Chovia torrencialmente. Eu, puto da vida depois de uma derrota do ABC, dirigi-me ao recanto dos “alcoólatras históricos” da cidade do Natal: o Beco da Lama. Ao chegar lá, depois de fazer uma pesquisa acerca do preço da cerveja, escolhi o antigo Bar de Nazi, um dos mais célebres do local, para me acomodar. A garçonete, que se assemelhava a um sapo intumescido, agraciou-me com uma loira assaz gelada, a qual devorei em menos de dez minutos. À medida que consumia a cerveja, fui lembrando do último gol sofrido pela minha equipe. Perder para o América no nosso próprio campo foi um golpe no estômago. Porém, não fossem os gracejos dos gabolas torcedores alvirrubros, minha recuperação poderia até ser mais rápida – Deus do céu, quem me dera!
Passados trinta e poucos minutos, já tinha consumido mais quatro cervejas. O sapo intumescido, por sua vez, deixou de existir. À minha frente, delineava-se uma espécie de Vera Fischer, só que com pernas mais torneadas e traseiro mais arrebitado. Alguém já pensou em ser atendido por uma mulher desse quilate?! A chuva, que recalcitrava em diminuir, não era mais um percalço. Num átimo, peguei um guarda-chuva – sabe lá Deus de quem era – e fiquei, à imitação da coreografia de Gene Kelly, dançando aos regozijos em frente ao dilapidado boteco, para deleite dos ébrios que ali estavam. Quando o espetáculo terminou, fui ovacionado de pé, como um genuíno artista.
Pouco depois, sentei-me ensopado e pedi outra cerveja – não percamos a conta: era a de número seis. Nessas alturas a derrota do ABC não figurava no meu consciente. Minhas expectativas eram outras. Anelava, então, uma aventura sexual, de preferência com uma mulher mais velha. Não sou psicólogo, mas acredito que a ausência da figura materna na minha criação determinou esse, digamos, excêntrico gosto. Apesar da insistência, Vera não quis nada comigo, mesmo eu dizendo que era dono de uma rede de postos de gasolina no interior do estado – os bêbedos, à semelhança dos políticos, têm uma vocação fantástica para mentir e falar bonito; entretanto, muitas vezes não convencem nem suas próprias mães. Malogradas minhas tentativas, resolvi pedir a conta e sair em busca de outro boteco.
Uma pergunta surgiu à minha mente: aonde ir? O centro da cidade oferece um amplo leque de opções no que se refere a bares, mas poucos deles se relacionariam com o meu desiderato. Depois de seis cervejas no quengo, demorei muito tempo a pensar no Bar do Coelho. O propósito era faturar uma coroa, e esse estabelecimento é notório pelas freguesas em estágio de menopausa. Não pensei nem duas vezes: para lá fui – e com gosto de gás!
A música ambiente, pelo pouco que lembro, era bastante aprazível. A chuva continuava a não dar trégua. Sentei próximo a uma mesa com três mulheres, à primeira vista desejosas de uma baita noitada. Vociferei para o garçom: “Ei, traga-me uma dose do melhor uísque que vocês tiverem nesta joça!” Ora, todo indivíduo borracho tem a pecha de se achar rico e intrépido. Percebi que os olhos das cocotes cintilavam. O garçom, tomado por um sentimento parecido, me atendeu com polidez digna de um gentleman. Em menos de um minuto a bebida pedida chegou à minha mesa. O primeiro trago quase não descia. O segundo, em contrapartida, desceu uma beleza. Isso vem a corroborar um argumento que tem respaldo entre os especialistas em bebidas alcoólicas “quentes”: o gole inicial é sempre mais complicado; serve para amaciar a garganta, preparando-a para o que vier pela frente.
