A medida, adotada em outros países, é defendida como uma forma de conter o avanço do novo coronavírus. Especialistas, no entanto, alertam que esse tipo de vigilância não pode levar à violação do direito à privacidade assegurado na legislação.
Nos moldes atuais, o sistema em desenvolvimento no Brasil não permite ao governo federal ter acesso à identidade e ao número de telefone das pessoas que transitam pelas ruas com esses aparelhos, como tem ocorrido na China, na Coreia do Sul e em Israel, por exemplo.
Segundo o SindiTelebrasil (Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal), os dados relativos a quase 220 milhões de aparelhos celulares serão repassados com um dia de atraso de modo aglomerado, estatístico e anonimizado, a partir da coleta de informações por quase cem mil antenas. O sistema deve ficar pronto em até duas semanas.
O modelo chinês de uso de dados de telefones celulares no combate à pandemia é considerado até agora um dos mais eficientes do ponto de vista sanitário, e um dos mais controversos acerca do direito à privacidade.
O governo chinês adotou uma série de ferramentas, com base em GPS, antenas de celular, aplicativos e QR Code, entre outros, para identificar a localização de alguém infectado dias antes da confirmação do diagnóstico, contatar e por vezes isolar quem estava no mesmo vagão de metrô, e não no veículo inteiro, por exemplo.
A medida serve também para proibir pessoas de entrarem em prédios ou transportes públicos ou identificar se alguém em quarentena desrespeitou a medida de isolamento imposta.
‘Precisamos dar agilidade’
O ministro da Saúde brasileiro, Luiz Henrique Mandetta, defendeu que as operadoras de telefonia disponibilizem os dados pessoais individualizados para as autoridades de saúde localizarem pessoas infectadas, mas o setor de telefonia móvel e a Advocacia-Geral da União afirmam que a legislação brasileira veda isso.
“Eu peço aqui para as telefônicas que disponibilizem isso. Se houver necessidade de nós regulamentarmos que, em caso de epidemia, como estamos vivendo, isso passa a ser público, porque não tem outro jeito de localizar tão rápido. Se eu for pedir onde a senhora mora, qual o número da sua casa, do seu CEP. Pelo número do telefone, eu caio no endereço onde ele está registrado. Podemos ter erro para cá, para lá? Podemos, mas já teríamos o dado do nome da pessoa, do CPF. Precisamos dar agilidade para esse profissional”, disse Mandetta.
Em entrevista à BBC News Brasil, o presidente-executivo do SindiTelebrasil, Marcos Ferrari, afirma que o compartilhamento dos dados com esse nível de detalhe seria ilegal.
“Do ponto de vista da legislação (vigente no Brasil), a solução com dados anonimizados e agregados é o máximo que podemos fazer. Mas a maneira que isso avança depende de cada país. Nós só nos limitamos a esses dados estatísticos.”
A iniciativa brasileira, cujos moldes partiram do setor privado, se inspira em estratégias menos invasivas à esfera privada adotadas por países como a Espanha, que utiliza o distanciamento social como principal medida contra a pandemia que infectou ao menos 1 milhão de pessoas e matou 50 mil ao redor do mundo.
Segundo Ferrari, do SindiTelebrasil, o sistema brasileiro permitirá às autoridades federais identificar pontos de aglomeração, em transportes públicos, estabelecimentos e espaços públicos, como ocorreu durante a Olímpiada de 2016, e associar esses dados a modelos matemáticos que tentam entender e prever o espalhamento do vírus.
Até o momento, o Brasil confirmou 7.910 casos da doença e 299 mortes em mais de 400 municípios. Seis em cada 10 diagnósticos confirmados estão na região Sudeste.
O governo federal ainda não definiu a governança desses dados e quem estará à frente dela, como o Ministério da Defesa ou o Ministério de Ciência e Tecnologia, por exemplo.
Especialistas em privacidade de dados e direitos civis na internet afirmam que esse tipo de solução deve evitar qualquer violação ao direito à privacidade, como a que defende o ministro da Saúde.
Outros estudiosos afirmam que só será possível comentar o assunto quando tiverem acesso ao acordo de cooperação técnica entre o governo e as empresas de telefonia.
Mas o que diz a lei brasileira sobre o eventual uso de dados pessoais a partir de dispositivos móveis para conter uma pandemia?
Dados pessoais: só com aval judicial
Em março, a Secretaria de Telecomunicações consultou a Advocacia-Geral da União (AGU) sobre a “possibilidade de dados de geolocalização, obtidos a partir de dispositivos móveis de comunicação, que permitam a identificação individualizada do usuário, para fins de combate ao COVID-19”.
A consulta surgiu após o envio de informações técnicas da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
Segundo a agência, já há inclusive “debate em curso para a sobreposição de indicadores de renda e faixa etária a essas camadas (de localização, deslocamentos e concentrações de usuários), por exemplo”.
A própria Anatel levanta a hipótese de uso indevido desses dados que só podem ser compartilhados por força de decisão ou autorização judicial.
“Ferramentas iniciadas com um determinado propósito podem rapidamente evoluir para formas de rastreamento, em última instância, pessoa a pessoa com a produção de elementos que venham a ser inclusive objeto de debate no Judiciário.”
Vale lembrar que a norma e a autoridade que poderiam tratar desse tema, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), só entrarão em vigor em dezembro de 2020.
No Brasil, dados anônimos não são considerados dados pessoais e, portanto, não têm obstáculos legais ao seu compartilhamento.
A legislação brasileira também diferencia a comunicação de dados (horário das chamadas, por exemplo) e o teor da comunicação (como mensagens e telefonemas), estes com sigilo assegurado na Constituição.
