A reprodução de papéis no ambiente familiar sobre o que é ser menina e ser menino pode difundir erroneamente um estereótipo de que garotas não gostam ou não entendem de tecnologia e matemática. Esse clichê acompanha as meninas por toda a adolescência e as segue até dentro das universidades, onde os cursos das áreas de Saúde e Ciências Humanas recebem a maior parte das alunas, enquanto nos cursos da área de STEM (acrônimo em inglês para Science, Technology, Engineering and Mathematics) a prevalência é masculina.
O baixo percentual de participação feminina nos cursos inseridos nas Ciências Exatas, Tecnologia e Engenharias é um fenômeno mundial e observado em outras universidades. Na UFRN, o quadro de alunos regulares após o Sistema de Seleção Unificada (SiSU) 2023 mostra que o curso de Tecnologia da Informação, por exemplo, tem sete vezes mais homens do que mulheres, sendo 1.608 homens para apenas 228 mulheres, conforme consulta realizada em 8 de março no Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas (Sigaa).
Outros cursos como Engenharia de Software (123 homens e 24 mulheres), Engenharia de Computação e Automação (331 homens e 66 mulheres), Engenharia Elétrica (472 homens e 92 mulheres) e Engenharia Mecânica (306 homens e 54 mulheres) têm pelo menos cinco vezes mais homens do que mulheres em suas salas e laboratórios. Engenharia Mecatrônica tem 143 homens estudando e apenas 22 mulheres, ou seja, um público masculino que chega a ser 6,5 vezes maior do que o feminino.
O fenômeno da baixa participação de garotas na STEM ainda pode encontrar barreiras durante e após a graduação. “É um ambiente permeado de preconceitos”, resume a coordenadora do Projeto Mulheres na STEM, professora Mônica Pereira, do Departamento de Informática e Matemática Aplicada da UFRN. “E isso acaba desestimulando a participação e permanência das garotas nos cursos tecnológicos”, aponta.
No Mulheres na STEM, um grupo de pesquisadoras investiga as percepções sobre discriminação de gênero no ambiente de atuação (estudo/trabalho) na área de exatas ou engenharias, analisando suas vivências e relações interpessoais. O resultado das pesquisas desenvolvidas no projeto ainda não foi totalmente divulgado, mas alguns apontamentos foram publicados, como o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da aluna de Engenharia de Computação Mariana Camila Cesário de Queiroz, orientanda da professora Mônica.
O trabalho de Mariana traz uma análise exploratória sobre as percepções de gênero no ambiente acadêmico do Centro de Tecnologia (CT), Escola de Ciência e Tecnologia (ECT), Centro de Ciências Exatas e da Terra (CCET) e Instituto Metrópole Digital (IMD) da UFRN, analisando o seu impacto dentro do ambiente de estudo.
Na análise de Mariana, o que pode explicar esse fenômeno global na área de ciência e tecnologia é a chamada segregação horizontal, que é definida como a concentração de mulheres e homens em ambientes diferentes, com influências diversas, o que os levam a tomar decisões persuadidas pela família ou pela educação. “Assim foram construídas idealizações do que seriam competências masculinas e femininas, baseando-se em um determinismo biológico, induzindo as mulheres a se sentirem mais capazes em áreas mais relacionadas ao cuidado, ao sentimentalismo e aos bons modos”, salienta.
Segundo a estudante, essas idealizações reforçam um estereótipo que causa nas meninas um sentimento de incapacidade para ocupar espaços nas ciências. “Essa estrutura social está reproduzida, em uma escala proporcional, também no ambiente universitário”, ressalta a pesquisadora. No Brasil, apesar de as mulheres terem mais acesso ao ensino superior que os homens, elas representam apenas 13,3% dos alunos nos cursos de tecnologia e computação e 21,6% nos cursos de engenharia (IBGE, 2021). No resto do mundo, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco/2021), as mulheres representam apenas 28% dos graduados em engenharia e 40% dos graduados em ciência da computação e informática.
Também participam do projeto Mulheres na STEM as pesquisadoras Viviane Brito Nogueira, doutoranda em Ciências da Saúde, biotecnologista pela UFAM e mestre em Ciências da Saúde pela UFRN; Izabela Lima Paiva, graduada em Farmácia pela UFRN e mestre em Neurociências pela UFRN e Uppsala University, na Suécia; e a servidora técnico-administrativa Allana de Carvalho Araújo, mestre em Psicologia e psicóloga pela UFRN.
