Eu deveria estar naquele protesto. Afinal, pagar mais de cem reais num botijão era um absurdo. Mas, antes do gás, vinha a comida – ou o osso. Um dia acreditei na ideia, quando me falaram, de que venderia fácil todos os meus livros. “Não esquenta. Você nasceu para brilhar, menino! Brilhar! Confia em você! Você é um artista!” – era como se um anjo tivesse dito isso no dia em que nasci. Porém, estava desempregado e com trezentas ideias – uma sobre a outra, em duas caixas, num canto da sala. Não tinha outra alternativa, a não ser espalhar currículos por aí. Até que um dia o telefone tocou. “…A entrevista será às 15 horas e…”
Pessoas se amontoavam na frente do ônibus – um mar feito de bandeiras, coros e cartazes. Eu deveria estar ali. Também deveria estar em outro lugar. “Motorista, por favor, abre a porta que vou descer!”, gritei. Mas, ao contrário de Moisés, o Mar Vermelho estava fechado pra mim. Mesmo assim, eu, que não sabia nadar, teria que enfrentá-lo. O mar se fechou ainda mais quando tentei atravessá-lo com a camisa da seleção, velhinha, que meu pai tinha me dado de presente em 2008, porque todas as outras estavam no varal ou amarrotadas. Olhei para o céu, esperando alguma providência divina. Não obtive resposta. A não ser das pessoas me xingando por onde eu passava. Ainda tentei dizer que trabalhava nos correios, que era contra as privatizações, e o mínimo que escutei foi “vai embora, seu gado filho da puta!”
Por mais que quisesse, perderia muito tempo seguindo em frente. Faltavam ainda uns dois quilômetros, que teria que percorrer a pé. Então peguei uma rua paralela para sair numa avenida transversal. Perfeito! Não havia ninguém! Peguei outro ônibus. Depois de rodar pouco mais de mil metros, outra parada. “Que-porra-é-essa?” Cartazes pedindo intervenção militar, gente fazendo arminha, outros marchando ao mesmo tempo em que entoavam cânticos evangélicos. “Motorista, abre a porra dessa porta, vou descer!”. Desci em meio à multidão de amarelos. Um mais afoito foi logo me abraçando e me pegando pelo pescoço enquanto tirava uma self sem minha permissão. Estava prestes a mandá-lo tomar no cu, quando lembrei de onde estava, o diâmetro de seu bíceps, o cabelo à escovinha, e um fuzil AK- 47 desenhado em seu peito. Então sorri.
“Sinto muito, mas a entrevista era às 15 horas”, disse a pessoa do RH. Ainda tentei argumentar, mas ela afirmou que “pontualidade, na empresa, era algo fundamental”. “Pode aguardar. Nós ligamos pra você”, disse ainda.
“E aí, seu gado vira-casaca. Provocaram dois amigos que voltavam do protesto, quando cheguei em casa, e eu sem entender nada.
“Não se faça de desentendido! Nós vimos a foto no Instagram. A gente se fudendo por pessoas como você, nos importando, e você todo sorridente com um fascista bombado. Camisa da seleção!”
“Espero que consiga alguma coisa vendendo alguns desses teus livros com essas tuas ideias para algum gado conservador!”
“Arminha é o caralho!”
Imagem: Reddit