O quanto da identidade brasileira é, de fato, nossa? O que significa ser latinoamericano? Frequentemente, estamos expostos ou agindo como propagadores de estigmas, preconceitos, estereótipos e práticas culturais e sociais que se alimentam de uma herança colonial, consequências de um longo período em que países colonizados existiam como uma extensão forçada de seus colonizadores. A discussão sobre o combate à essa herança não é nova, tampouco se limita aos fóruns de internet, mas se entrelaçam a apontamentos e estudos de historiadores, antropólogos e sociólogos, entre outros cientistas, e fazem parte do exercício de um olhar “descolonizador”.
Mas o que seria esse olhar ou, mais especificamente, como praticá-lo? Para Breno da Silva Carvalho, professor do Departamento de Comunicação Social (Decom) da UFRN, uma das possibilidades é na realização de práticas que questionem uma suposta subalternidade – isto é, um estado ou sensação de dependência, de inferioridade – atribuída a países como os da América Latina. Ou seja, o ato de descolonizar pode se explicar como sendo o oposto de colonizar ou, mais que isso, que busca libertar a produção de conhecimento da episteme eurocêntrica.
“Decolonialidade” ou “pensamento decolonial” também são termos utilizados para a discussão. No entanto, na visão da pesquisadora Ana Gretel Echazú, professora do Departamento de Antropologia da UFRN, chamá-lo de “descolonizador” é mais adequado, em sua perspectiva, para evitar o risco de tornar a teoria algo pronto para ser replicado ou que possa propor uma “solução mágica” para temas complexos. O olhar descolonizador não é, afinal, uma receita para um estado identitário e social ideal, mas um processo complexo que envolve múltiplos agentes.
Por muito tempo, os países apontados como subalternos (terceiro mundo, subdesenvolvido, em desenvolvimento…) foram submetidos à identidade, costumes e propósitos de seus colonizadores e isso reverbera na mídia, na ciência, na produção intelectual e nas discussões identitárias ainda nos dias de hoje. Por isso, de acordo com Breno, as práticas de descolonização buscam e se associam ao estabelecimento de novos arranjos sociais pela sociedade civil e a validação do papel desempenhado por comunidades tradicionais e movimentos sociais.
“Seja na produção de saberes que estimulem uma visão humanista e o engajamento político, como no reconhecimento da potência criativa destes atores na formação e no permanente envolvimento de novos agentes, essas condutas mostram-se fundamentais na difusão e disseminação de visões originais e autênticas, interessadas na construção de uma perspectiva crítica ao colonialismo e voltadas ao bem viver coletivo”, explica.
O professor reforça ainda que a manifestação da herança colonial existe em múltiplos lugares: na linguagem, em esquetes exploradas pela mídia nacional, no tratamento social cotidiano, entre outras ações corriqueiras. “É relevante e urgente a crítica a tais produções e o reconhecimento de tais conteúdos como deletérios e prejudiciais à própria identidade nacional. É fundamental que a sociedade brasileira dedique esforços à exorcização dos fantasmas coloniais – para o bem de sua memória social e de sua cultura”, completa.
Ana Gretel ressalta que abraçar um olhar descolonizador pode ampliar perspectivas históricas e geográficas, contribuindo para re-situar os diálogos do atual Brasil com o mundo, olhando para os demais países da América Latina e dialogando com eles sobre problemas comuns. “Adicionalmente, nos ajuda a repensar os vínculos entre centros de produção do conhecimento em chave sul-sul: são a América Latina, Ásia, África querendo e podendo dialogar entre si, através de coletivos criticamente situados em relação a perspectivas eurocentradas”, enfatiza.
De acordo com Gretel, a perspectiva descolonizadora oferece bastante inspiração vinda de fora do Brasil, desde esse olhar, que é de processo e não de assimilação de novos marcos teóricos instantâneos. “Mas ela também nos permite reconhecer um olhar descolonizador na produção de intelectuais nossos, como o educador pernambucano Paulo Freire, que nos traz uma série de ferramentas para sentir e pensar ‘desde baixo e na contramão’ dos saberes da cultura majoritária”, complementa a antropóloga.
Ser decolonial
O que precisamos entender sobre o “ser decolonial”, na posição de país que muito herdou do período de colonização? Segundo o professor Breno, o “ser decolonial” em solo brasileiro requer atenção à composição do percurso histórico que nos trouxe até os dias de hoje, assim como a atual proposição de estratégias e ações efetivas de rupturas de estruturas sustentadas pela herança colonial.
“Temos, por exemplo, a presença de uma estrutura verticalizada de funcionamento da sociedade brasileira, na qual o autoritarismo manifesta-se em algumas de suas dinâmicas de interação e relacionamento social. Adicionam-se a esta estruturação dois fatores que tornam o cenário mais complexo: a vivência de um sistema de escravidão ao longo de 400 anos e a desigualdade social ainda presente”, explica o professor.