A partir da terceira dose, bolei uma estratégia para me aproximar das três donzelas. Puxei bruscamente minha cadeira para junto da mesa delas. Até aí tudo bem. No entanto, quando comecei a falar, elas perceberam que o papo resumia-se à narração das minhas supostas proezas sexuais, em alto e bom som. A bebida já havia me levado para lá de Bagdá. Elas se entreolharam e começaram a cochichar. Depois de alguns minutos me esforçando para compreender os sussurros, um grito feminino desviou minha atenção: “Quero saber se tem algum homem nesta birosca! Hoje vou dar ao primeiro que se candidatar!” Não contei conversa e, com alguma dificuldade, bradei: “Eu me candidato agora, minha querida! Sempre fui apaixonado por você!” Dito isso, desloquei-me até a outra extremidade do bar atrás do meu troféu, deixando sozinhas as garotas com as quais flertara. A última coisa da qual me lembro foi ter abraçado, banzeiro, a histérica mulher.
Acordei com um gosto de merda na boca. Uma vertigem indescritível. O local em que eu estava necessita de uma descrição, mesmo que breve. Façamo-la. Um quarto fétido, com aproximadamente 3m2; o cheiro de sêmen, cigarro e suor empestava o ambiente. As paredes algum dia devem ter sido brancas. Não havia cama. A minha companheira e eu estávamos deitados sobre um lençol no chão de cimento batido, cobertos com andrajos. E que companheira! Acredito que ela pesava mais ou menos 95 quilogramas e, para usar um eufemismo, tinha idade avançada. O vômito cobria-lhe quase toda a face. Quando me apercebi que tinha dormido com uma versão piorada da “Vera Fischer” descrita acima, abri de mansinho a porta do cortelho – só Deus sabe o que seria de mim se aquilo acordasse!
Logo após colocar a cabeça do lado de fora, pude notar que estava numa alcova de bordel. Antes que o meu sonolento raciocínio esboçasse qualquer reação, uma voz esganiçada de mulher assim se pronunciou: “Está pensando que vai sair da minha casa sem pagar, ô filho da puta?! Nem sonhando!” Infelizmente, naquele momento eu ainda não tinha voltado ao meu estado normal. Tentei me explicar para a esquelética anciã, em vão. Ela não entendia nada do que eu falava – idioma de bêbado é tão ininteligível quanto trigonometria.
“Jorjão, vem cá!”
Defronte a mim surgiu um indivíduo paquidérmico – logo ao contemplá-lo, suscitei, no pensar, a hipótese de haver algum hipopótamo ou rinoceronte em sua árvore genealógica –, careca e com ares de poucos amigos. Suas mãos lembravam duas marretas, prontas para triturar seus oponentes. O tamanho dele também assustava: cerca de 2 metros, algo semelhante a um poste. Quando me dei conta, Jorjão já segurava minha carteira e limpava nela o sangue de suas mãos. Assim que se apoderou do dinheiro, contudo, o balofo arremessou-a em minha direção e disparou: “Para sair, use a porta à sua esquerda, cabra sem-vergonha. E rápido! Faça o favor de nunca mais voltar aqui!” Deus foi piedoso comigo; outra porrada daquela decerto estraçalharia minha cabeça. Ao me retirar, pude ouvir a estridente gargalhada da proprietária do cabaré – na certa, deliciando-se com a quantia que havia, sem esforço algum, angariado; a noitada custou bem mais caro do que deveria.
Ao chegar à rua e limpar o sangue que me escorria do nariz, em meio ao crepúsculo matutino, deparei com uma cena que fez com que eu desenterrasse um assunto há pouco reservado ao olvido. “Eu sou América e tenho orgulho de ser.” Ouvi um bêbado balbuciar parte de uma famigerada melodia. A dor da derrota veio de novo a lume. Tentei, debalde, conter as lágrimas que desciam dos meus olhos. Um alvinegro sorumbático, de cara rachada e de ressaca a andar por uma ruela que nunca antes vira, numa lânguida busca pelo caminho de volta para casa. Pelo menos os pingos do que restava da chuva arrefeceram a sensação lancinante que acometia meu peito e o mau cheiro que exalava das minhas vestes.
*Texto originalmente escrito em 2005, quando o América ainda era páreo para o ABC. Hoje, como sabemos, a realidade é bem diferente.
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