Esqueça o programa da emissora plim-plim e siga direto para a celebrada obra literária de George Orwell, intitulada “1984”. É lá que encontraremos a obscura figura do “Grande Irmão”, personagem este que mantinha todos os cidadãos debaixo da vigilância governamental constante, sob o pretexto de estar zelando por eles. Teorias da conspiração a parte, nossos dias fariam corar o prestigiado escritor pelos requintes alegóricos.
Não foi preciso ir muito longe para substituirmos os vilões caricatos e suas patentes ferramentas de submissão e controle – que no mundo real seriam ambos desmascarados rapidamente. Bastou para tanto que transformássemos governantes em filhos carismáticos do marketing e a tecnologia vigilante em uma “ferramenta-brinquedo”, capaz de instigar cidadãos a não apenas deseja-la, mas até mesmo a pagar (caro) para obtê-la. Sim, estamos falando do nosso amado e onipresente celular.
Com aplicativos destinados até as demandas mais sui generis, jogos, redes sociais e comunicações plurais, os celulares são indubitavelmente os nossos companheiros mais constantes no dia-a-dia. Ele é o despertador ao lado da cama, é o jornal na mesa do café, o GPS com as melhores rotas, a agenda de afazeres, o cardápio do restaurante delivery, é o vídeo engraçado durante a cerveja com os amigos e a câmera fotográfica que registra o evento, tudo isso e mais um pouco na palma da mão. Porém, fora isso tudo, ele também provém um registro fidedigno e extremamente minucioso de tudo o que fazemos – algo conhecido como “metadados” – e que é cobiçado a preço de ouro pelas mais diversas entidades e empresas que operam no limiar da legalidade ou ignorando completamente tal preceito.
Não estamos falando simplesmente de hackers roubando senhas ou fotos indiscretas, mas de governos e corporações se apropriando da privacidade alheia. Em 2013, Edward Snowden revelou ao mundo que o governo americano (com a ajuda da Inglaterra…) monitorava conversas de cidadãos comuns e até de presidentes de outros países – dentre estes, a da então presidenta do Brasil: Dilma Rousseff. Cinco anos depois, qual a garantia de que o mesmo não continua a ocorrer? Nenhuma. Aliás, mesmo na época do sucedido, nenhum acordo de “limites” foi assinado, nenhuma ameaça de sanção foi arbitrada e nem um “observatório” civil foi criado… nada. Como via defensiva, simplesmente escolhemos tapar os olhos e “pensar positivo”.
Eis o ponto-chave: o mundo queria mesmo esquecer dessa história e de todas as ameaças latentes a privacidade as quais os celulares representam. Adictos que estamos, não importam quantas notícias de violações sejam veiculadas – como o recente escândalo do Facebook, envolvendo o uso ilícito de dados de 50 milhões de pessoas –, estamos dispostos a engolir tudo em nome de mantermos de pé nosso way of life. Os predadores de plantão, por sua vez, não se fazem de rogados e testam limites, entre avanços e recuos estratégicos contínuos.
Jogar para o celular a conta maior do imbróglio digital em que nos metemos parece injusto, mas não é. Peça-chave, ele consolidou o controle onisciente e voluntário do homem, configurando-se num inocente morador de bolsos e bolsas. O mais incômodo, porém, não foi a engenhosidade do plano no qual fomos todos pegos, mas sim de, conscientes dele, permanecermos… colonizados passivos, trocando tesouros por espelhos e bijuterias. #quedroga.
Imagem principal: reprodução.