Entre novembro de 2018 e junho de 2019, tive oportunidade de conversar com diversos ex-proprietários de locadoras de games dos anos 90, em busca de informações para o livro que eu estava escrevendo.
Dentre todas as locadoras que frequentei naquela época, a HOT GAME, em Mossoró – RN, era, sem dúvida, a locadora mais completa que eu conhecia. Simplesmente fantástica!
Tentei inúmeras vezes conversar com o sr. Ricardo Falcão, o proprietário da HOT GAME, para incluir sua história no livro, infelizmente, por motivos diversos, não foi possível naquele período. Então, acabei registrando apenas o que eu lembrava sobre a locadora, além de memórias de outros ex-clientes.
Alguns meses após o lançamento do livro, por intermédio do amigo Aldivan Aldo, finalmente consegui um encontro com o sr. Ricardo, em sua residência. Conversamos por quase uma hora. Ouvi a história direto da fonte e transcrevo aqui suas palavras.
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Transcrição da conversa com o sr. Ricardo Falcão, em 05 de Dezembro de 2019.
As informações foram organizadas de forma a criar uma ordem cronológica para o relato.
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Eu sempre gostei de jogos eletrônicos. Nos anos 80 eu já tinha visto um Telejogo, era um jogo muito simples e era muito caro, não tinha como eu comprar. Mas sempre que eu via um fliperama, eu ia lá jogar.
No final dos anos 80 eu estudava em Fortaleza (CE). Certa vez fui numa loja e vi o Phantom System. Fiquei impressionado como os jogos eram bem feitos. Tinha também uma pistola e o jogo que atirava nos patos (Duck Hunt). Queria um aparelho daquele, mas era muito caro e não tive como comprar. Mas não me esqueci dele.
Quando voltei para Mossoró (RN), nas férias, soube que o Banco do Brasil estava contratando jovens para estágio. Consegui uma vaga lá e fiquei por Mossoró mesmo, não voltei mais pra Fortaleza.
Um dia fui numa loja no centro e vi um videogame da CCE que vinha com o jogo Super Mario (Nintendo), ai comprei, e gostei muito.
Comecei a comprar revistas sobre games e via os anúncios das lojas em São Paulo. Eu ligava pra lá, conversava com o pessoal e fiz amizade. No começo comprava jogos para mim mesmo, fazia o depósito bancário e eles mandavam pelo correio.
Os meus sobrinhos, que estudavam no Colégio Diocesano, contavam aos colegas que eu tinha os jogos, e eles iam lá em casa.
Eu já tinha visto nas revistas que haviam locadoras de games lá em São Paulo, então decidi colocar uma locadora em casa mesmo.
Comprei uma máquina de escrever e fazia o cadastro dos clientes em fichas de papel, com o nome dos pais, endereço e as pessoas autorizadas a pegar os cartuchos.
Na época eu trabalhava na CAERN (companhia de água), e meu pai às vezes me ligava pedindo pra chegar logo por que que estava cheio de “baixinhos” me esperando.
Chegou uma hora que não estava mais dando lá em casa, por que era menino demais. Aí vi que era a hora de eu ter o meu prédio.
Tentei alugar um lugar, e um familiar até tentou me fazer desistir do negócio, dizendo que era uma moda passageira. Mas como eu gostava, decidi continuar.
Meu pai me arranjou uma parte do terreno da casa dele e eu comecei a construir o prédio. E em junho de 1991, abri a locadora no novo prédio.
Escolhi o nome HOT GAME inspirado numa seção que tinha numa das revistas de games “hot games”, mas preferi colocar no singular.
O mascote era o Super Mario, numa pose dando um soco para cima. Mandei pintar na parede e depois fiz um letreiro em neon.
A parte do playgame não botei logo no início, só alugava os jogos. Então eu vi nas revistas umas cabines onde ficava a TV e o videogame pro pessoal jogar. Ai mandei fazer com um marceneiro aqui e foi o maior sucesso.
Eu gostava de ter tudo o que era top, diferente. Fiz amizade com um rapaz de uma loja em São Paulo, a “Gamescore”, e sempre que chegava novidade ele me ligava.
Fui o primeiro a trazer o Super Nintendo, Neo Geo, 3DO, Jaguar, etc. Chegou um tempo que ele mandava sem nem eu pedir, porque sabia que eu queria tudo.
Os jogos que faziam mais sucesso eram: Super Mario World, Street Fighter 2 e International Super Star Soccer.
Tinha uns clientes que chegavam de manhã e ficavam o dia inteiro, até de noite, não iam nem almoçar. Eu ficava preocupado com eles, gazeavam aula, não queriam estudar, eu pensava que não iam ter futuro.
Mas tem cliente meu que hoje em dia é engenheiro, médico, professor… graças a Deus se deram bem.
Tinha até engraxate que andava lá. Passavam por muita dificuldade em casa e ali era um momento de lazer pra eles.
