Elas são maioria no Brasil, nas universidades e até entre os gamers. Contudo, as mulheres precisam continuar lutando por direitos iguais, por espaços justos e o pelo fim da tripla jornada de trabalho. Vítimas da injustiça, precisam se submeter a salários menores ou, pior, se esconder para não serem mortas dentro da própria casa. Ainda assim, elas vão assumindo cada vez mais espaços e vencendo as adversidades com coragem, resiliência e sonhos, como é o caso de Soraya Roberta dos Santos Medeiros, uma baixinha arretada de Jardim do Seridó que se prepara a vida toda para ser professora e ajudar meninas carentes, como ela, a mudar o mundo.
Filha de uma empregada doméstica, Soraya cresceu vencendo as dificuldades financeiras e o preconceito direcionado ao seu pai, que sofre de esquizofrenia. Apesar disso, não se agarrou ao medo, pelo contrário, construiu na tia Gersi Medeiros, professora da rede municipal, um espelho para o qual olhar. “Ela me introduziu Paulo Freire aos 10 anos de idade. Eu não entendia o que era a Pedagogia do Oprimido, embora já a vivesse. Aquilo foi muito marcante para mim porque, com o passar dos anos, fui entendendo o que era na prática e tentando fazer diferente por meio daquilo que eu já tinha em mãos”, diz ela com um sotaque bonito do Seridó.
Aprendeu a gostar de tecnologia cedo quando, em 2012, entrou no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), campus Caicó, onde fez o curso de Técnico em Informática. “Como eu não tive condições financeiras de ir para Natal fazer licenciatura no IFRN da Zona Norte, em Ciências da Computação, ou ir para outro estado, tive de ficar em Caicó e cursar Sistemas de Informação. Tracei todo o meu curso para que eu pagasse as disciplinas do bacharelado enquanto estudava assuntos de pedagogia”, conta.
De 2016 a 2019, Soraya cursou o Bacharelado em Sistema da Informação (BSI) no Centro de Ensino Superior do Seridó (Ceres/UFRN). Em 2018, ganhou o primeiro lugar, Bolsa-Ouro, de melhor projeto de pesquisa da área de ciências humanas, com uma ideia que chamou de Poesia Compilada. E aí, a menina que queria ser professora foi além e, além de professora, tornou-se pesquisadora, guiando um projeto que ela mesma criou. “Montei uma equipe com a professora de Pedagogia, Tânia Cristina, do Ceres, e com o professor Humberto Rabelo, meu orientador. Eles me guiaram durante o curso para fazer a aplicação, ir às escolas e realizar o projeto”, conta.
O projeto, que começou a ser desenvolvido desde 2017, visa a ensinar pessoas a programar por meio de poesia. “Eu percebi que tinha facilidade de associar isso, porque do mesmo jeito que, nos poemas, a gente tem os versos, as estrofes e a métrica, no algoritmo, a gente também tem essa mesma estrutura semântica e sintática, o que vai mudar é a forma como você analisa essas estruturas. Do mesmo modo que existe uma forma de escrever um poema, também existe com os algoritmos, que são as linguagens de programação”, explica.
Soraya, que sempre amou tecnologia, queria introduzir o pensamento computacional e o ensino de algoritmos na educação básica e daí nasce sua problemática. Ela trabalhou fazendo analogias, dividiu o assunto em módulos, ensinou o que são as variáveis e as funções e, por fim, partiu para a parte mais sintática da estrutura de um algoritmo.
Abrindo o site do Poesia Compilada, é possível notar com clareza que, além de tudo, Soraya Roberta é também uma poeta, mas daquelas felizes que sabem, como poucos, usar bem a intertextualidade para tornar simples o que para a maioria é complexidade.
Florescendo em meio a espinhos
Se para ser mulher é preciso cruzar um mar de espinhos, ser uma mulher trans exige fazer essa travessia descalça. Mas o que tenta assustar Emilly Fernandes, 30, ela põe limão e come a dentadas. “Sou Emilly Mel Fernandes de Sousa, de fato e de direito, sou mulher ativista, trans e pessoa. Sou também psicóloga e mestra pela UFRN, sendo a primeira trans em 40 anos de curso”, enfatiza.
Extrovertida e sonhadora, Emilly faz de seu trabalho a extensão da vida para tornar as pessoas fortes como ela. Também incentiva as trans a buscarem, na educação, um caminho seguro para o futuro, por meio de sua atuação na ONG Attransparencia, que atua na busca por qualidade de vida para esse grupo.
