No coração do semiárido brasileiro, onde a seca é uma realidade histórica, tanques de placas de cimento estão reescrevendo o destino de comunidades rurais. Uma pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) revelou que as cisternas do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) estão associadas à decisão de famílias de permanecerem em seus locais de origem, mesmo diante de adversidades climáticas.
O estudo, liderado pelos demógrafos Paulo Victor Maciel da Costa e pelos professores Ricardo Ojima e Járvis Campos, do Programa de Pós-Graduação em Demografia (PPGDem/UFRN), analisou dados do Censo Demográfico de 2010. Os pesquisadores descobriram que, em municípios com amplo acesso a cisternas, o percentual de pessoas que nunca migraram chega a 80%. A pesquisa, fruto do doutorado de Paulo, foi publicada na revista Estudios Demográficos y Urbanos.

Utilizando técnicas de análise espacial, como o Índice de Moran, e aplicando o modelo de regressão geograficamente ponderada (GWR), os pesquisadores identificaram áreas específicas na Caatinga onde altos percentuais de pessoas em domicílios com acesso às cisternas coincidiam com elevados percentuais de permanência populacional. No estudo, foi possível observar municípios onde o acesso às cisternas apresentava maior influência sobre a imobilidade.
Um exemplo destacado foi o município de Itaberaba, na Bahia, onde, para cada pessoa com acesso a uma cisterna, aproximadamente duas nunca haviam migrado do lugar em que nasceram. Esses resultados sugerem que o acesso à água, disponível ao lado de casa para as famílias residentes no meio rural da Caatinga, funciona como um elemento fortalecedor da resiliência, viabilizando atividades produtivas e fortalecendo vínculos comunitários e familiares ao permitir a permanência no lugar onde há laços de pertencimento.
Mudança de paradigma
O Nordeste brasileiro tem um histórico de migrações em massa durante períodos de seca severa, como a de 1877-1879, que resultou em cerca de 200 mil mortes no Ceará e forçou inúmeras famílias a abandonarem a região. Entre 1981 e 2000, os movimentos migratórios em direção a outras regiões do país chegaram a uma cifra de 3,6 a 4 milhões de habitantes por década.

Esse cenário passou a ser fortemente influenciado pelos avanços significativos na proteção social que se consolidaram a partir de 2003, com destaque para o P1MC. Elaborado pela Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) em 1999 e financiado pelo governo federal dentro do Plano Fome Zero – sob a coordenação da Secretaria de Segurança Alimentar e Nutricional (SESAN) do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) –, o programa se tornou uma das principais ações diretamente ligadas à política de “convivência com o semiárido”.
As cisternas domésticas de 16 mil litros do P1MC e as agrícolas de 52 mil litros – implantadas a partir de 2007 pelo Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) – passaram a ser pilares dessa abordagem, substituindo a lógica do “combate à seca” e promovendo avanços concretos na qualidade de vida das comunidades rurais.
O estudo da UFRN mostra que os programas já construíram 626 mil cisternas domésticas (de 16 mil litros), que beneficiam 2,5 milhões de pessoas no campo, além de 6,8 mil cisternas escolares e 103 mil cisternas de produção agrícola (52 mil litros), atendendo 429 mil agricultores familiares. Os números, referentes a 2019, mostram o alcance da iniciativa que começou em 2003 como parte do programa Fome Zero, priorizando famílias rurais pobres e vulneráveis cadastradas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico).
Impactos multidimensionais
A pesquisa revelou impactos positivos significativos, que se somam à possibilidade de permanecer no lugar de nascimento. Crianças de famílias com cisternas apresentaram maior peso ao nascer, indicando melhorias na saúde materno-infantil. Na educação, a proximidade da água reduziu o absenteísmo escolar, já que as crianças não precisam mais percorrer longas distâncias para buscar água. As mulheres, tradicionalmente responsáveis pelo abastecimento hídrico, também foram beneficiadas com a diminuição da carga de trabalho.

Além disso, foi traçado o perfil predominante dos “nunca migrantes”, que são indivíduos com baixa escolaridade, dos quais 70% não completaram o ensino fundamental, possuem renda familiar per capita de até meio salário mínimo e mantêm um forte vínculo com a agricultura familiar. Mesmo em condições socioeconômicas adversas, o acesso à água demonstrou-se decisivo para a permanência no campo.
Apesar dos avanços alcançados, o ritmo de construção de cisternas foi prejudicado por cortes orçamentários a partir de 2015. Em 2023, o governo federal anunciou a retomada do programa, com a meta de atender 60 mil famílias, mas estimativas da ASA apontam que ainda há centenas de milhares de famílias sem acesso à tecnologia.

Os pesquisadores destacam a necessidade de estudos complementares com dados mais recentes, incluindo o Censo Demográfico de 2022, para avaliar os impactos das secas entre 2012 e 2021. Além disso, reforçam a importância de políticas integradas que combinem acesso à água com outros programas sociais, criando redes de proteção mais eficientes para populações rurais, cada vez mais necessárias diante do contexto das mudanças climáticas.
Fonte: Agecom/UFRN
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