Quem cria ou já criou uma calopsita, avezinha de crina amarela e manchas laranjas nas laterais da face, sabe que não é tão simples identificar seu sexo — se é macho ou fêmea — ainda mais quando se está criando uma pela primeira vez. “É uma fêmea”, garantiu sua antiga dona, quando deu Lila ainda bebê para Júlia, minha filha, que desejava demais o bichinho (o nome Lila nós que colocamos). Com o tempo, Lila cresceu e apareceu, encantando todos e cantando muito! Também reproduzia, do mesmo modo que um papagaio, algumas frases chamando o próprio nome: Vem cá, Lila, Vem cá!
Um dia voltando pra casa de Uber e conversando com o motorista — não lembro por que iniciamos tal conversa — descobri que ele também criava uma calopsita.
A sua canta? A minha canta muito e ainda fala algumas frases — eu disse cheio de orgulho, querendo impressionar. Estamos pensando em arranjar um macho para ver se ela coloca uns ovinhos.
Bem, geralmente quem canta muito são os machos.
O quê? O sinal amarelo acendeu para todos nós que estávamos no Uber — eu, minha esposa e nossa filha.
A fêmea pode até cantar, mas é coisa muito rara.
Ok, agarramo-nos à ideia de que Lila fosse algo raro dentro de sua espécie e continuamos tratando-a como ela — eu a chamava de mulher algumas vezes.
Só que não.
Outro dia, a senhora que havia presenteado Júlia com a calopsita revelou — Lila era um macho!
Júlia caiu no choro.
Então eu disse, para consolá-la: Menina, deixa de ser besta, Lila é trans.
O choro só aumentou.
Ok. Mas não entendo esse choro. Você vai amar menos Lila agora que descobriu que ela é ele?
Não é isso, papai, o senhor me conhece. Foi a maior dificuldade para ensinar ela, ele, sei lá, “Lila”, e agora, depois de todo esse tempo, o senhor acha que ela vai conseguir dizer outro nome?
Lila é uma ave. Pouco se importa como a chamam. Sequer faz ideia de que palavras têm gênero. Pensei nisso depois de ler uma reportagem sobre uma tartaruga — a mais velha já registrada, de 190 anos! — que vive há 30 anos como homossexual. Daí refleti sobre os gays e as pessoas trans. Sempre achei estranho o conceito de opção sexual. Quem opta por ser massacrado todos os dias numa sociedade patriarcal-heteronormativa-homofóbica? Somos o que somos por nossa natureza. Nascemos assim — ou assado — e pronto. Ainda bem que mudaram para orientação. Você é orientado a agir de acordo com sua genética — ou algo próximo disso. Dia desses uma pessoa tentou me convencer de meus pecados. Aceitar Jesus. Como testemunho do poder da religião, ele usou seu próprio exemplo de vida: hoje é casado com uma mulher, mas antes de virar crente viveu uma vida abominável, se relacionando com outros homens — o irmão continua, porém, altamente feminino. Saímos os dois da conversa um lamentando pelo outro.
Lembrei também de um outro episódio: Júlia tinha por volta de quatro anos — hoje tem dez — e me esperava no portão. Eu havia acabado de chegar do trabalho. Ela, com as duas mãos atrás das costas, me escondia algo. Antes que eu dissesse “Oi fofinha, como foi seu dia?”, me tomou pela mão e me levou ao quarto. “Venha, aqui, venha aqui! Quero que o senhor me explique algo!”, e começou o interrogatório.
O senhor, que não senta mais no chão comigo pra brincar de “bonecas”, dizendo que é coisa de bicha e que não aguenta mais “ter” que brincar de bonecas todos os dias comigo, o que o senhor me diz sobre isso? Na minha frente, várias fotos, umas caindo sobre as outras, mostravam eu — devidamente montada — ao lado de dois amigos no carnaval de 1997.
Mulher, isso não valeu. Eu tava bêbado!
Claro, eu disse que não valeu pra ela me deixar logo tomar um banho. Tava morto de cansado! — mas valeu sim! Três dias bêbado, dormindo na areia da praia ou na calçada da igreja ao meio-dia, com outros dois casais, num dos melhores carnavais da minha vida!
Tenho grandes amigos gays e lésbicas. Por sinal, Júlia gosta muito de um deles! E ela, com dez anos, acha injusto como a população LGBTQIA+ é tratada.
Pensamos em mudar o nome de Lila para Lilo. Daí desistimos. Ficou Lila mesmo. Às vezes me confundo — foi algo recente. Ei, mulher, quer dizer, menino! Pare de roer minhas sandálias! O que importa? Para mim, apenas a sua natureza, ser quem você realmente é. Tratado com respeito e dignidade.