O mundo tem estado tão focado no combate ao covid-19 que está deixando de fazer-se algumas perguntas imprescindíveis ao futuro. Entre fake news, contradições, profetas de ocasião, líderes políticos insanos, corridas contra o tempo e pela vida, sobram apenas o ódio e a busca precipitada por culpados. Mas ‘o que virá depois dessa pandemia’ é a questão deixada de lado pelos discípulos do desespero.
Diante deste cenário caótico e fértil para teorias conspiratórias, pílulas informativas constroem hipóteses rasas e pouco criteriosas. Algumas delas, inclusive, foram alardeadas por chefes de Estado e a alta cúpula de governos mundo afora, tal como Donald Trump nos EUA e, no Brasil, Abraham Weintraub (Ministro da Educação…) – ambos acusaram a China de ter planejado e se beneficiado com a pandemia. Porém, dado o histórico de ‘histeria’ dos dois e de pouco serem afeitos a apresentarem provas do que falam, suas declarações só serviram mesmo para alimentar o discurso de haters acéfalos.
O intuito do JOLRN, porém, é o de propiciar aos seus leitores um debate rico e fomentar questões de alto nível. Talvez, a principal delas seja: “por que tantas epidemias têm surgido a partir da China?” A resposta não é tão simples, nem recente e muito menos encontra lastro nas ridículas teorias supracitadas. Por isso mesmo subdividiremos o assunto para uma melhor compreensão.
VÍRUS DE ORIGEM ANIMAL
As epidemias advindas da China possuem uma característica muito peculiar: são de origem animal (zoonóticas). Além da atual pandemia de Covid-19, a Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave) em 2003, a Gripe Aviária (H5N1) em 2005 e até mesmo a Peste Negra que varreu o mundo no século XIV tiveram estes ‘endereços’ de origem biológica e geográfica. Mas por que a China?
“Além de ser o país mais populoso do mundo, com cerca de 1,4 bilhão de habitantes, há um histórico de fome e de consumo de qualquer tipo de animal, além da criação de animais sempre muito perto ou dentro de casa, principalmente porcos e aves”, afirma o médico sanitarista Claudio Maierovitch, da Fiocruz (Fundação Osvaldo Cruz), em Brasília.
A FOME
Vários vídeos circularam pelas redes sociais mostrando feiras de rua chinesas (‘mercados molhados’, como são conhecidos) e os hábitos alimentares ‘peculiares’ dos cidadãos deste país. Para desespero do autoproclamado ‘civilizado’ paladar ocidental, lá estavam expostos animais os mais diversos, tais como cobras, cachorros, ratos, aranhas, escorpiões e insetos, todos prontos para o abate e/ou consumo imediato. Os reducionistas e abilolados de plantão julgaram terem encontrado nestas imagens a justificativa para os discursos de ódio que povoaram a internet nas semanas subsequentes. Pura ignorância.
Tal como citamos anteriormente, o Covid-19 teve como provável origem um animal infectado (a hipótese é que tenha sido um pangolim) que foi consumido por um humano. Porém, além das questões culturais envolvidas, a fome e a falta de comida são a principal razão para o consumo de tamanha variedade animal, principalmente advindas das florestas. Sim, pois apesar de a China ser a segunda maior potência econômica do mundo, a distribuição dessa ‘prosperidade’ passa longe da maioria das 1,4 bilhões de pessoas que ali residem. Para se ter uma ideia, 1/3 da riqueza do país está concentrada nas mãos de apenas 1% dos cidadãos chineses.
Para todos os demais restam apenas os salários baixíssimos, cargas horárias desumanas, trabalho infantil nas fábricas e direitos trabalhistas praticamente inexistentes. Não à toa várias empresas do mundo inteiro transferem para a China suas linhas de produção, maximizando seus lucros às custas da miséria chinesa e recordes de suicídios nas fábricas.
A CULTURA ORIENTAL
Tal como em qualquer país do mundo, existem mitos e costumes que se baseiam muito mais na tradição do que na racionalidade científica. No Brasil, por exemplo, há a crença de que o ovo de codorna seja afrodisíaco, assim como a catuaba e a ostra crua. O mesmo ocorre com a China em relação a vários itens advindos de sua fauna e flora.
A medicina chinesa, para se ter ideia, crê que a escama do pangolim (o provável transmissor do covid-19…) melhoram a circulação sanguínea, tratam doenças respiratórias, problemas menstruais, de amamentação e até a artrite. Sim, pode até ser crendice, mas estamos falando de um país com mais de 4 mil anos de história e costumes arraigados.
CONTRABANDO E DINHEIRO
Nem todo o consumo relacionado a culinária e a medicina chinesa fica restrito ao campo da cultura e da tradição, tendo antes um pano de fundo bem mais sórdido. O pangolim (ele de novo…), por exemplo, é considerado hoje o mamífero mais traficado no mundo, com cerca de 100 mil animais sendo caçados com esta finalidade. E lembram da escama usada para fins medicinais? Pois bem: ela é vendida por até US$ 1,5 mil o quilo. A carne, servida ilegalmente nos restaurantes da China e do Vietnã, chega a custar US$ 250 o quilo.
