pelo Conselho Regional de Medicina do Estado (Cremern), de março a abril de 2023, cedidos à reportagem da TRIBUNA DO NORTE. A previsão é que o levantamento oficial seja lançado ainda no primeiro semestre deste ano.
No total, o estudo ouviu 489 médicos das redes de saúde pública e privada. De acordo com a presidente da Câmara Técnica de Psiquiatria do Cremern, a médica Ana Lígia Nascimento, embora o levantamento ainda esteja em fase de consolidação e os relatos não sejam necessariamente de diagnósticos, boa parte dos entrevistados afirmam ter tido sintomas de ansiedade e depressão em algum momento na carreira. Ao todo, o Rio Grande do Norte conta com 13.069 médicos registrados e 8.574 ativos.
Ao observar os fatores que contribuem para o adoecimento dos profissionais, seja no Estado, ou em uma maior abrangência, ela chama atenção para a pesquisa realizada pelo Research Center da Afya. Conforme apontam os resultados, o deslocamento intermunicipal para quem atua em mais de um hospital, a frustração com as condições de trabalho, acrescida da sobrecarga de problemas do sistema de saúde, favorecem o surgimento de casos de burnout, ansiedade e depressão nos profissionais. Em média, 2 a cada 3 médicos do país convivem com a síndrome do Burnout, caracterizada pela exaustão extrema, estresse e esgotamento físico devido ao desgaste no trabalho.
“Nós temos alguns médicos fixos no interior, mas não há uma carreira de Estado para efetivar uma programação diferente da que temos hoje, a fim de favorecer a fixação dos profissionais nos municípios a partir de um concurso e com exclusividade” complementa a médica Ana Lígia Nascimento, para quem a medida é uma das principais demandas para melhorar a vivência dos médicos e estabelecer vínculos com a localidade. Aliado a isso, a legislação que regulamenta o trabalho da categoria ainda está vulnerável.
De acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a jornada de trabalho no serviço público deve estar limitada a 60h. No Rio Grande do Norte, especialmente, o Regime Jurídico Único do Estado, complementado pelos Planos de Cargos e Carreira da Saúde e dos Médicos de cada categoria (ex: médicos de Natal), é o responsável por regulamentar a carga horária no exercício da medicina. Na prática, contudo, a presidente da Câmara Técnica de Psiquiatria do Cremern ressalta que muitos profissionais que atuam na rede privada e outros que abarcam serviços em consonância com o vínculo na rede pública, acabam prolongando as horas de atendimento.
Com uma análise semelhante, o presidente do Sindicato dos Médicos do Estado (Sinmed/ RN), o médico anestesiologista Geraldo Ferreira, aponta que o trabalho dos profissionais intermediado por empresas tem suprimido direitos e prejudicado a qualidade de vida da categoria. “Tudo isso, aliado a uma carga horária excessiva e uma cobrança da sociedade, tornam o médico um viciado em trabalho. O trabalho, [por sua vez], está precarizado e a remuneração tem caído”, defende. Em boa parte dos hospitais, denuncia, os profissionais precisam atuar por meio do ‘improviso’ por conta da falta de estrutura e insumos.
O médico psiquiatra Ernane Pinheiro, presidente da Associação Norte-Rio Grandense de Psiquiatria (ANP/RN), vai um pouco mais além e observa que, fora as condições de trabalho, o adoecimento mental dos médicos acompanha uma mudança de estilo de vida da sociedade. Em outras palavras, a rotina da categoria é marcada pela ausência de exercícios físicos, poucas horas de sono e falta de sociabilidade. “A origem do adoecimento é multifatorial. Nunca é um fator só, ou dois”, destaca.