Um dos principais pontos na discussão sobre colonização, e portanto descolonização, são a maneira como as relações de poder e dominação e do autoritarismo reformularam as estruturas sociais, principalmente em populações de países categorizados como subalternos. Para Ana Gretel, as práticas descolonizadoras requerem, sobretudo, atenção crítica aos processos e aos contextos. De acordo com a pesquisadora, a história e a geopolítica são importantes e relevantes para a discussão, assim como o caráter das interseccionalidades raça-cor, classe, gênero e deficiências.
“As interseccionalidades, que são uma estratégia teórica muito interessante desenvolvida pelo feminismo negro estadounidense de Patricia Hill Collins, Angela Davis e outras, podem dialogar de forma muito frutífera com a perspectiva descolonizadora, abraçando a gênese histórica destas opressões, que são muito diferentes do que é pautado nos Estados Unidos e outros centros de produção do saber. O trabalho da antropóloga brasileira Lélia González, que escreveu nos anos 1980, mostra como ideias tais como ‘Améfrica Ladina’, que privilegiam o olhar sul-sul e a atenção para a colonialidade das relações de poder, continuam a ser pertinentes e urgentes nos nossos tempos”, reflete Gretel.
A linha no horizonte
O “ser decolonial”, por envolver processos extensos e agentes internos e externos a cada país, mesmo que similares em suas vivências, não é uma realidade que se possa alcançar em um piscar de olhos. Na visão de Ana Gretel, essa é uma postura que chega a ser, na verdade, utópica, mas também de certa forma otimista. “Como diria o escritor uruguaio Eduardo Galeano, a utopia é aquela linha no horizonte que nos insta a caminhar. Então, é interessante pensar que definir essa direção, e caminhar na direção dela, em si mesmo já significa um avanço em prol do enfrentamento às nossas opressões atuais”, reflete.
Para a antropóloga, também é importante lembrar que as opressões não se encontram somente entre nações, mas também entre regiões e coletivos, fazendo-se necessário um olhar atento ao colonialismo interno como conceito para continuar o exercício das necessárias autocríticas. É aí que entra, por exemplo, a questão da miscigenação, bastante debatida no Brasil. Gretel analisa que essa mestiçagem opera em certos contextos, enquanto que, em outros, a questão de raça-cor-etnicidade se mantém, muitas das vezes para alimentar a manutenção de privilégios raciais.
Descolonizar as práticas do colonialismo interno envolve, segundo a Gretel, o reconhecimento das opressões nos coletivos oprimidos, assim como o reconhecimento dos privilégios por parte dos grupos sociais historicamente beneficiados com eles. “São assuntos sensíveis, mas que por ‘não incomodar’ devam ficar no silêncio. As estratégias de enfrentamento são múltiplas e devem ser capilarizadas de atenção permanente. Para ativar essas estratégias é necessário cultivar a escuta, o reconhecimento ao trabalho constante na democratização dos nossos vínculos e na responsabilização de nossa tarefa não somente científica, mas também cidadã, tanto dentro como fora da academia”, completa.
Saberes descolonizadores
O trabalho do projeto Boas Práticas de Enfrentamento à covid-19, que envolveu uma equipe multi-situada nos estados do Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará, é um exemplo de aplicação do olhar descolonizador e dos processos de interseccionalidade, comunidade e lideranças locais dentro do ambiente acadêmico.
A iniciativa consistiu em uma experiência de construção de pesquisa em chave descolonizadora, encabeçada por Ana Gretel Echazú, Breno Carvalho e o professor Luan Gomes Santos, este da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Os pesquisadores contaram ainda com uma rede de pesquisadores comprometidos com trabalhos de longa data junto a coletivos específicos.
Gretel destaca que a pesquisa teve inúmeros desafios, desde a acessibilidade e usabilidade tecnológica, por parte das lideranças comunitárias, até a dificuldade de traçar diálogos entre coletivos socialmente vulnerabilizados que não tinham construído pedagogias de luta de forma conjunta. “Contudo, esse projeto nos trouxe a alegria de trabalhar, de forma pioneira, junto a lideranças pesquisadoras reconhecidas pelo CNPq, que durante 2020 e 2022 trocaram ideias, cuidados e mútuas estratégias de fortalecimento”, comentou a antropóloga.
O projeto envolveu lideranças e comunidades indígenas e ciganas, representantes de movimentos sociais e associações comunitárias, em prol do fortalecimento de cidadanias locais em perspectiva intercultural, interseccional e descolonizadora. Dentre os resultados materiais, estão produções literárias contendo as vozes e vivência dos envolvidos.
Fonte: Agecom/UFRN