Ela é silenciosa e traiçoeira. Surge como uma ferida indolor na área infectada que desaparece em até oito semanas sem deixar vestígio. Ressurge tempos depois com manchas e feridas no corpo e lesões nas palmas das mãos e dos pés, mas, em muitos casos, é confundida e tratada como alergia. O pior é que, após isso, os sintomas podem ficar adormecidos por anos, até retornarem causando úlceras pelo corpo, corroendo os ossos, afetando os nervos, olhos, coração, cérebro e provocando uma morte terrível.
Causada pela bactéria Treponema pallidum, a sífilis é uma doença infecciosa crônica exclusiva do ser humano. Sua transmissão mais comum é pelo contato sexual ou pela placenta, no caso do feto. Identificada no começo, é tratável de forma barata com penicilina benzatina (Benzetacil), mas se deixada no organismo, pode ser fatal. A principal forma de prevenção, claro, é através do uso de preservativo, acontece que muita gente tem negligenciado essa indicação óbvia e apostado na sorte.
Por ser uma doença antiga que remonta a idade média, as pessoas acham que já foi superada, mas sua incidência mostra exatamente o contrário. A sífilis está avançando tanto e tão rapidamente que o Ministério da Saúde (MS) decretou, desde 2016, uma epidemia no Brasil.
Apesar de terem descoberto a cura para essa infecção em 1930, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que 36 milhões de novos casos são registrados por ano no mundo, mesmo em países desenvolvidos. Segundo o coordenador do Laboratório de Inovação Tecnológica e Saúde (LAIS/UFRN), Ricardo Valentim, essa infecção teve um crescimento de 5 mil por cento nos últimos anos. “É uma epidemia global”, reforça.
Dados do Boletim Epidemiológico da Sífilis 2017 mostram que entre 1998 e 2017 foram notificados quase 685 mil casos no Brasil. Na edição 2018, foram registradas 110 mil novas infecções. Isso representa mais gente do que a população do município de São Gonçalo do Amarante ou um terço da população de Mossoró.
Ainda em 2018, a sífilis adquirida aumentou de 44,1, em cada grupo de 100 mil habitantes em 2016, para 58,1 em 2017. Neste mesmo período, o número de gestantes infectadas cresceu de 10,8 casos por mil nascidos vivos para 17,2. No caso da sífilis congênita, aquela passada da mãe para o filho durante a gravidez, o número de casos subiu de 21 mil para 24 mil e o de mortes de 195 para 206.
Relatório do Projeto de Resposta Rápida à Sífilis nas Redes de Atenção, o Sífilis Não, coordenado pela UFRN com financiamento do MS, mostra que o Sul do Brasil concentra o maior número de casos totais, seguido do Sudeste, Norte, Nordeste e Centro Oeste. O Nordeste, por outro lado, vai mal em relação ao número de sífilis congênita, figurando em segundo lugar, atrás apenas do Sul, com 14% de incidência para cada 100 mil habitantes.
“No Nordeste, a incidência no número de sífilis congênita é maior do que o número de sífilis em grávidas, o que demonstra uma falha no serviço de saúde. Se eu fosse capaz de identificar a sífilis na gestante, o bebê não nasceria com sífilis congênita. Quer dizer, estamos tendo falhas no acompanhamento pré-natal das gestantes e isso é gravíssimo”, explica a médica infectologista e professora da UFRN, Mônica Bay.
Aqui no Rio Grande do Norte, os índices seguem a mesma tendência de crescimento. Segundo o levantamento, 9.1 bebês são infectados para cada mil nascidos, índice maior que o nacional (8.6). O número de gestantes com sífilis é de 8.5 para cada grupo de mil (17,2 nacional).
O mais preocupante é que os gráficos desse relatório mostram uma curva ascendente no aumento da doença na maioria dos parâmetros analisados. Para Mônica Bay, que também é pesquisadora do Sífilis Não, vários fatores contribuem para isso, mas o principal deles é mesmo a redução das medidas de prevenção. “As pessoas não estão mais usando camisinha para ter relações sexuais”, alerta.
Segundo ela, o avanço no tratamento do HIV diminuiu a preocupação das pessoas quanto a necessidade de prevenção. Algumas até recorrem à profilaxia pós-exposição, mas esta medida preventiva não tem efeito sobre a sífilis.
