O texto mais popular de toda a imensa produção intelectual de Rui Barbosa continua sendo sua profissão de fé como jurista, a Oração aos Moços. A obra – não há outro termo a se usar – foi lida em 29 de março de 2021 por Reinaldo Porchat, isto é, há pouco mais de 100 anos, fato que justifica esta modesta homenagem.
A turma de bacharéis que colava grau no ano de 1920 na Faculdade de Direito de São Paulo convidou Rui para ser seu paraninfo. Em 1920, aos setenta anos de idade, Rui Barbosa era uma personalidade consagrada. Senador da República, advogado, jornalista, ex-ministro de Estado, ele era considerado pela opinião pública o “maior brasileiro vivo”.
Iniciado treze anos antes, por ocasião de sua participação como representante do Brasil na Segunda Conferência da Paz na Haia, seu processo de consagração atingira seu apogeu em agosto de 1918, quando o próprio regime republicano, de que Rui era virulento crítico, celebrou oficialmente seu “jubileu cívico”, isto é, seus cinquenta anos de atividade política. Foram três dias de festividades, um dos quais decretado feriado nacional.
O convite tinha um caráter especial, pois Rui Barbosa havia se formado 50 anos antes nessa mesma Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Tratava-se de uma homenagem ao ex-aluno, que completava 50 anos de formado. Assim nasceu a Oração: como discurso de paraninfo.
Apesar de a cerimônia ter sido adiada de dezembro de 1920 para março de 1921, Rui, acometido de uma enfermidade, não pôde comparecer ao ato solene, motivo pelo qual o discurso não foi lido por ele, mas pelo catedrático de direito romano, Reinaldo Porchat, que viria a ser o primeiro reitor da Universidade de São Paulo.
Sobre isso, disse Rui: “Em verdade vos digo, jovens amigos meus, que o coincidir desta existência declinante com essas carreiras nascentes agora, o seu coincidir num ponto de intersecção tão magnificamente celebrado, era mais do que eu mereceria; e, negando-me a divina bondade um momento de tamanha ventura, não me negou senão a que eu não devia ter tido a inconsciência de aspirar. Mas, recusando-me o privilégio de um dia tão grande, ainda me consentiu o encanto de vos falar, de conversar convosco, presente entre vós em espírito; o que é, também, estar presente em verdade”.
Rui Barbosa já havia percebido a familiaridade do público com o estilo oratório dos sermões na Campanha Civilista. E, na Oração aos Moços, ele adota esse estilo, inspirado certamente em Padre Antônio Vieira.
Como padrinho escolhido, oferece conselhos aos moços a partir da sua própria experiência: “Estou-vos abrindo o livro da minha vida. Se me não quiserdes aceitar como expressão fiel da realidade esta versão rigorosa de uma de suas páginas, com que mais me consolo, recebei-a, ao menos, como ato de fé, ou como conselho de pai a filhos, quando não como o testamento de uma carreira, que poderá ter discrepado, muitas vezes, do bem, mas sempre o evangelizou com entusiasmo, o procurou com fervor, e o adorou com sinceridade”.
Um século depois, esse discurso permanece como princípio dos estudantes de Direito. O polímata baiano fala acerca de variados temas, sobretudo sobre a advocacia, a magistratura e a política. Discorre a respeito da importância de ouvir o próprio coração e de estar preparado para uma vida dedicada ao amor, ao sacrifício, à justiça, à caridade. Recomenda a oração e o trabalho; alertando os jovens para o fato de não trocar o dia pela noite, continuando sempre a estudar.
Aos futuros advogados, diz o mestre baiano: “Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado. Nelas se encerra, para ele, a síntese de todos os mandamentos. Não desertar a justiça, nem cortejá-la. Não lhe faltar com a fidelidade, nem lhe recusar o conselho. Não transfugir da legalidade para a violência, nem trocar a ordem pela anarquia. Não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínio a estes contra aqueles. Não servir sem independência à justiça, nem quebrar da verdade ante o poder. Não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniquidade ou imoralidade. Não se subtrair à defesa das causas impopulares, nem à das perigosas, quando justas”.
Também merece destaque o recado aos futuros juízes, cuja profissão Rui enaltece, mas enuncia regras de conduta: “Magistrados futuros, não vos deixeis contagiar de contágio tão maligno. Não negueis jamais ao Erário, à Administração, à União os seus direitos. São tão invioláveis, como quaisquer outros. Mas o direito dos mais miseráveis dos homens, o direito do mendigo, do escravo, do criminoso, não é menos sagrado, perante a justiça, que o do mais alto dos poderes. Antes, com os mais miseráveis é que a justiça deve ser mais atenta, e redobrar de escrúpulo; porque são os mais mal defendidos, os que suscitam menos interesse, e os contra cujo direito conspiram a inferioridade na condição com a míngua nos recursos”.
Por último, ainda se referindo aos “magistrados futuros”, duas regras que se enquadram muito bem à atualidade: “Não militeis em partidos, dando à política o que deveis à imparcialidade. Dessa maneira venderíeis as almas e famas ao demônio da ambição, da intriga e da servidão às paixões mais detestáveis. Não cortejeis a popularidade. Não transijais com as conveniências”.
Moços e as moças do hoje e do amanhã, meditem sobre os conselhos que brotam do texto de Rui Barbosa, um homem ansioso pela verdade e pelo bem, cuja persistente ação política, conjugada com seus primorosos e pedagógicos discursos, em defesa da construção de uma sociedade politicamente livre e democrática, economicamente desenvolvida e socialmente justa, permanece exemplar, inspirando um número crescente de brasileiras e brasileiros.
“Ouve o conselho e aceita a correção para que, no fim, te tornes sábio.” Pr 19,20
João Maria de Lima é mestre em Letras e professor de língua portuguesa e redação há mais de 20 anos.
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