Perfil
A pesquisa apresentada também aponta que, apesar de o número de vagas nas universidades ter sido ampliado nos últimos anos, os números de mulheres nos cursos tecnológicos não apresentaram crescimento significativo. Outro fato observado foi que existe uma tendência de as mulheres escolherem os cursos que possuem menos disciplinas de cálculo ou de computação, como é o caso da Engenharia Têxtil e Ambiental.
Diante disso, afirma a professora Mônica Pereira, pode-se constatar que o fator social construído com base em estereótipos que inferiorizam as mulheres e transfere toda a capacidade de cursar ciências exatas, engenharias e tecnologia aos homens ainda é bastante determinante na sociedade atual. “Uma vez que o cenário observado ainda não apresenta grandes avanços com relação à presença de mulheres na área, é necessário pensar em formas de ir contra esse padrão que vem se repetindo desde muito tempo”, completa.
Barreiras
A professora chama a atenção para o fato de que as mulheres ainda encontram muitas barreiras no mercado profissional, e com as formandas que seguem carreira nas áreas de Ciências Exatas, Tecnologia e Engenharias não é diferente. “Elas também são preteridas nos processos seletivos, demitidas quando se tornam mães, recebem menos promoções, cargos de chefia e os salários continuam mais baixos. As mulheres lidam com o desestímulo desde a infância: meninas são encorajadas a brincar de boneca, cuidar da imagem e dos outros. Já os meninos são estimulados desde cedo a realizar atividades que envolvem aventura e raciocínio lógico”, diz.
Mônica acredita que conscientizar a sociedade e construir um ambiente familiar e escolar livre de estereótipos e preconceitos, abordando o tema em diferentes fóruns e insistindo para que cada vez mais os homens se envolvam na discussão, também contribuam para a solução do problema. “Além disso, devemos assegurar que as empresas e instituições de ensino tenham regulamentos claros e efetivos de combate ao assédio. É papel também das instituições públicas e privadas garantir que os ambientes de estudo e trabalho sejam plurais e que a diversidade seja respeitada”, defende.
Leia a primeira parte desta série em Sonhos no espaço: as meninas da tecnologia e ciência buscam o seu lugar
Metas da ONU
Alcançar a igualdade de gênero e empoderar mulheres e meninas é um dos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) das Nações Unidas (ONU). É o Objetivo 5, dos 17 desafios que buscam, entre outras iniciativas ambiciosas, um mundo com menos discriminação de gênero e mais espaço para mulheres. O ODS 5 também reforça a necessidade de se aumentar o uso de tecnologias de base para meninas, em particular as tecnologias de informação e comunicação, para que se consiga equidade entre homens e mulheres.
A proposta da ONU de busca da igualdade se concretiza como meta quando são adotadas políticas que inspirem meninas a estudarem matemática e ciências na fase escolar, ao mesmo tempo em que combate preconceito contra as futuras profissionais das áreas tecnológicas. Alinhado a esse pensamento e o reforçando, o ODS 4, que se refere a uma educação inclusiva, enfatiza a necessidade de, até 2030, serem eliminadas as disparidades entre gêneros na educação e garantidas a igualdade de acesso e oportunidades em todos os níveis de ensino e formação profissional.
Na UFRN, alguns grupos de pesquisa, em sintonia com os ODS, dedicam-se a estudar o tema, ao mesmo tempo que lutam por mais representatividade feminina nas ciências. No dia 9 de março de 2023, a UFRN foi uma das instituições de ensino certificadas com o Selo ODS Educação em cerimônia realizada na Associação dos Docentes da Universidade de Brasília (ADUnB), em Brasília. Esse Selo foi criado para estimular a participação efetiva das instituições no alcance das metas da Agenda 2030.
Nessa primeira edição, 17 instituições de ensino no país foram certificadas com um total de 241 impactos sociais, por meio de 126 projetos desenvolvidos por unidades de ensino públicas e privadas. A UFRN demonstrou atender aos critérios nas áreas de ensino, pesquisa, extensão e gestão, promover atividades e espaços de discussão sobre Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), além de contribuir para a melhoria do ODS 4, que busca nada menos do que uma educação de qualidade, com acesso e oportunidades iguais para todos.
Fonte: Agecom/UFRN