Pouco mais de 100 anos nos separam da expedição de astrônomos ingleses que vieram à Sobral-CE, em 1919, para comprovar que a Teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein era verdadeira por meio de um fenômeno físico conhecido como lente gravitacional. Naquela época, a existência de buracos negros era apenas uma predição do astrofísico, que viria a se confirmar ao longo dos anos, à medida que a Cosmologia e a Astrofísica Moderna avançavam em seus estudos, guiadas por suas ideias. Buracos negros acompanhados por estrelas ou localizados no centro de galáxias puderam ser identificados e até mesmo fotografados nos últimos anos. Mas somente agora os astrônomos detectaram o primeiro buraco negro de origem estelar vagando solitário pela Via Láctea.
É o que mostra uma pesquisa publicada pelo Space Telescope Science Institute. A equipe que conduziu o estudo foi liderada pelo astrônomo Kailash Sahu e contou com diversos pesquisadores e institutos ao redor do mundo, incluindo o Brasil. Entre os astrofísicos que participaram da pesquisa estão Leonardo Almeida, professor Adjunto da Escola de Ciências e Tecnologia (ECT/UFRN) e Francisco Jablonski, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
O professor Almeida conta que a equipe brasileira, inicialmente composta pelos pesquisadores Francisco Jablonski e Eder Martioli, passou a integrar o projeto em 2007 com observações realizadas nos telescópios do Observatório do Pico dos Dias (OPD), localizado em Minas Gerais. O OPD é gerenciado pelo Laboratório Nacional de Astrofísica, unidade de pesquisa vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). O professor da UFRN entrou no projeto já em 2007, inicialmente como colaborador quando ainda era estudante de mestrado. Em 2010, ele passou a integrar a equipe de forma definitiva, realizando a maior parte das observações para o projeto até 2014. Ao todo, 17 artigos científicos foram publicados por esses pesquisadores em revistas indexadas internacionais, sendo a maioria sobre descoberta de exoplanetas.
De acordo com os dados apresentados pelo grupo, um corpo compacto e invisível, com uma massa equivalente a sete vezes a do nosso Sol, foi encontrado vagando isolado pela Via Láctea a uma distância de cinco mil anos-luz da Terra. Esse objeto foi identificado como um buraco negro de massa estelar, o tipo mais comum no universo, segundo previsões teóricas. Até então, os cientistas só haviam conseguido identificar esses objetos quando acompanhados de uma estrela transferindo massa para eles. Essa matéria se aglomera ao redor do buraco negro formando um disco de acreção, que é o que costumamos ver. Estima-se que existam mais de 100 milhões de buracos negros vagando sozinhos e invisíveis pela nossa galáxia sem uma estrela companheira, o que tornava difícil identificá-los. A descoberta, que aconteceu em 2011, através de um evento físico conhecido por microlente gravitacional (semelhante à lente gravitacional só que em uma escala menor), só foi confirmada agora graças à medida astrométrica do desvio da luz da estrela que passou atrás do buraco negro. Essa medida é semelhante à realizada em Sobral.
Um evento de microlente gravitacional é um efeito da deflexão da luz, no qual uma estrela de fundo (denominada fonte) tem o seu brilho aumentado e sua posição aparente deslocada quando um outro corpo (chamado de lente) passa entre o observador e a fonte. Esse efeito tem sido usado para encontrar novos planetas na Via Láctea e o efeito do deslocamento aparente da posição da estrela fonte foi utilizado para comprovar a Teoria da Relatividade Geral de Einstein em 1919, durante o eclipse total do Sol.
Matéria escura e a busca por buracos negros
De acordo com a teoria mais aceita atualmente, só conseguimos enxergar, aproximadamente, 5% de tudo que constitui o universo. Os outros 95% são compostos por matéria escura (26%) e energia escura (69%). Almeida explica que uma importante evidência para comprovar essa tese é a curva de rotação das galáxias, que mede a velocidade de rotação dos constituintes da galáxia em função da distância ao seu centro. De acordo com a teoria Kepleriana, essa curva deveria diminuir à medida em que se afasta do centro da galáxia, no entanto a curva observada pelos cientistas é diferente, pois segue uma linha aproximadamente constante ainda que se afaste, como exemplificada na figura abaixo.
A explicação mais plausível para essa curva inesperada seria a existência de matéria não visível na região externa ao centro das galáxias, chamada de Halo. Inicialmente, de acordo com alguns pesquisadores, os candidatos mais prováveis para compor a matéria escura seriam os buracos negros.
Foi na intenção de investigar essa curva e comprovar a tese sobre os buracos negros que, no final da década de 1980 e início da década de 1990, foram criados quatro projetos por grupos de astrônomos ao redor do mundo, empenhados em buscar por esses objetos: Expérience de Recherche d’Objets Sombres (EROS), Massive Compact Halo Objects (MACHO), Optical Gravitational Lensing Experiment (OGLE) e Microlensing Observations in Astrophysics (MOA). Esses projetos se dedicavam a observar as estrelas de duas galáxias vizinhas à nossa, conhecidas como Pequena e Grande Nuvens de Magalhães a fim de procurar por esses objetos. Com o tempo, eles também passaram a identificar estrelas e exoplanetas.