Em relação a isso, a Pesquisa de Conhecimentos, Atitudes e Práticas na População Brasileira (PCAP), do Ministério da Saúde, mostra que apenas 35% dos brasileiros usaram preservativo na última relação sexual. Somente 25,5% usaram para manter relações com “qualquer parceiro” e 45,7% com parceiros casuais. Chamaram atenção nesses dados o fato de, na pesquisa geral, 95,7% das pessoas ouvidas reforçarem a importância do preservativo, e de a mulher se prevenir menos do que o homem.
Outros dois fatores podem ter contribuído com o aumento no número de notificações. O primeiro, negativo, foi a falta de penicilina no mercado entre os anos de 2014 e 2015. O segundo, positivo, foi a mudança nos critérios de notificação da doença que melhorou a sua identificação, o que é uma luz sobre este problema, reforçado agora com o Sífilis Não.
“É uma doença de fácil diagnóstico, qualquer unidade básica de saúde tem o teste e a cura é com benzetacil. Teoricamente, deveria ser muito fácil de controlar porque tem diagnóstico e tratamento fáceis, mas acaba não sendo, porque as pessoas não sabem que têm a doença, e como não sentem nada, não procuram tratamento e seguem transmitindo para os outros. Esse, inclusive, é um dos objetivos do projeto Sífilis Não, fazer essa educação em saúde, como mostrar para as pessoas que a doença é grave e convencê-las de que precisam se cuidar”, completa Mônica Bay.
Sífilis não!
O Sífilis Não foi implantado em 2017 pelo Ministério da Saúde em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Seu nome de batismo é Projeto de Resposta Rápida à Sífilis nas Redes de Atenção, por isso ganhou um nome fantasia. Seu objetivo é reduzir a sífilis adquirida, a ocasionada em gestantes e eliminar o seu tipo congênito no Brasil, elencando 100 municípios prioritários, em todos os estados, dentre os quais o Rio Grande do Norte.
A proposta, desenvolvida no LAIS/UFRN trabalha de forma intersetorial, com atuação em 4 eixos estratégicos: cuidado integral, educomunicação, vigilância em saúde e gestão e governança, no intuito de potencializar as ações de forma a qualificar a prevenção, o diagnóstico, o tratamento e o segmento das pessoas com a sífilis.
Os 100 municípios trabalhados nesse projeto estão divididos em três grupos: prioridade 1, que reúnem todas as capitais; prioridade 2, que concentra todos os municípios de regiões metropolitanas com mais de 100 mil habitantes; e o prioridade 3, que envolve os municípios do interior também com mais de 100 mil habitantes e com índice composto acima de 5,4.
“Juntos, esses 100 municípios representam 31% da população brasileira (64.271.031 habitantes) e estão distribuídos em 70 regiões de saúde (16% do total nacional), o que permitirá uma contrapartida importante de cooperação técnica interfederativa também aos municípios não prioritários dessas respectivas regiões, aumentando a abrangência nacional das ações de forma integrada”, esclarece o recém divulgado relatório do projeto.
Ainda segundo o documento, os municípios de prioridade 1 representam 36,7% do total de casos de sífilis congênita em menores de um ano em 2015. Os de prioridade 2 representam 14,6% e os de prioridade 3 equivalem a 6,4%, somando um 57,7% do total de casos do país no ano de 2015.
Para Ricardo Valentim, o envolvimento da ciência com esse tipo de projeto é extremamente estratégico para a melhoria da qualidade dos serviços de saúde, não só em relação à ciência e a política pública para o combate à doença. “O projeto Sífilis, desenvolvido hoje pela UFRN, tem essa abrangência. Ele cuida da comunicação para disseminação, na questão da sífilis, em toda sociedade, em várias faixas etárias, várias comunidades, regiões, territórios e lugares do Brasil. Discute também a pauta da educação na escola, a educação dos trabalhadores, educação da família para tratar sobre sexualidade e prevenção de outras IST’s, porque a sífilis não pode ser tratada distante do HIV, da hepatite e da gonorreia porque são doenças que têm correlação”, esclarece o professor.
