Crianças pardas apresentam uma taxa de partilha mais expressiva que crianças que se autodefinem como brancas ou pretas. Essa constatação é parte dos resultados da pesquisa Vidas negras importam: estudos sobre o comportamento pró-social de crianças pardas e pretas brasileiras, de Mayara Wenice Alves de Medeiros, uma das vencedoras do Prêmio Capes de Teses 2021. Sua pesquisa, uma das 49 premiadas em todo o país, foi desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Psicobiologia (PsicoBio) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), sob orientação da professora Maria Emília Yamamoto e coorientação do professor Wallisen Tadashi Hattori, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Na UFRN, seis pesquisadores levaram o prêmio, incluindo o Dimensions Sciences 2021.
Mayara investigou o desenvolvimento da cognição implícita e explícita, por meio de instrumentos criados para essa finalidade, assim como a influência do pertencimento a diferentes grupos, principalmente a minorias sociais, sobre o desenvolvimento de comportamentos pró-sociais em crianças. A pró-socialidade é uma habilidade desenvolvida em diferentes espécies sociais. Os membros dessas espécies, a exemplo da humana, vivem em grupos e dependem uns dos outros para sua sobrevivência, por isso, acredita-se que eles adotam esses comportamentos como forma de obter aceitação social. Comportamentos pró-sociais dizem respeito a atitudes voluntárias que beneficiam outros indivíduos, independente de um retorno.
Foram investigados ainda aspectos culturais por meio da aplicação dos instrumentos em crianças que residem em comunidades remanescentes de quilombos. Para isso, foram comparadas as respostas dadas por essas crianças com as respostas dadas por crianças que residem em outras comunidades rurais e na zona urbana. Os resultados mostraram que as crianças que residem nas zonas urbanas, de culturas consideradas mais independentes, dividem mais com seus colegas de turma. As crianças que residem nas zonas rurais apresentam compartilhamento intermediário, não se diferenciando das crianças que residem nas comunidades quilombolas e nas zonas rurais.
As crianças das comunidades quilombolas, de cultura mais interdependente, no entanto, mostraram a menor taxa de partilha, ou seja, dividiram menos o recurso com seus colegas de turma. “Esses resultados, de certa forma inesperados, podem ser compreendidos se considerarmos fatores ecológicos, como as dificuldades que as crianças dessas comunidades possuem para comprar os itens escolares que usamos na pesquisa”, explica Mayara Medeiros.
A pesquisadora também buscou compreender a resposta implícita dessas crianças com relação ao desenvolvimento da pró-socialidade. Nesse ponto, viu que as crianças das comunidades quilombolas e as residentes nas zonas rurais mostraram uma maior preferência implícita por comportamentos pró-sociais, comparadas a crianças que residem nas zonas urbanas.
Segundo Mayara, o resultado revela a importância de aspectos culturais sobre a cognição implícita das crianças. “Nossa hipótese explicativa é que o fato delas viverem em comunidades que demonstram uma maior interdependência entre seus membros, faz com que elas desenvolvam a pró-socialidade de forma mais expressiva que as crianças residentes nas zonas urbanas. A medida implícita é menos influenciada pelo acesso ao recurso, por isso, acreditamos que ela nos ajuda a revelar aspectos culturais com menores vieses”, esclarece.
Também foi visto que crianças pardas apresentam uma taxa de partilha mais expressiva que crianças que se autodefinem como brancas ou pretas. Esse comportamento, segundo a pesquisa, pode estar associado à busca por aceitação de grupo entre as crianças pardas, um grupo que sofre com a exclusão social, mas com maior perspectiva de aceitação pelo grupo dominante que as crianças pretas. O trabalho constatou ainda que assistir a vídeos de outra criança partilhando aumenta a divisão entre elas, independentemente do protagonista do vídeo ser branco ou preto.
Parte dos desafios da pesquisa foi exatamente a coleta de dados, uma vez que o estudo foi realizado, em parte, nas comunidades quilombolas de Lages e Sobrado, localizadas na cidade de Portalegre/RN, e de Capoeiras, em Macaíba/RN, que têm difícil acesso. Apesar disso, a pesquisadora pretende continuar com o trabalho de investigação acerca dos comportamentos sociais na infância. Sua ideia é focar agora em fatores do ambiente que influenciam a aprendizagem desses comportamentos e investigar de forma mais qualitativa características específicas desses grupos que podem ajudar a explicar os resultados encontrados de forma quantitativa.
