As incertezas e angústias geradas pela Covid-19 atingiram o cotidiano de milhões de pessoas ao redor do mundo. O receio da contaminação impulsionou o uso de plataformas virtuais que possibilitam transmissões em tempo real, mas mesmo quando não são mediadas por telas de computador ou celular, as interações sociais agora precisam seguir protocolos de segurança para evitar a propagação do novo coronavírus. Além de desencadear episódios de ansiedade, irritabilidade e outros desequilíbrios emocionais, a atual crise sanitária também afetou rotinas de trabalho e renda de famílias. Como se não bastasse, até os sonhos sofreram com as consequências.
É o que a neurocientista Natalia Mota, do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), vem pesquisando. Em estudo coordenado por ela, foram identificadas mudanças no padrão de relatos de sonhos durante o período de isolamento social em 67 voluntários. Os resultados mostram o aumento na quantidade de palavras relacionadas aos termos ‘contaminação’ e ‘limpeza’, em comparação com relatos de sonhos coletados antes da pandemia. “Nossa hipótese é de que esses sonhos refletem sofrimento mental, medo do contágio e mudanças nos hábitos cotidianos”, explica Natalia.
O estudo teve início no ano passado, antes mesmo de se ter conhecimento sobre a pandemia, com objetivo de analisar a relação entre sonhos e saúde mental, por meio de aplicativo desenvolvido por Natalia durante o doutorado. Porém, com a Covid-19 atingindo o Brasil, o enfoque da pesquisa foi redirecionado, a fim de comparar os sonhos ocorridos entre março e abril de 2020 com relatos que já haviam sido obtidos no final de 2019.
Para investigar essas narrativas, os termos ‘contaminação’ e ‘limpeza’ não precisavam, necessariamente, aparecer nos relatos dos voluntários, ressalta a neurocientista. A análise é feita por meio de sistemas computacionais, nos quais o fluxo de palavras dos sonhos coletados são examinados matematicamente em forma de grafos, que revelam a construção semântica da história do sonho. Em uma situação hipotética, bastaria o voluntário contar que sonhou que estava todo sujo para que um algoritmo associasse semanticamente a palavra ‘sujo’ com ‘contaminação’.
Essa maior frequência da aproximação semântica dos relatos com as palavras ‘contaminação’ e ‘limpeza’ devido ao período pandêmico é justificada no campo da neurociência, no qual se considera que os sonhos têm duas funções. A primeira é a de ser um mecanismo fisiológico para metabolizar as emoções, fazendo com que as pessoas lidem melhor com seus sentimentos. Enquanto a segunda função é a de treinar o sonhador para desafios futuros.
“Quando você tem um desafio importante para enfrentar, é possível resgatar essa informação durante o sonho, gerando uma memória reelaborada com outros aspectos baseados na sua vivência, dando a oportunidade de se buscar novas soluções para aquele problema”, contextualiza Natalia. Por isso, o fato dos sonhos pandêmicos remeterem a ‘contaminação’ e ‘limpeza’ indica uma forma dos sonhadores tentarem lidar com a ‘vida real’.
“As peculiaridades desses sonhos durante a pandemia estão relacionadas ao nível de sofrimento emocional provocado pelo distanciamento social. Aquelas pessoas que apresentaram mais dificuldade em lidar com a quarentena e manter suas relações com amigos e familiares foram as que mais tiveram sonhos ligados à ideia de limpeza”, relata Natalia Mota.
De acordo com a pesquisadora, quanto mais desafios o ser humano tem, mais informações entram em seu universo onírico. “O sonho faz sentido para aquele que sonha”, diz, e, por isso, ela recomenda que as pessoas tentem lembrar de seus sonhos ao acordar e anotem em um diário para que suas memórias sejam analisadas com mais cuidado e criatividade. Ao fazer isso, pode ser uma nova forma para olhar os desafios que estão sendo vivenciados.
Assim como o hábito de se ‘forçar’ a lembrar dos sonhos escrevendo os detalhes destes quando se acorda para exercitar o cérebro a se recordar mais do que foi sonhado, a própria qualidade do sono contribui para isso. “A lembrança da atividade onírica está relacionado ao sono também, quem dorme bem tem mais facilidade em se recordar de seus sonhos”, conta a pesquisadora.
Para se ter ideia, sonhamos de quatro a seis vezes durante o sono. Segundo Natalia, os sonhos não são exclusivos da fase de sono REM, também acontece na fase de sono de ondas lentas, ainda que os que acontecem em sono REM sejam mais longos e profundos. É impossível lembrar de um repertório tão grande, mas com uma boa rotina de sono, talvez se torne mais fácil ter sonhos mais tranquilos e que ajudem a superar os desafios do dia a dia.
*Reportagem originalmente produzida e publicada durante o I Programa de Mentoria para Jovens Jornalistas da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência).
Fonte: Agecom/UFRN