Um ponto estratégico dessa iniciativa é a elaboração novos tipos de testes diagnósticos que sejam mais eficazes que os exames tradicionais. “Um dos problemas centrais em relação à sífilis diz respeito ao método-diagnóstico que no Brasil é muito ruim. Hoje estamos desenvolvendo uma nova tecnologia, baseada em proteômica para investigar em nível de bactéria. Somos o único grupo de pesquisa no mundo que tem interesse nesse tema: de fazer um estudo usando biosensores para diagnosticar a sífilis de forma mais precisa, com teste de altíssima sensibilidade e nível de precisão muito alto”, informa Valentim.
Segundo ele, caso a pesquisa tenha sucesso, esse tipo de teste vai chegar à atenção primária, coisa que não acontece hoje. Atualmente, o teste feito é o VDLR (Venereal Disease Research Laboratory) que, segundo Ricardo Valentim, não é suficiente para dar um diagnóstico conclusivo. “Isso cria vários problemas, várias anomalias no sistema de saúde em toda a cadeia de atenção à saúde de crianças que nasceram com sífilis congênita, por exemplo”, reforça.
A luta contra a sífilis
O projeto Sífilis Não é mais um esforço do Brasil na tentativa de livrar o país deste velho problema. Chega em momento decisivo por causa da epidemia, mas há muito os governos têm estabelecido normas e ações contra esta doença. Em 2015, o Senado Federal aprovou a criação do Dia Nacional de Combate à Sífilis e à Sífilis Congênita (PLC nº 146/2015), instituído no terceiro sábado do mês de outubro em todo o Brasil.
Desde 1986, a sífilis congênita é de notificação compulsória no país. Em gestante, desde 2005. Já a sífilis adquirida, definida nos casos em que indivíduos com manifestação clínica ou assintomáticos que apresentem teste reagente para infecção, desde 2010.
Em 1995, o Brasil, juntamente com outros seis países da América Latina e Caribe, assumiu o compromisso para a elaboração de um Plano de Ação visando à eliminação da sífilis congênita nas Américas até o ano 2000.
A meta definida foi de um coeficiente de incidência de até 0,5 caso de sífilis congênita por mil nascidos vivos, com o tratamento de 95% das gestantes com sífilis e redução do coeficiente de prevalência da infecção em gestantes para menos de 0,1%, conforme indica a OPAS. “Após 22 anos, entretanto, o compromisso de eliminação da sífilis congênita ainda não foi atingido”, informa o relatório do Sífilis Não.
De onde ela vem?
A literatura é controversa quanto a origem da sífilis. Existem teorias que indicam que a doença pode ter sido documentada por Hipócrates, na Grécia Antiga, em 600 antes de Cristo. Seu nome viria do poema Syphilis Sive Morbus Gallicus (Sífilis ou a doença francesa), do médico, matemático e poeta italiano Girolamo Fracastoro. Na escrita épico, datada de 1530, os deuses castigam o protagonista, Syphilus, com uma doença repugnante que recebe o nome de sífilis.
Por muito tempo acreditou-se que essa infecção teria surgido na América e sido levada para a Europa pelos navegadores, mas algumas teorias acreditam que ela sempre existiu por lá, só era confundida com outras patologias, como a lepra, por exemplo. Por aqui, no entanto, já foi encontrada ossadas de nativos de 4 mil anos com traços da doença, o que deixa a dúvida sobre sua origem ainda em evidência.
Seu maior auge foi registrado no final do século 15 e início do 16, quando milhares de pessoas foram mortas. Artigo de Rob Knell, do The Conversation, aponta que a sífilis ganhou força no velho continente por volta de 1495, disseminada por soldados do exército do rei Carlos VIII, da França, após retornarem de invasões na Itália. Como não escolhe cara, a doença matou, ao longo dos séculos, gente de todos os níveis sociais, incluindo a nobreza, como o rei Luiz XVI, da França.
Desde então, vem matando silenciosamente muitas outras celebridades, como os escritores Baudelaire, Oscar Wilde, James Joyce e o filósofo Friedrich Nietzsche. Também foram vítimas os compositores Beethoven, Schumann, Schubert e os pintores Van Gogh, Gauguin e Toulouse Lautrec. No Brasil, a primeira celebridade vítima da sífilis que se tem notícia foi o jogador Heleno, do Botafogo, que morreu louco aos 39 anos, em um manicômio de Barbacena, em Minas Gerais.
Fonte: Agecom/UFRN