“Batalha do Coliseu conscientiza e fortalece. Conhece? – Conhece!” Quem se aproxima certamente distingue ao longe essas palavras de ordem. É assim que o mestre de cerimônia (MC), apresentador do evento, chama o público para o envolvimento com o duelo que está por vir. A sequência de perguntas e respostas é o aquecimento para que a audiência se sinta convidada a vibrar no ritmo das batidas que servirão como base para a disputa. “Coliseu” é o apelido dado ao anfiteatro localizado nas proximidades do Setor 2 da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde as “batalhas” entre os rappers acontecem. Alguém deu esse nome ao lugar fazendo referência ao clássico monumento de Roma.
Em 2018, um grupo de jovens, entre eles Aldacy Júnior, mais conhecido como Cafeína, estudante de Audiovisual da UFRN, percebeu que a Universidade abrigava um silêncio noturno cortado apenas pelas risadas e conversas dos estudantes. Dessa percepção, nasceu a ideia de transformar o espaço vazio em um local de movimentação artística. Entrou em contato com algumas páginas nas redes sociais de hip-hop em Natal e deu início a uma reunião que passaria a acontecer com frequência. Os amigos em questão hoje dão nome a um coletivo musical intitulado Estar Black e, há muito tempo, têm sido os responsáveis por organizar e dar prosseguimento à Batalha do Coliseu.
Ao contar sobre o nascimento desse grupo, Cafeína explica que o principal objetivo era o de fazer denúncias às questões de combate na luta contra o racismo cotidiano e estrutural. O jovem, de cabelo black power e pente garfo preso ao volume dos seus fios, mostra em sua identidade a certeza de quem é. “Esse projeto é, por si só, uma provação pessoal. É coisa de preto. Existem esses problemas que a gente enfrenta pessoalmente e os que a gente enfrenta tentando fazer cultura. E é massa porque a gente percebe que os espaços vão sendo abertos se a gente meter a cara e fizer”, estabelece.
Talvez por entender a raiz da dificuldade em encontrar espaços e ser ele mesmo um admirador desta cultura, por vezes excluída, é que Olavo Luiz, servidor da Superintendência de Comunicação (Comunica) da UFRN, resolveu abraçar a ideia. Ele é o braço institucional que ajudou o coletivo a se tornar também um Projeto de Extensão. “A Batalha já existia como uma manifestação cultural dentro da Universidade. Com a época da pandemia, todo mundo ficou mais em casa, não tinha como fazer no campus. No retorno das atividades presenciais foi que eu conheci Cafeína. Ele trouxe a demanda, eu entrei como essa ponte”, diz Olavo.
Além de possibilitar o aumento do alcance do evento, a criação da atividade de extensão está alinhada à formação de um futuro grupo de pesquisa sobre os temas que mobilizados pelo Coliseu. De acordo com Cafeína, as reuniões acontecerão uma semana após cada duelo. “O grupo de pesquisa é como se fosse um braço da Batalha. Ela é a parte cultural do projeto e essa proposta é a parte acadêmica, de pesquisa científica. A gente vai oferecer o espaço pra pessoa se expressar e exercitar a mente”, explica.
De acordo com Olavo, o potencial da proposta é trazer uma linguagem marginalizada para dentro do ambiente acadêmico, centrado nas disputas, no grupo de pesquisa e em algumas capacitações. “O desejo de interiorizar também é muito importante, a saída dos muros da Universidade para cumprir o tripé em que ela se baseia: ensino, pesquisa e extensão”, acrescenta. Para o servidor, que atua na Rádio Universitária (FMU) – unidade vinculada à Comunica –, a partir do momento em que pessoas que nunca entraram no ambiente de uma universidade federal têm a chance de acessá-la, já existe uma diferença sendo plantada.
Batalhas e batalhas
No teatro inacabado onde os MCs se encontram, a máxima da noite consiste em responder a uma pergunta: “Quem rima melhor?”. A coroação não necessita de um grande troféu ou prêmio. Muitas vezes, a folha de papel que serve como ficha para acompanhar os resultados das disputas é o símbolo maior da vitória. Porém, além da certeza que carregam para casa nesse pequeno rabisco, os vencedores recebem a oportunidade de gravar suas canções. “Algumas estão sendo gravadas na Escola de Música (EMUFRN), outras no nosso estúdio. A gente vai fazer uma coletânea dessas músicas dos MCs, que também vai servir para divulgar e promover a arte dos caras”, conta Cafeína.
Embora o ambiente seja predominantemente masculino ainda, meninas como Gabi Botelho são exemplo de que há abertura para todas as tribos, gêneros e ideias. Ela é uma das poucas entre os mais de 20 envolvidos, incluindo os cinco organizadores que fazem a coisa andar, mesmo assim tem seu lugar de referência. Como espaço de congregação de culturas, não pode faltar também o olhar de fora e é um pouco disso que faz Selasi Koblah Ayivi, estudante de Engenharia, natural de Gana, que colabora com o grupo como um dos articuladores em alguns projetos, a exemplo do que vem se desenrolando junto à EMUFRN.
A pandemia pode ter causado um hiato na prática dos encontros, mas não foi suficiente para enfraquecê-los. Isso se percebe ao olhar os bancos lotados do anfiteatro, cheio, não apenas de estudantes que por ali passavam, mas de pessoas que foram atraídas pela possibilidade de compartilhar sua arte. MCs, que em outros contextos nunca haviam pisado a Universidade, compõem o arcabouço humano que resulta do processo de debate e ocupação desses locais.
“Esses espaços que a gente está ganhando são muito importantes e foi o projeto de extensão que trouxe isso. O diálogo com a pró-reitoria, com os lugares que antes não conheciam a gente. Então, o vínculo institucional é importante para profissionalizar o negócio. Para dizer ‘essa aqui é uma iniciativa séria e agora vamos ouvir o que eles têm a dizer’”, completa Cafeína.
Para Ikaro Sousa, o Boka, estudante de produção cultural no Instituto Federal de Ciência, Tecnologia e Inovação do (IFRN) e um dos produtores do evento, o movimento transformou sua vida. “Fui abraçado pelo hip-hop e capaz de enxergar um novo horizonte. Eu estava em um curso que faz organização de empresas e coisas afins e a batalha me disse que eu poderia fazer a mesma coisa, mas com algo mais enriquecedor para mim, que seria a cultura. Hoje, está me obrigando a me tornar mais profissional e humano, além de entender mais o quão transformador é o hip-hop. Com esse nosso novo passo, que é ser um projeto de extensão, estamos enxergando, novamente, um horizonte maior, além da possibilidade de poder ter mais gente contribuindo de forma objetiva para transformar nossos encontros em uma das maiores e mais importantes ações extensionistas que passaram pela UFRN”, reforça Boka.
Embora a noção de batalha carregue a ideia de que haja um perdedor, assistindo de perto o espetáculo é fácil notar que o princípio em comum não consiste em duelar. Antes de qualquer coisa, paira no ar o poder criativo da palavra, do pensamento veloz, da rima perfeita e da métrica rara. Um movimento que existe para aproximar, e não segregar. Os que duelam apertam suas mãos ao início e se abraçam ao final. Se existe algum tipo de briga, ela carrega o sentimento familiar de uma disputa entre irmãos. Pode ser uma sensação deliciosa a de vencer, mas isso não anula a necessidade de torcer por alguém a quem você olha como seu igual. No fim das contas, a luta não é entre os gladiadores do Coliseu, mas contra a ferocidade do mundo lá fora.
Fonte: Agecom/UFRN