O problema reside nos dados pessoais individualizados, que atualmente só têm o sigilo quebrado por meio de pedido à Justiça por parte de polícias e Ministérios Públicos durante investigações.
O eventual uso de dados de celulares faz parte de uma lei sancionada em fevereiro pelo presidente da República, Jair Bolsonaro. Um dos artigos do texto, que trata da estratégia do país para conter a pandemia, prevê o compartilhamento entre órgãos e entidades públicas de “dados essenciais à identificação de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção de coronavírus”.
O que será compartilhado?
Mas que tipo de dados seria compartilhados? Anônimos ou identificados, como defende o ministro da Saúde?
Em parecer, a Advocacia-Geral da União (AGU) afirma que a legislação permite a “viabilidade de compartilhamento dos dados na forma anônima e agregada”, com a devida cautela de minimizar a quantidade de dados coletados e compartilhados.
E a localização geográfica dos celulares? Para a AGU, cabe à Justiça decidir sobre isso.
“Entende-se, assim, que seria necessária análise jurídica mais aprofundada acerca da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF quanto à inclusão, na cláusula de reserva de jurisdição prevista no artigo 5, inciso XII, da Constituição Federal, de dados de geolocalização, obtidos a partir de dispositivos móveis de comunicação, que permitam a identificação individualizada do usuário.”
Segundo Bruna Martins, analista de Políticas Públicas e advocacy da organização Coding Rights, “a utilização de dados de qualquer cidadão brasileiro contra a covid-19 requer transparência sobre quais informações são coletadas e processadas a fim de que seja possível saber se o uso desses dados é realmente necessário e proporcional aos fins”.
Para ela, é importante que a sociedade saiba quais dados serão compartilhados exatamente para que se evite legitimar “mais vigilância privada e estatal, algo já inaceitável, motivada pela urgência da crise de saúde pública”.
Interesse coletivo x individual
Ao longo do avanço da pandemia, tem ganhado força o debate em torno de medidas que utilizam dados pessoais e sistemas de vigilância para combater o vírus. Até onde o interesse coletivo pode avançar sobre o individual?
Para parte dos especialistas e das autoridades, o debate sobre o direito à privacidade nesse momento não é apenas irrelevante como também pode ser fatal. O lado oposto aponta o risco da instalação de um Estado de vigilância permanente em nome de um bem comum e em detrimento do direito à privacidade.
O economista italiano Luigi Zingales, professor da Universidade de Chicago, afirmou à BBC News Brasil que o uso disseminado de celulares por todos os estratos sociais resolve uma dificuldade histórica de rastrear as pessoas e evitar que um vírus se alastre a ponto de sobrecarregar o sistema de saúde por faltar leito para todo mundo. Mas a estratégia só seria efetiva no início de um surto, por ser impossível monitorar metade da sociedade, por exemplo.
A Coreia do Sul, por exemplo, se tornou um dos países mais eficientes em achatar a curva de contágio, ou seja, evitar que muitas pessoas fiquem doentes ao mesmo tempo ao identificar rapidamente quem contraiu o vírus e as pessoas com quem ela teve contato.
Para isso, o país asiático usa imagens de câmeras de vigilância, dados de geolocalização individualizados e até compras de cartão para identificar o trajeto das pessoas infectadas e quebrar a cadeia de contágio.
Mila Romanoff, chefe de governança e dados de um órgão da Organização das Nações Unidas, afirmou ao jornal americano The New York Times que o desafio é saber: “Quantos dados bastam?”
Em Israel, o governo aprovou medidas de emergência que autorizam suas agências de segurança a rastrear os dados de telefones celulares de pessoas com suspeita de coronavírus.
Em resposta, a Associação dos Direitos Civis de Israel disse que a mudança “abre um precedente perigoso”, já que tais poderes são geralmente reservados para operações de combate ao terrorismo.
Uma vez que um indivíduo seja identificado como um possível caso de coronavírus, o Ministério da Saúde poderá rastrear se a pessoa está cumprindo ou não as regras de quarentena. E também pode enviar uma mensagem de texto para pessoas que podem ter entrado em contato com elas antes que os sintomas surgissem.
“Israel é uma democracia e devemos manter o equilíbrio entre os direitos civis e as necessidades públicas. Essas ferramentas nos ajudarão a localizar os doentes e impedir que o vírus se espalhe”, afirmou o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.
Em Cingapura, o governo divulga na internet informações sobre a conexão entre os casos diagnosticados (quem infectou quem) e dados sobre pessoas infectadas que podem levar à identificação delas por outras.
A exemplo, “o caso 227 é um caso importado envolvendo um cidadão cingapurense de 53 anos que esteve na França entre 7 e 12 de março” e “trabalha na Igreja Evangélica do Farol”. Na Coreia do Sul, esse tipo de medida levou à acusações de adultério contra alguns dos infectados.
Na Rússia, o aplicativo criado pelo governo para combater a pandemia demanda acesso no celular a telefonemas, arquivos, câmera e dados de rede.
Em Taiwan, a polícia abordou um homem infectado menos de uma hora depois que ele deixou sua casa, desrespeitando o isolamento imposto.
“Nós entendemos o impulso de usar tecnologia para prevenir a disseminação do vírus, e encorajamos esforços de boa fé para preservar a saúde pública. Mas precisamos permanecer atentos para garantir que aqueles que estão no poder ajam em nome do interesse público”, afirmou a organização não governamental Surveillance Technology Oversight Project (Stop).
Fonte: BBC News Brasil
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