Políticas de saúde mental ainda são frágeis
Face aos desafios que precarizam o exercício médico no Estado, Ana Lígia Nascimento reconhece o trabalho realizado pelos núcleos de atenção ao servidor, mas argumenta para a necessidade de políticas públicas mais estruturadas. Mesmo durante a pandemia da Covid-19, enfatiza, a rede de proteção nesses casos não foi reforçada. “Existem os núcleos estaduais e municipais de atenção ao trabalhador, que tem os profissionais da saúde mental, mas um programa que chegue realmente aos trabalhadores que estão na ponta e estão precisando, ainda há uma grande fragilidade”, complementa.
Questionada pela reportagem da TRIBUNA DO NORTE sobre as iniciativas voltadas à promoção do bem-estar dos médicos e demais servidores da saúde, a Secretaria de Estado de Saúde Pública do Estado (Sesap/RN) disse que a gestão tem investido nas equipes dos Núcleos de Atenção à Segurança e Saúde do Trabalhador (NASSTs). Por hora, existem 12 NASSTs em unidades de saúde e dois em processo de implantação.
De acordo com a pasta, os espaços contam com profissional especializado em saúde mental (psicólogo/psiquiatra), que promovem ações voltadas à saúde mental dos servidores e acompanham os casos dos que estão acometidos por transtornos mentais. “Entre as atividades realizadas, encontram-se ações de vigilância em saúde do trabalhador, bem como ações de promoção à saúde mental por meio de atividades de educação permanente e estímulo à prática de um ambiente de trabalho saudável”, afirma a Sesap.
Mas, no Rio Grande do Norte, a pasta não é a única a promover iniciativas para melhorar a carreira médica. Geraldo Ferreira esclarece que a entidade tem acompanhado a situação da saúde mental da categoria há mais de 10 anos. Em 2016, em especial, o Sinmed/RN promoveu a 1º edição do Programa Qualidade de Vida. O objetivo foi acionar uma assistência aos médicos a partir do acompanhamento com uma equipe formada por nutricionista, educador físico e uma psicóloga.
Ao todo, a iniciativa perdurou por quase dois anos, mas não teve a adesão esperada de seu público-alvo. Em 2022, com o surgimento de novos casos de suicídios entre os médicos, uma 2º edição foi realizada, mas novamente sem significativa procura “Nos causa uma maior preocupação, porque reconhecemos que o problema existe. É alto o nível de médicos deprimidos. Começa com a síndrome do burnout, um cansaço exagerado, ansiedade e depressão e pode gerar um suicídio. Nós divulgamos, mas não houve a procura esperada”, destaca Geraldo Ferreira.
Problema pede mudanças de estilo de vida
De acordo com o estudo do Research Center Afya, 47%dos médicos brasileiros já enfrentaram diagnóstico de transtorno de ansiedade e 46% de depressão. Segundo o presidente do Sinmed/RN, em muitos casos, os profissionais acabam se automedicando e não procuram ajuda. Isso porque, uma vez atuando em ambientes com livre acesso a medicamentos, a dependência química também é mais propícia. Ele adverte, no entanto, que o Sinmed/RN não sabe com precisão o que gerou a falta de procura dos médicos pelo Programa de Qualidade de Vida realizado recentemente pelo Sindicato.
Devido ao custo e a falta de retorno, a iniciativa foi suspensa, mas há possibilidade de um possível retorno. Geraldo Ferreira chama atenção, contudo, para a necessidade do Estado ampliar o diálogo junto às entidades médicas e priorizar a pauta de saúde mental. O médico Ernane Pinheiro, por sua vez, reitera as lacunas da políticas estaduais e municipais, mas acrescenta que a mudança de estilo de vida é o passo inicial para assegurar a redução de casos de problemas mentais na categoria.
A reportagem da TRIBUNA DO NORTE questionou a Sesap sobre o número de médicos afastados por problemas de saúde mental nos últimos quatro anos. Em resposta, a pasta informou que o início do monitoramento dos casos começou a partir de 2022, mas não forneceu os dados até o fechamento desta edição. Ainda, conforme o Órgão, antes do início dos levantamentos poucas localidades contavam com NASSTs.
Crédito da Foto: Alex Régis
Fonte: TRIBUNA DO NORTE