Certa vez um dos meninos tinha viajado para Natal. Aí 3:00h da manhã tocou o telefone da minha casa, quando eu atendi era ele pedindo para eu marcar hora pra ele, por que ele vinha jogar assim que chegasse e não queria perder a vez.
Como eu morava vizinho, toda hora os meninos vinham chamar. Era 6:00h da manhã, antes de abrir, era na hora do almoço, depois de fechar. Não tinha hora.
Certo dia, eu estava em casa, aí umas 6 horas da noite chegou um menino com a mãe, e ela me pediu para entrar no prédio, por que o sonho do menino era conhecer uma locadora de videogame.
Eu fui lá com eles, e quando acendi a luz, o menino ficou parecendo que estava em outro planeta, e falou: “Meu Deus, estou no paraíso!”, a mãe quase morreu de rir. Nunca esqueci essa cena. Um tempo depois o menino faleceu em um acidente, foi triste. A mãe, vez por outra, ia lá na locadora pra conversar.
Um problema que acontecia sempre era o roubo de bicicletas. Alguns pais queriam me culpar, mas eu não tinha nada a ver. Eu botei um bicicletário na frente da locadora, mas os meninos chegavam tão vidrados para jogar videogame que largavam a bicicleta de qualquer jeito, sem trancar, aí alguém passava e levava.
Uma vez teve um aniversário lá na locadora. A mãe de um menino chegou e perguntou por quanto eu alugava o espaço. Fechei um valor com ela pelo tempo que ela queria. Aí o filho trouxe os amigos dele, teve bolo, uma festa danada.
Outras vezes eu levava os equipamentos e montava os videogames na festa, por que o espaço da locadora era pequeno, não dava pra muita gente.
Lembro que o dono da Casa da Revista organizou um campeonato de Street Fighter 2, lá no ginásio da AABB. Veio gente de Areia Branca, Assu e várias outras cidades. Quem ganhou foi um dos meninos que jogava na minha locadora.
Em 1994 eu decidi sair da CAERN pra ficar só na locadora. Coloquei outras coisas pra aumentar a variedade. Vendia chocolate, refrigerante, e botei também filmes e CDs de música pra alugar.
Comprei um computador com um sistema pra controlar os cadastros e aluguéis. Foi a primeira locadora a ter algo assim. Saiu até no jornal local.
Fui entrevistado em programas na TV, e fizeram matérias nos jornais, mas infelizmente não guardei nada. Não tinha a facilidade de hoje em dia para tirar fotos. Eu até tinha algumas, mas se perderam.
Como o negócio estava dando certo, começou a aparecer outras pessoas colocando locadora também.
Lauro, da Visão Vídeo, falou comigo que ia botar uma locadora de games e queria saber sobre o meu fornecedor, pra comprar as coisas da locadora dele.
Eu não tinha besteira, passava os contatos. A locadora não era só pelo dinheiro, era uma coisa que eu gostava. Eu era fã dos jogos da Nintendo e qualquer tempinho livre que tinha eu ia jogar.
Fiz amizade com meus principais concorrentes: Lauro da Visão, Carlinhos da Shop Game (perto do museu), Alex da Nicol Games, etc.
Alex até comprou umas coisas da minha locadora quando fechei em 2006. Me arrependo de ter vendido os videogames, devia ter ficado com eles.
A locadora acabou por que quando chegou o Playstation começou a aparecer jogo pirata praticamente de graça. O mesmo aconteceu com os DVDs de filmes. Aí eu desanimei.
Os clientes vinham e não queriam mais jogar no Super Nintendo, queriam o Playstation, jogo em CD. Qualquer lugar tinha pra vender os CDs bem baratinho, R$ 2,00, mais barato que o aluguel. Os originais, a gente comprava por uns R$ 100,00. Se tornou uma concorrência inviável. Foi isso aí que matou as locadoras.
A maioria dos meninos que jogavam naquela época ainda gostam de jogar até hoje. Muitos deles tem coleção de videogames em casa e jogam os mais novos também, Playstation, Xbox e Switch.
Eu continuo gostando muito de videogames, de filmes e de música. Tenho um Xbox no meu quarto e sempre jogo.
É gratificante ter o reconhecimento das pessoas. Acontece muito de eu estar em algum lugar, passa alguém e me chama: “Ricardo! Lembra de mim? Joguei muito na sua locadora”. Me pedem para dar um abraço.
Não consigo lembrar de todos, mas tem uns que eu vejo e reconheço. Eles cresceram, já tem filhos, uns engordaram, outros emagreceram.
O prédio onde funcionou a Hot Game ainda é meu, mas está alugado e funciona uma clínica de radiologia.
Depois que fechei, pensei em fazer uma confraternização para reencontrar o pessoal e conversarmos sobre aquele tempo. Quem sabe algum dia…
Abrahão Lopes – professor do Instituto Federal do RN, fã de jogos eletrônicos há mais de 35 anos, autor do livro Memorial Locadoras & Fliperamas e da série Guia Rápido: Xbox One (Jogos / Conquistas e Gamerscore).
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