Ajudar as colegas tem sido uma missão pessoal cada vez mais necessária em sua vida, tanto que busca resposta para essa problemática em seu mestrado. Ela estuda o acesso e a permanência estudantil de pessoas trans nas instituições públicas de ensino superior do estado. Nesse percurso, procura identificar a realidade, o que existe de políticas públicas e o que é colocado efetivamente em prática.
“Entrei no mestrado porque, quando eu comecei a conseguir os meus direitos, sempre quis que eles fossem coletivos e divulgava para que as pessoas trans soubessem que esses direitos não deveriam ser só para mim, mas para elas também. Foi um trabalho lindo, pioneiro aqui no estado e que me trouxe muitas reflexões sobre a vida das pessoas trans”, conta.
Emilly gosta de repetir que quer ser conhecida como pessoa, mas talvez só isso não seja suficiente. A verdade é que o que define essa jovem empoderada é a capacidade de ser pessoa resiliente, daquelas que têm coragem de encarar o mundo e, no meio do enxame, se colocar como Mel para adoçar os corações carentes de compreensão e afeto.
O laboratório é a vida
Quando todo mundo aproveitou para ir para casa nas férias, ver a família ou surfar no mar, Aléxia Micaella cruzou o país para se enfiar em um laboratório. Nunca existiu praia melhor do que o desejo de aprender. Apaixonada pela biologia, essa jovem de 21 anos nascida em Natal, mas criada a vida toda em Ceará-Mirim, onde alcançou o posto de miss, planeja a vida com muita matemática. De família humilde, sabe o que tem de percorrer para alcançar seus objetivos.
Como Soraya, quer ser professora, mas, antes de tudo, quer se estabelecer como neurocientista. É para isso que tem estudado desde a iniciação científica. No ano passado, foi aprovada em dois mestrados em Neurociências e hoje mora em Florianópolis, desde que decidiu estudar na Universidade Federal de Santa Catarina. Mas sua história começa antes da graduação.
Desde cedo sabia o que queria ser quando crescesse. No IFRN, cursou o técnico em Administração e decidiu o que queria fazer da vida: ser professora de biologia. “O IFRN foi e é muito importante para mim. Lá, além de decidir minha futura profissão, aprendi muito sobre ser cidadã. Devo muito a minhas professoras e professores”, conta.
Vida dura ter de vir e voltar de Ceará-Mirim todos os dias, mas viver é melhor que sonhar. Assim ela cursou a licenciatura em Ciências Biológicas e ingressou como voluntária no Laboratório Química e Função de Proteínas Bioativas (LQFPB), do Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular (DBB/UFRN). Para dar conta das atividades, precisava sair às 4h de casa e só conseguia voltar às 20h. A rotina exaustiva acabou fazendo Aléxia abrir mão do laboratório.
Um ano depois, ingressou em outra iniciação científica, dessa vez no Instituto do Cérebro da UFRN (ICe). Ficou por dois anos, mais uma vez, voltando à rotina longa e cansativa. “Comecei aprendendo sobre reprogramação celular, depois fui para o desenvolvimento cerebral. Quando saí, estava no desenvolvimento ainda, ajudando no projeto de doutorado de uma aluna do meu orientador. Estava analisando culturas de células, avaliando diferenciação em neurônios ou astrocitos, por exemplo”, explica a estudante, que teve a pesquisadora Bruna Landeira como sua tutora.
“No ICe, encontrei inúmeras mulheres que me deram suporte nos anos que fiquei por lá, e não digo isso apenas por questão de sororidade, mas porque tenho plena certeza que sem elas não chegaria até aqui, que ainda não é o fim”, diz a jovem. Ela cita Juliana Brandão, Geissy Araújo, Larissa Araújo e Sara Maia como pessoas que ajudaram não apenas na academia, mas também lhe dando suporte em muitos momentos da vida. “Por apoios como esses, eu consegui ser a única pessoa do estado selecionada para fazer um curso de verão na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Só tenho a agradecer a todas por tudo que foram para mim e que serão para tantas outras”, declara.
