Dados pesqueiros são de suma importância para o bom conhecimento dos rios e oceanos. Com essas informações é possível monitorar as populações de peixes e invertebrados habitantes dessas águas, controlar o seu manejo, planejar políticas de exploração sustentável da pesca e manter o equilíbrio ambiental, garantindo a alimentação humana e preservando a fauna.
Algo aparentemente primário na teoria, tais estatísticas, no entanto, são cada vez mais raras no Brasil e em outros países em desenvolvimento. E, diante desse fato, estudiosos da área ambiental precisam se valer, com determinada frequência, de métodos alternativos para obter dados que possam preencher algumas das lacunas de conhecimento deixadas pela ausência desses dados.
Assim nasceu um estudo realizado pelo Departamento de Ecologia da UFRN. Comparando informações coletadas em trabalhos que acompanharam a ingestão de peixe em vilas de pescadores nas regiões Sul e Sudeste do Brasil desde a década de 1980, as pesquisadoras identificaram um consumo cada vez menor de peixes e invertebrados predadores, ao passo que aumentou a presença de espécies de menor porte na mesa dessas famílias.
“A partir destes dados investigamos mudanças temporais na riqueza, na diversidade e na composição de espécies, tamanho e níveis tróficos dos peixes, consumo de espécies ameaçadas de extinção e diversidade funcional, ou seja, espécies com comportamento e habitat preferenciais diferentes”, explica a professora e pesquisadora do Departamento de Ecologia da UFRN, Priscila Lopes, primeira autora do estudo.
Os resultados foram publicados recentemente no periódico científico Ambio. Intitulado O que as dietas dos pescadores revelam sobre os estoques de peixes, o artigo correlaciona os dados alimentares dessas vilas de pescadores com informações de estoques de peixes em diversos lugares do mundo, o que apontou para uma tendência convergente.
“Esses dados são preocupantes porque confirmam as tendências observadas ao redor do mundo para os dados de pesca. Tais tendências mostram que ao longo das décadas houve uma diminuição no nível trófico das capturas”, afirma a pesquisadora. Mas é necessário ainda compreender melhor o que é o nível trófico.
Ele representa o número de passos em uma cadeia alimentar, na qual os predadores de topo ocupam os níveis mais elevados. Peixes herbívoros, por exemplo, têm valores mais baixos e onívoros apresentam valores intermediários. Preferencialmente, humanos tendem a consumir peixes de nível trófico elevado, como garoupa e meca. Só que estes são menos abundantes que os de níveis tróficos mais baixos, como as sardinhas.
Nesse sentido, essas espécies de níveis tróficos mais elevados acabam tendo propensão maior a serem expostas a uma pesca acima da capacidade de renovação da população, levando a uma diminuição de sua frequência nas redes e nos pratos. “Assim, estão sujeitos mais rapidamente à sobre-explotação e isto é detectado por uma queda geral do nível trófico ao redor do mundo. Aparentemente, vemos a mesma tendência na dieta”, aponta Priscila.
Outra mudança relevante diz respeito a espécies ameaçadas. De acordo com o estudo, o consumo delas sempre foi baixo, mas a maioria mudou com o tempo, sugerindo que muitas, especialmente raias e tubarões, podem ter se tornado raras nos pratos. “Não conseguimos concluir se as pessoas pararam de consumir estas espécies de antes por decisão própria, [o que é] pouco provável, ou se elas estão cada vez mais raras e outras ameaçadas passam a ser incluídas na dieta”, relata a professora.
Por isso é preciso interpretar com cautela esses dados. De acordo com Priscila Lopes, não é possível afirmar que estas espécies estejam se extinguindo somente ao usar a dieta, da mesma forma que não dá para assegurar que o menor consumo de predadores ou o menor tamanho dos peixes seja porque os maiores estejam mais raros.
“Há fatores culturais associados. As pessoas podem estar vendendo os maiores ou simplesmente deixaram de consumir algumas espécies agora que o acesso ao mercado é facilitado. No entanto, estas tendências negativas confirmam aquelas observadas no mundo e acendem um sinal amarelo, quase vermelho”, alerta a pesquisadora.
Próximos passos
Além da questão ambiental, muitos outros campos podem ser explorados futuramente a partir das informações levantadas neste estudo. Na avaliação de Priscila Lopes, a base de dados formada é bastante grande e pode permitir que outras perguntas sejam respondidas, inclusive de caráter nutricional.
“Temos informações, por exemplo, sobre os outros itens alimentares que as pessoas vêm consumindo nas vilas pesqueiras ao longo de décadas. Podemos investigar se está havendo a substituição do peixe por outras proteínas de origem animal e avaliar o valor nutricional e financeiro desta substituição, o que poderia apontar desde direcionamentos para a saúde destas comunidades até aspectos de segurança e soberania alimentar”, vislumbra Priscila Lopes.
Planejando os próximos passos da pesquisa, a professora aponta uma forma de obter dados ainda mais abrangentes. “Se melhorarmos nossas coletas de informações domiciliares, como as feitas pelo IBGE, detalhando melhor as espécies de peixe consumidas, podemos ter uma fonte adicional de informação indireta sobre os estoques pesqueiros, mas desta vez em escala nacional”, conclui a cientista.
Assinam ainda o artigo as pesquisadoras Natália Hanazaki e Elaine Nakamura, ambas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Svetlana Salivonchyk, da Academia Nacional de Ciências de Belarus, e Alpina Begossi, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Por Marcos Neves Jr.
Fonte: Agecom/UFRN