O título do texto é um recorte do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. Centralizada no episódio histórico da Inconfidência Mineira, a obra, no entanto, elabora uma reflexão mais ampla sobre a relação entre o homem e a linguagem, evidenciando que, independente do impacto e dos sentimentos que as palavras podem causar, há um equilíbrio vinculado ao seu significado junto às relações humanas.
A palavra nos permite inventar e reinventar o mundo. Como disse o poeta mexicano Octavio Paz, “A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade ou, pelo menos, o único testemunho de nossa realidade”.
Ter um bom vocabulário é um dos critérios avaliados nas produções textuais. Mais do que isso, em situações do cotidiano, também é fator de destaque social; afinal, é pelas palavras que comunicamos ideias, pensamentos e emoções. Considerando o fato de que tudo o que dizemos hoje poderá ser usado contra nós, torna-se imperiosa uma comunicação com sucesso.
Uma prática que se deve evitar no bom uso da língua portuguesa é o recurso às palavras-ônibus, também conhecidas como palavras-curinga. Esses vocábulos, conforme os nomes sugerem, terminam por assumir a função que caberia a outros. Uma dessas distorções é a que se verifica com o verbo “acontecer”.
Esse verbo deve ser empregado somente no seu significado mais específico, o de “tornar-se realidade”. “Acontecer” traz sempre a ideia de inesperado, desconhecido, imponderável: “Se acontecesse a explosão, ocorreriam muitas mortes”.
Em outras situações, “ser”, “haver”, “realizar-se”, “ocorrer”, “existir”, “verificar-se” e “estar marcado para” são opções mais adequadas que “acontecer”. Basta verificar os exemplos a seguir: “O jogo acontece (realiza-se) hoje à tarde”; “A manifestação aconteceu (ocorreu) ontem”; “A reunião acontecerá (está marcada para as) às 11 horas”.
Conforme se pode observar, o verbo “acontecer” aparece nas mais variadas situações e, em grande parte delas, sem o menor amparo nas normas do idioma. Pode ser que haja traços dos verbos em cujo lugar foi empregado, mas não o significado completo deles, daí a impropriedade. Uma dica simples: nada com data ou horário marcado “acontece”.
Outro verbo com o qual se deve tomar muito cuidado é “comunicar”, em virtude de seu uso inadequado, que se generaliza a cada dia. A fórmula deste verbo é prática: “comunicar alguma coisa a alguém” ou “comunicar alguma coisa”. Assim: “O professor comunicou a mudança aos alunos”; “O professor comunicou a mudança”. Contudo, construções inadequadas, como “O professor comunicou os alunos da mudança”, seguem vagando no dia a dia. De igual forma, são consideradas impróprias frases assim: “Os alunos foram comunicados da mudança”.
O uso de palavras inadequadas sempre decorre de dois fatores: ou a pessoa não sabe o que significa exatamente a palavra ou pensa que sabe. Em ambos os casos, não se dá ao trabalho de confirmar o significado em um dicionário.
Recorrer ao dicionário é a melhor estratégia, uma vez que dispor de um bom vocabulário é um diferencial. Se você tem vários sinônimos em seu repertório, será capaz de escolher a melhor palavra para aquela determinada frase. Com um dicionário, nota-se que “avisar”, “informar”, “cientificar” e “notificar” podem substituir “comunicar” no seu uso inadequado.
A informática introduziu, já há algum tempo, na linguagem do cotidiano termos que, antes, não existiam ou tinham outro significado, é o caso de “acessar”, “deletar” e “formatar”. Evidentemente, não se pretende aqui ditar regras nas escolhas pessoais, mas, em favor da precisão, é interessante manter esses termos no campo da própria informática.
Não é difícil ouvir que “o motorista deve acessar o bairro de Pajuçara pela Ponte Newton Navarro” ou que se deve “acessar a UFRN pela marginal da BR 101”. Pode-se acessar a Internet ou um arquivo; porém, chega-se a um bairro ou a um local.
“Deletar” é mais uma adaptação do inglês que deve ser limitada ao campo da informática, quando usamos “deletar um arquivo, uma palavra ou um texto”. Para outras situações, temos “apagar”, “desfazer”, “eliminar”, “cancelar”. Logo, “apague uma imagem”, “desfaça uma impressão” etc. Antes de “estartar” um projeto, recorra ao dicionário e inicie um projeto. É bem melhor. Formate o pen-drive. Deixe ideias, opiniões e programas fora disso. Ideias e opiniões podem ser repensadas; programas, reestruturados. É importante lembrar: “Amados, não vos escrevo um mandamento novo, mas um mandamento antigo, que recebestes desde o princípio. O mandamento antigo é a palavra que ouvistes”. 1Jo 1,7
João Maria de Lima é mestre em Letras e professor de língua portuguesa e redação há mais de 20 anos.
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