Em uma matéria publicada em 2015 pela BBC News, um ativista vietnamita desabafou sobre tais práticas espúrias enraizadas:
“O problema não são os pobres e analfabetos vietnamitas, e sim a elite mais rica do país ─ os oficiais do governo e os ricos que pedem pangolim apenas para mostrar status ou celebrar o fechamento de um bom negócio. Noventa milhões de vietnamitas não podem mais ver pangolins em seu próprio país porque uns poucos ricos do governo ou empresários querem comê-los”, disse ele, irritado.
FABRICADO EM LABORATÓRIO?
O professor e médico virologista francês, Luc Montagnier, vencedor do Nobel de Medicina de 2008, afirmou categoricamente que o covid-19 foi criado em um laboratório de Wuhan, na China. Ele, que recebeu a mais alta honraria da ciência por ter descoberto o vírus do HIV, diz ter analisado o coronavírus e descoberto que este possui sequências do vírus causador da aids. “Esse tipo de mutação precisa de ferramentas, não acontece na natureza”, afirmou taxativo.
As palavras do pesquisador ecoaram ainda mais pelo fato de o laboratório chinês em questão ser especializado no covid-19 desde o início dos anos 2000. Porém, sobre a possível culpa do laboratório, o médico afirmou: “acredito que estavam em busca de uma vacina contra o HIV e usaram um coronavírus como vetor”, não crendo portanto que se tratava de algo premeditado.
Ainda assim, um estudo conduzido por cientistas de três países contradiz as afirmações de Luc Montagnier. Publicado na revista Nature Medicine, o artigo afirma que a eficácia do vírus ao se ligar a células do corpo humano sugere que ele é resultado de seleção natural. Diz ainda que o covid-19 tem semelhanças com vírus conhecidos que afetam morcegos e pangolins, que não seriam usados na engenharia genética.
Corroborando com as afirmativas do estudo supracitado, vários membros da comunidade científica global creem que o novo coronavírus tenha evoluído em alguma espécie de animal e feito a transição para o organismo humano.
A PANDEMIA BARATEOU AS AÇÕES E A CHINA ESTÁ LUCRANDO?
Uma das teorias conspiratórias mais divulgadas (e sem nexo…) é que a queda das bolsas de valores do mundo todo permitiria que os chineses comprassem ações a preços menores. O que os ‘conspiradores’ se esquecem é que o mercado é livre, permitindo que clientes do mundo todo possam realizar tais transações, não apenas os chineses. Em outras palavras, as ações ficaram baratas para todos.
Além disso, as quedas das bolsas foram generalizadas, incluindo-se aí as da Ásia e consequentemente da China.
QUAL A PRÓXIMA PANDEMIA?
Dificilmente, em meio a tanta ‘poluição informativa’, descobriremos qual a verdadeira causa dessa doença que está assolando o mundo. Ainda assim, como Jornalista e Cidadão, não deixo de me perguntar: “o que deve ser feito para evitar que uma nova pandemia surja?”, pois atualmente nada parece nos resguardar que algo assim volte a acontecer. Porém, há um silêncio diplomático sobre isso.
Se muitos dedos acusadores foram apontados para a China, esta tampouco se prontificou a informar seus caminhos futuros. Campanhas internacionais inundaram a internet pedindo o fim do consumo da carne de caça (#rejectgamemeat ou ‘rejeite carne de caça’), assim como dos ‘mercados molhados’, mas foram solenemente ignoradas pelo governo chinês. E assim, um grandessíssimo ‘não é comigo’ vai sendo delineado no horizonte vindouro das responsabilidades sanitárias chinesas.
O professor Rodney E. Rohde, especialista em doenças infecciosas e microbiologia clínica, da Faculdade de Saúde da Universidade Estadual do Texas, afirmou:
“Ainda não acredito que a lição sobre ‘mercados de animais vivos’ tenha sido aprendida. Acredito que as autoridades governamentais e de saúde pública precisam examinar atentamente esses tipos de mercados de animais para diminuir as chances de um ‘salto’ de novos micróbios [oriundos de animais] nas populações humanas.”
O QUE FAZER?
A China é um dos mais atrativos mercados do mundo e por isso mesmo poucas nações estão de fato interessadas em contrariá-los. Mesmo os EUA, outro gigante econômico, tem pisado em ovos ao anunciar sanções aos chineses – tendo mais ‘latido’ do que ‘mordido’ de fato – e as coisas seguem nesse jogo blasé de faz-de-conta.
Um boicote aos produtos chineses seria praticamente impossível, pois eles estão presentes até mesmo em objetos que aparentemente não são ‘made in China’ – na forma de componentes e insumos os mais diversos. Ainda assim, é possível pressionar apoiando e/ou criando entidades independentes de pesquisas científicas, assim como observatórios de jornalismo investigativo, mantendo a circulação de informações.
Foram estas ações que venceram a carapaça da censura imposta, no início da pandemia, pelo governo chinês e tornaram públicas as denúncias de pessoas como o médico Li Wenliang*, primeiro a identificar a existência do surto e logo perseguido por forças policiais chinesas.
* Infelizmente, o médico Li Wenliang acabou por morrer vítima do covid-19, no dia 07 de fevereiro deste ano.