Na UFSC, cursando Neurociências, Aléxia vive uma realização, mas assegura que o sonho não acabou. “Ao terminar o mestrado, desejo fazer o doutorado fora do país. Se não fizer todo o doutorado, ao menos uma parte. Penso em ser professora, mas acredito que isso é bem mais para frente. De imediato, eu espero mais é seguir feliz e satisfeita com o caminho
que estou construindo, seguir encontrando e conhecendo muita gente boa no caminho e, quem sabe, sendo a pessoa boa do caminho de alguém também”, finalizou.
Lutando hoje pelo amanhã
Paula Rayssa da Silva Cunha é daquelas pessoas que vieram ao mundo para vencer. Ao menos no que depender de sua força de vontade, não há outro caminho a seguir. Aos 21 anos, é graduanda em Jornalismo e estudante do curso técnico em Tecnologia da Informação, ambos pela UFRN. Nessa correria, é preciso sobrar tempo ainda para o estágio na Companhia de Serviços Energéticos do RN (Cosern), pois ela é quem provém sua própria sobrevivência. Natural de Afonso Bezerra, não pode contar com os pais que também lutam para sobreviver.
Para ela, o mais desafiador em ser mulher hoje — além da falta de segurança, de reconhecimento de direitos e de oportunidades — é a responsabilidade de desbravar e construir um novo mundo, uma nova realidade para as futuras gerações. “Da mesma maneira que as mulheres que vieram antes de nós criaram o mundo que estamos hoje, é a nossa vez de lutar para garantir que as próximas tenham uma experiência melhor. Até que, de geração em geração, a gente possa construir o mundo que todas nós desejamos viver”, comenta.
O seu plano de vida é ser uma pessoa atuante na construção do futuro que acredita, seja por meio da atuação jornalística ou da inovação tecnológica. “Eu me vejo lutando por isso, dando voz para aquelas que lutam, cada uma à sua maneira, em prol de um futuro melhor, o futuro que a gente acredita. Mesmo que eu não chegue a vivenciar esse futuro, as próximas mulheres irão”, completa.
Encontrando força na união
Zélia Heloísa Suassuna Oliveira prefere ser chamada de Zelhinha. Comunicativa e de riso solto, chegou em Natal em 2013 para estudar, vinda de uma cidade pequena do interior do estado, chamada Lucrécia. Com seus 22 anos, já participou de projetos sociais na sua cidade, fez alguns anos de cursinho, passou por uma graduação — que não se identificou — e hoje, após ter mais contato com a área tecnológica, está estudando Tecnologia da Informação.
Para Zélia, ser mulher hoje é ocupar uma posição de equidade social, trabalhista, econômica e de oportunidades em relação aos homens. Ela acredita que as mulheres não são menos inteligentes ou mais frágeis, mas que cada uma é produto da sua própria essência, que é desenvolvida a partir de ideias e experiências de vida.
“Respeitar a trajetória do grupo feminino ao longo das últimas décadas, com suas inúmeras reivindicações por igualdade social, fez de mim uma pessoa mais forte e com consciência de classe. Eu encontro a minha força na união com as minhas semelhantes, principalmente no trabalho coletivo. Sei que não posso carregar tantas responsabilidades sozinha, mas a sororidade permite a mim e a outras mulheres maior êxito nessa trajetória”, conclui.
Como muitos cursos da área de exatas, Tecnologia da Informação é majoritariamente composto por homens, trazendo à memória a questão da representatividade. “Quando eu entrei na UFRN, em 2016, era muito natural e tranquilo ser mulher, visto que, no meu curso da época, as mulheres ocupavam a maioria das vagas. Entretanto, quando ingressei em TI, a minha realidade mudou consideravelmente”, afirma.
Apesar disso, Zélia conta que a coordenação do curso, juntamente à equipe pedagógica do Instituto Metrópole Digital (IMD), busca sempre tratar todos os estudantes uniformemente. “Isso faz com que situações de discriminação de gênero aconteçam com o mínimo de frequência possível. Também contamos com grupos formados por meninas da área para fomentar mais união e apoio entre nós”, diz.
Sobre os seus planos para o futuro, Zélia conta que durante o curso começou a desenvolver mais afinidade pela área e pretende ingressar em Engenharia de Software, após o 7º período. Também tem planos de fazer algum processo seletivo e ir morar no Canadá ou na Inglaterra, devido ao estilo de vida e ao conjunto de oportunidades que esses países proporcionam.
Imagens: Cícero Oliveira
Fonte: Agecom/UFRN