“Surgiu essa ideia de tentar observar esses objetos usando o efeito de microlente gravitacional, ou seja, se eu olho para um monte de estrelas de fundo e de repente passa um buraco negro na frente de uma dessas estrelas, o resultado observado no telescópio será o aumento do brilho dessa fonte, isso porque o buraco negro age como uma lente gravitacional”, explica Leonardo.
Essa tarefa, no entanto, não foi tão fácil quanto os astrônomos esperavam. O professor conta que, nas observações feitas na direção das Nuvens de Magalhães, os pesquisadores conseguiram observar poucos eventos. Diferente de quando eles apontavam os telescópios para o centro da Via Láctea, onde foram observados milhares de eventos de microlentes todos os anos.
“O problema é que nós não estamos medindo a deflexão da luz de uma estrela de fundo gerada pelo Sol, como foi realizado no experimento de Sobral em 1919. Nós estamos medindo o efeito de uma microlente gravitacional gerada por um objeto que está a milhares de anos-luz. Precisávamos medir o deslocamento aparente da posição da estrela de fundo, que é algo extremamente pequeno e, portanto, muito difícil de ser medido, mesmo com a tecnologia atual. Talvez alguns eventos de microlente que observamos ao longo da nossa monitoria podem ter sido gerados por buracos negros. Só que ou não medimos astrometricamente a posição da estrela de fundo, ou a precisão nessa medida não foi suficiente para saber se a lente era ou não gerada por um buraco negro”, conta Almeida.
O evento MOA-2011-BLG-191 ou OGLE-2011-BLG-0462
Em 2011, a equipe registrou um evento com grande potencial para ser um buraco negro. Almeida conta que à época eles já desconfiavam que o MOA-2011-BLG-191 ou OGLE-2011-BLG-0462, nomes dados ao evento conforme o projeto que o identificou, era o que eles buscavam. Isso porque foi um evento muito brilhante e que durou cerca de 270 dias, um tempo muito longo quando comparado a outros eventos. “Eu lembro bem dessa microlente. Ela ficou tão brilhante que era possível observá-la usando os telescópios menores do OPD. No mesmo ano, já suspeitávamos que a curva daquela microlente poderia ter sido gerada por um buraco negro, no entanto, para comprovar era necessário medir a deflexão da luz da estrela de fundo usando Astrometria” comenta Leonardo.
Para conseguir esse dado, o pesquisador Kailash Sahu liderou um projeto observacional com o Telescópio Espacial Hubble, instrumento capaz de fornecer uma medição precisa da mudança de posição astrométrica da estrela de fundo, provocada pela deflexão da sua luz ao passar próximo da lente. Foram seis anos, entre agosto de 2011 e 2017, monitorando esse objeto. Nesse período, foram obtidas oito imagens que mostram a variação de intensidade da luz emitida por essa fonte e a sua posição durante e depois do evento. “Unindo as medidas astrométricas com a curva de luz obtida por telescópios em terra e sua paralaxe derivada, foi possível determinar a massa (7,1 vezes a massa do Sol) e a distância aproximada de 5 mil anos-luz desse objeto que gerou a lente gravitacional”, explica Almeida.
Identificar a massa desse corpo era essencial para determinar se realmente se tratava de um buraco negro, isso porque, de acordo com a teoria da evolução estelar, para que este fosse o caso do objeto-lente encontrado, ele precisava ter massa acima de 3 massas solares. Com os resultados obtidos pelo grupo durante o monitoramento e pelo fato de não ser observada luz proveniente desse objeto, não restava mais dúvidas: eles haviam encontrado o primeiro buraco negro de origem estelar isolado na nossa galáxia.
A importância dessa descoberta
A grande novidade em relação a esse buraco negro está no fato dele estar vagando solitário pelo universo. No entanto, isso não significa necessariamente que sempre esteve sozinho. O grupo conseguiu medir também a velocidade com que ele se desloca pelo universo, podendo chegar a 45 km/s, e indica que ele possa ter sido chutado pela estrela companheira, quando ela explodiu em uma supernova.
O mais importante é que ele corrobora a previsão teórica do que seria um buraco negro estelar, o que possibilita que mais objetos como este possam ser identificados, ajudando a mapear a população de buracos negros na nossa galáxia.
“Não é possível dizer com certeza qual é a história desse objeto. O que é certo é que esse evento não só prova mais uma vez que a teoria de Albert Einstein estava correta, como também abre uma janela importante para começarmos a entender melhor sobre esses objetos e sobre os constituintes da nossa Via Láctea”, finaliza o professor Leonardo Almeida.
Fonte: Agecom/UFRN