Avaliação da Pró-socialidade
Para alcançar mais exatidão nos resultados, Mayara Medeiros desenvolveu um Teste de Associação Implícita para Avaliação da Pró-socialidade em Crianças (TAI-APC). O objetivo foi investigar a preferência implícita das crianças por comportamentos pró-sociais ou antissociais. Esse teste é uma medida de cognição implícita desenvolvida para mensurar a velocidade com que os participantes associam determinados comportamentos ou estereótipos com estímulos considerados positivos ou negativos. Testes assim, geralmente, são aplicados quando se pretende investigar comportamentos associados a um maior julgamento social.
“São amplamente utilizados quando se pretende avaliar a preferência por brancos ou pretos, por exemplo. Comumente, utilizamos na psicologia e em outras áreas sociais, medidas explícitas, como o uso de questionários ou perguntas diretas feitas aos participantes. Apesar de serem muito importantes, essas medidas sofrem com o enviesamento de respostas, pois tendemos a dar respostas que julgamos ser melhor aceitas socialmente”, explicou a pesquisadora.
Assim, a pesquisa utilizou imagens de estímulos positivos infantis (sorvete, chocolate, bichinhos de pelúcia…) e imagens de estímulos negativos (mosca em uma fruta, lesma, serpente…) e mediu a velocidade com que as crianças associavam o que viam com estímulos pró-sociais (divisão, ajuda e gentileza entre os pares) e estímulos antissociais (trapaça, disputa e pegar um objeto de um colega). A associação mais rápida entre os estímulos positivos e os pró-sociais e entre os estímulos negativos e antissociais indica uma maior preferência por comportamentos pró-sociais, o inverso é aplicado para a preferência antissocial.
O TAI-APC foi desenvolvido para o sistema Android. Agora, a pesquisadora trabalha para que o aplicativo possa ser compartilhado com outros estudos ou profissionais que desejem utilizá-lo por meio da autorização para o compartilhamento.
Fruto da escola pública
Natural de Jucurutu, cidade localizada no Seridó do Rio Grande do Norte, Mayara Medeiros passou a morar em Parnamirim, região metropolitana de Natal, ainda criança com sua família. Há seis anos, mudou-se para Mossoró, no Oeste do estado, devido a seu trabalho como servidora da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa).
Sempre estudando em escola pública, foi aluna do Instituto Federal de Ciência, Tecnologia e Inovação (IFRN), onde começou a se interessar pela escrita e trabalhos que envolviam a investigação de determinados temas. A escolha da Psicologia veio pela afinidade com a área de humanas e pelo desejo de compreender melhor a mente humana.
“Meu interesse pela ciência cresceu na graduação, quando comecei a participar de projetos de pesquisa e de extensão. Desde o 4º período de graduação que participo do Laboratório de Estudos do Comportamento Humano (LECH), no qual desenvolvi minha pesquisa de mestrado e doutorado, seguindo a mesma linha teórica”.
Mayara fez seu mestrado sobre o desenvolvimento pró-social de crianças que apresentavam sintomatologia do transtorno da conduta e, mais recentemente, começou a se interessar pela abordagem teórica denominada Evolução Cultural, quando surgiu o interesse por investigar esses comportamentos em crianças que vivenciavam aspectos culturais diferentes. “Dessa forma, elaborei meu projeto de doutorado dentro dessa perspectiva teórica, com a ideia de investigar minorias sociais brasileiras”, conta.
Em relação ao Prêmio Capes de Teses, ela diz não saber ao certo qual será a implicação direta em sua carreira de cientista, contudo, não esconde que ficou feliz pela conquista. “Fazer um doutorado é um processo muito difícil, e receber esse prêmio significa uma grande recompensa por todo esse processo. O prêmio engloba uma bolsa de pós-doutorado e, com certeza, esse estímulo fará com que eu continue seguindo com minha pesquisa e com outras pesquisas na área”, finaliza.
Fonte: Agecom/UFRN