Ali pelo meio de “A arte de encarar o medo”, peça que o grupo Os Satyros encena na plataforma Zoom, uma mãe explica à filha, que jamais botou os pés na rua, como era viver no teatro. A peça se passa no dia 5555 de quarentena, num mundo que esgarça os afetos, banaliza saudades, impõe a ignorância como método e, por fim, desafia as possibilidades de relacionamento com o “mundo lá fora”. As duas estão em um banheiro de casa, um banheiro de azulejos antigos. A mãe é uma atriz:
“Eu tenho medo de nunca mais ir ao teatro, de não ouvir mais o terceiro sinal, não ouvir aquela onda de silêncio que vem chegando aos poucos da plateia, de nunca mais beber com meus amigos depois do espetáculo, de ficar conversando de bobeira por horas com eles, tenho medo de nunca mais pisar no palco, nunca mais sentir o cheiro do palco, o cheiro que o palco tem.”
O palco, em “A arte de encarar o medo”, é onde se pode estar. A casa é palco, o banheiro é palco, a cozinha, a escada do prédio, a porta do elevador é palco, o olho mágico, a janela é palco, a cama bagunçada, o rosto de cada um é um novo palco. A peça funciona como uma ponte entre o mundo de cada um dos 18 atores — uma delas, Ulrika Malmgren, diretamente de Estocolmo, na Suécia, num fuso de seis horas — e o mundo do espectador.
Encenada ao vivo e com ingresso pago, “A arte de encarar o Medo” funciona mais ou menos como uma reunião de trabalho por videoconferência, mas com o acompanhamento de uma plateia viva — ainda que com câmeras e microfones desligados —, que participa diretamente do espetáculo, via chat, relatando seus próprios medos. No fim, eles reaparecem para interagir com os atores. No caso de “A arte”, o público deve comprar seu ingresso no site Sympla, plataforma que funciona nos moldes de outras que vendem tíquete on-line, mas vai além, também transmitindo o espetáculo. Ali, ele recebe instruções sobre o aplicativo que deve instalar e o que fazer (que horas acessar, usar fones de ouvido etc.). Depois que o “palco” se abre na tela do computador ou celular, a peça se desenrola, ora com somente um ator em cena, ora com todos os 18 contracenando em pequenas janelinhas.
— Sigo toda a minha rotina, como se estivesse apresentando um espetáculo fisicamente no teatro. Faço minha concentração, minha contrarregragem. Por isso, é importante saber que há uma plateia ali me aguardando — explica o ator Ivam Cabral, um dos autores do texto, juntamente com Rodolfo Garcia Vásquez. — Quando a peça termina e as várias telinhas se acendem revelando o espectador em casa, aplaudindo, se emocionando, eu sinto realmente que estou fazendo teatro.
O teatro — e outras formas de arte e entretenimento — está no fim da fila para retomada das atividades quando (ou se) tudo voltar mais ou menos à normalidade. Por isso, a necessidade de buscar alternativas. Aos poucos, outros espetáculos seguem a mesma trilha. “Desamparos”, de Cléo de Paris com direção de Fábio Penna, é apresentado todas as terças-feiras, via Instagram, diretamente de um casarão em Barão de Cotegipe, interior do Rio Grande do Sul. No próximo dia 26, também via Zoom, começa a temporada do monólogo “Homem de lata”, com Mouhamed Harfouch e direção de Moisés Liporage e do próprio ator. Ele interpreta Marcão, um sujeito isolado da mulher e do filho recém-nascido por conta da pandemia.
Com proposta semelhante, o projeto Teatro Já é uma iniciativa da atriz Ana Beatriz Nogueira para transmissões on-line de peças diretamente do palco do Teatro Petra Gold, no Rio, a partir de 4 de julho. Serão textos encenados por gente como Marcelo Serrado, Paulo Betti, Mariana Lima e outros. Sempre com plateia virtual, com o público atuando antes, durante e depois do espetáculo.
“Onde estão as mãos esta noite”, monólogo dirigido por Moacir Chaves e também transmitido por Zoom, segue o mesmo caminho:
— Nosso espetáculo foi concebido durante a quarentena, mas não necessariamente para a quarentena. Fazer ao vivo cada sessão faz toda a diferença, ou teríamos gravado o espetáculo e disponibilizado numa plataforma qualquer — explica Moacir. — Nem acho tão importante discutir agora se é teatro ou não é teatro, é um meio de encenação que nos permite chegar a muita gente, e que tenho certeza que sobreviverá à quarentena. Não ameaça e nem substitui o teatro.
Algo de cinema
“Onde estão as mãos esta noite” parte de texto de Juliana Leite para dissecar a relação das pessoas com o corpo em tempos de pandemia. Em cena, a atriz Karen Coelho se vale dos espaços exíguos e de muita expressão facial para inventar seu próprio palco. A direção cria uma cena semi-cinematográfica, em que os closes — impensáveis no teatro convencional — são parte decisiva da narrativa.
— Alguma coisa ali vem do cinema, o enquadramento, por certo. Ao mesmo tempo, te dá a possibilidade de ficar muito próximo ao rosto de um ator exatamente no momento em que ele está atuando, uma espécie de minimalismo maximizado — analisa o filósofo e professor de Estética Márcio Sattin, que assistiu a “Onde estão as mãos…” semana passada e rejeita a necessidade de rotular o formato. — O importante no momento é fazer e fazer e fazer. Esticar o formato, testar seus limites, aí as regras e conceitos se impõem.
cada noite que abre a porta de seu quarto e arrasta a cadeira para iniciar o espetáculo, Karen Coelho sente-se como se estivesse prestes a entrar em cena, com a tensão e o frio na barriga que sempre sentiu ao pisar no palco.
— Eu escuto o público entrando na sala de espetáculo pelo computador, que fica em outro cômodo da casa. Ouço o burburinho do público como se estivesse espiando pelo buraquinho da cortina. Tocamos o terceiro sinal e entro em cena tomada pela mesma adrenalina de estar no palco diante do olhar da plateia. Pronto: estou no teatro.
Fonte: O Globo
Imagem: Andrea Adeloya