Minha família tem um certo trauma com galos que cantam fora de hora. Isso começou exatamente em 23 de dezembro de 1918 na cidade de Luiz Alves em Santa Catarina.
Era pelo meio da manhã quando o galo cantou pela primeira vez. Minha avó era menina, tinha 13 anos, estava ali pela cozinha ajudando minha bisavó, Anna, a fazer o almoço e contava que ouviram o canto do galo e ele parecia triste: longo, rouco, distante. Por algum motivo, minha bisavó desgostou daquilo, pareceu incomodada. Pediu para um dos meus tios-avô (minha avó tinha 10 irmãos: 6 homens e 4 mulheres) tirar o galo de perto da casa e continuou a lida na cozinha.
Já perto da hora do almoço, com tudo pronto para servir, o galo voltou de onde tinha sido deixado e novamente cantou de forma triste. Era a segunda vez. Parecia lamentar alguma coisa. Não ‘pedia’ nada nem batia as asas. Só cantava longamente. Tristemente.
Minha avó conta que a mãe dela gritou com quem estava perto: “Leva esse animal daqui! Lá pra baixo no pasto. Bem longe. Não quero mais escutar esse bicho”. Um dos irmãos da minha vó correu com o bicho pra bem longe. A propriedade era grande, bonita, bem cuidada. Meu bisavô Jacó criava ovelhas e tinha algum gado. Também tinha uma “Venda” ou “Secos & Molhados” como era chamado o comércio da época que tinha um pouco de tudo: comida, ferramentas, tecidos…
Almoço servido, doente tratado, louça lavada, fogão ‘tampado’, cozinha arejada, casa limpa, às vezes um breve descanso e logo era a hora do café da tarde, tudo como as famílias das colônias faziam antigamente. E, no fim da tarde, um novo canto. Pela terceira vez. Agora mais triste, mais longo e ainda mais rouco. E aí começa uma tradição familiar: o trauma com galos que cantam fora de hora.
Meu bisavô Jacó Treiss, doente há uma semana, não resistiu e morreu no início daquela noite, antevéspera de Natal, aos 52 anos. Até hoje, qualquer um de nós da família – mesmo que não tenha ouvido essa história, sente alguma coisa diferente, uma certa tristeza quando ouve um galo cantar fora de hora.
E o que isso tem a ver com o Corona Vírus e a nova realidade econômica? Muitas semelhanças: meu bisavô foi vítima da Gripe Espanhola, a pandemia do início do Século XX e a família teve que sobreviver a isso.
A tragédia que se abateu sobre a família Treiss a partir daí demorou muito para ser mitigada. Imaginemos uma mulher com 11 filhos e pouca ou nenhuma experiência em negócios, de repente, tendo que administrar uma pequena fazenda e um grande comércio. Sozinha.
Anna Vels, de família originalmente alemã, mas radicada no Brasil desde meados do século XIX em Pomerode, Santa Catarina, casou-se com Jacó Treiss e se mudou no início do Século XX para Luiz Alves, 50 quilômetros distante, deixando pai, mãe e irmãos. Com a morte prematura do marido, teve que enfrentar o destino.
Tenho boas lições dessa história, apesar da tristeza que essa morte impingiu à família.
Primeiro: muitas vezes a gente está sozinho, mesmo tendo amigos e família.
A distância de Luiz Alves a Pomerode, 50 quilômetros, parece pouco hoje, mas há 100 anos, não havia estradas e o transporte era a pé, a cavalo ou de carroça. Dependendo das condições, podia demorar dois dias. Assim, a família não era uma alternativa de apoio para Anna Vels, agora Treiss. E todos tinham seus problemas.
Segundo: a economia em queda vale para todos.
Minha bisavó teve que contar com os filhos para tocar as terras e o comércio com muito pouco capital. Além das terras e do comércio, meu bisavô também emprestava dinheiro para seus clientes, mas não era um capitalista ferrenho. Era muito mão aberta e cobrava pouco. Quando minha bisavó começou a cobrar, visitava os devedores e normalmente recebia como resposta que a situação estava difícil, não havia negócios, as pessoas estavam doentes ou havia mortos na família. Então, ela se virava e falava em alemão para o filho que estivesse com ela deixa “für die Heilmittel”. Deixa “para o remédio”. Quanto dinheiro não foi perdido aí?
Terceiro: continuem a trabalhar. Todos.
A família não teve tempo de chorar os mortos ou entrar em depressão. Onze filhos exigem muita comida, muita roupa, muito trabalho e… união.
Todos se ajudavam. Os mais velhos trabalhavam e cuidavam dos mais novos e os mais novos faziam o que podiam, pelo menos, para não atrapalhar. E tinham bons exemplos: a mãe era incansável e o pai, quando vivo, não parava um minuto. Literalmente. Dizia-se que era fácil encontrar o Jacó. Bastava seguir a trilha que ele deixava ao andar: não parava nem para ir ao banheiro. Fazia o número 1 andando mesmo.
Quarto: mantenha as contas e registros organizados.
Minha bisavó só conseguiu ir atrás dos devedores porque meu bisavô deixara tudo registrado. Não era lá um grande cobrador, deixava muitas dívidas em aberto, mas tinha tudo anotado.
Muito dinheiro se perdeu após sua morte, mas, ainda assim, algo pode ser recuperado.
Quinto: valorize os seus recursos atuais. Esqueça o que foi perdido.
É certo que o empreendedor Jacó Treiss morreu relativamente jovem, mas deixou a mulher e os filhos com alguns recursos. No entanto, se eles não tivessem reagido, provavelmente, a família teria se dispersado ou acabado com outras mortes por fome ou doenças.
Sexto: tudo passa.
Se nós, netos e bisnetos de Jacó Treiss e Anna Vels estamos por aqui, é porque nem toda tragédia é para sempre. Manter a esperança ajuda a trabalhar com um objetivo bem claro: vamos voltar a ter o que tínhamos. Ou mais.
Essa foi a saga de um pequeno núcleo familiar brasileiro que enfrentou a Gripe Espanhola. Saiu ferido, mas as cicatrizes são apenas o registro da luta que venceram. E nós, hoje, como seremos vistos daqui a 100 anos?
Na quarta parte deste artigo vou propor uma resposta, mas, antes, vamos ver como um húngaro radicado na Croácia “comeu o capim que os soldados amassaram” e acabou vindo para o Brasil no ano de 1.925.
Por João Carlos Nagy – Sócio Diretor da Capelo & Nagy – Comunicação e Marketing
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