Especula-se que o gênero de espada e feitiçaria começou na literatura no conto “A fortaleza invencível, exceto por Sacnoth”, publicada em 1908 pelo irlandês Lord Dunsany. O grande marco nesse estilo, porém, foi Robert E. Howard, que a partir de 1929 lançou seus contos de Rei Kull e, pouco depois, de sua criação mais famosa: Conan, o Bárbaro, um personagem que também se tornou rei por meio de sua grande força.
Beyond the Ice Palace 2 traz várias semelhanças a esses brutamontes clássicos. Na história, os deuses lançaram uma flecha para apontar seu campeão escolhido para combater o mal que assolava a terra. Vencendo, ele se tornou o rei e todo o povo o admirava por sua bravura e força.
No entanto, um complô de seus conselheiros invejosos roubou uma flecha divina e a amaldiçoou, levando o rei à morte. Usando os poderes dos fragmentos, os quatro Pajens traidores se tornaram poderosos e monstruosos, assolando todo o reino, agora indefeso sem seu grande defensor.
Um grupo de súditos pôs em prática um ritual que reanimou o cadáver do falecido rei, acorrentado em um mausoléu. Sem estar vivo ou morto, o soberano parte em uma jornada de vingança para derrubar os conspiradores e impedir a completa aniquilação do que sobrou do reino.
Silencioso, de cabelos longos, corpo musculoso à mostra e derramando sua fúria implacável contra bandidos, piratas e criaturas profanas nascidas de poderes que só deveriam pertencer aos deuses, o Rei Amaldiçoado é como uma mistura entre Conan e os Belmont, de Castlevania.
Que palácio de gelo?
Se você pensou “ei, se esse é o segundo jogo, qual é o primeiro?”, não se preocupe, eu também não o conhecia até a sequência ser anunciada e o motivo é que trata-se de um lançamento de 1988 para consoles pouco difundidos no Brasil, como o Amiga e o Commodore 64.
O primeiro Beyond the Ice Palace tem uma história curiosa. Ele foi criado para ser uma adaptação de ThunderCats, mas a desenvolvedora não conseguiu cumprir o prazo para lançá-lo no natal e comprou um projeto já pronto para ficar em seu lugar. Bastou trocar os sprites por algo parecido com a série animada e pronto, lá estava ThunderCats: The Lost Eye of Thundera.
Eles não abandonaram o trabalho anterior e o levaram adiante ao excluir as referências aos gatos do trovão, lançando então sob o título Beyond the Ice Palace. Essa era uma prática não tão incomum na época, quando jogos genéricos poderiam representar franquias licenciadas apenas colocando o nome e uns personagens (o caso mais famoso disso deve ser Super Mario Bros. 2 em sua versão ocidental).
O jogo não tinha nem mesmo algo que parecesse com um palácio de gelo (o segundo tem), mas já trazia a história da flecha lançada pelos deuses para empoderar um guerreiro que aniquilasse o mal.
Agora, em 2025, o segundo título parte dessa premissa para um novo jogo de plataforma de ação, que, por sua vez, também mostra-se como um exemplar de uma tendência de nossa época: dar sequência a jogos antigos em releituras produzidas décadas após o original. Isso aconteceu, por exemplo, com Ufouria: The Saga 2, Gimmick! 2 e com vários títulos da Atari na série Recharged.
Havia tão pouco para caracterizar o primeiro Beyond the Ice Palace que não sobra muito para conectá-lo ao segundo, exceto pela ideia da flecha dos deuses e pelo título. Portanto, não há qualquer necessidade de pensar em jogar o primeiro antes de entrar na continuação.
A desenvolvedora Storybird Studio (mais conhecida pelo metroidvania Aggelos) fez um bom trabalho em expandir livremente o parco material de base para fazer algo que ainda parece o resgate de uma essência de game retrô e da fantasia sombria dos anos 1980. Toda a força do jogo está nisso, mas também todas as suas limitações, que definirão se esse jogo funciona bem para você ou não.
Seguindo os passos de outros clássicos
Como o segundo marcador de Beyond the Ice Palace 2 no Steam é “metroidvania”, é bom deixar logo claro que ele não é um. Isso envolveu uma certa quebra de expectativa, mas, ainda assim, minha avaliação considerará o jogo pelo que ele é: um platformer de ação com semelhanças a Castlevania, mas com mecânicas que lhe dão identidade própria.
As inspirações são percebidas já no movimento do protagonista, com a marcha característica da série clássica de caçadores de vampiros, assim como a forma de subir escadas que atravessam os cenários. O andar é lento e pesado, o que indica que a pressa não é uma abordagem apropriada para encarar o game. O ideal é seguir com calma, atento a cada inimigo e seus ataques, sem mentalidade de combos de hack and slash para acabar com tudo rapidamente.
Essa é uma característica que me desagrada nos “classicvanias” e incomodou também em Beyond, que consegue atenuar a situação com o uso de mecânicas mais dinâmicas que o mero “andar-parar-atacar-andar”.
O centro da ação está na arma peculiar do Rei: ele usa as próprias correntes que o prendiam à cripta, numa mistura de chicote dos Belmont com a fúria de Kratos, dos primeiros God of War.
Além de atacarem em oito direções, as correntes são versáteis para executar diversas outras ações, como um golpe carregado para quebrar escudos de inimigos, se pendurar em argolas para se balançar (como em Super Castlevania IV) ou dar um impulso para cima, acionar alavancas, arrombar portas e baús, imobilizar certos inimigos para deixá-los vulneráveis a ataques ou fazer um movimento giratório para defletir projéteis.
Por fim, o Rei tem um medidor de fúria que, quando cheio, permite entrar em um modo agressivo com chamas azuis e ataques mais pesados. Tudo isso está disponível desde o começo da campanha.
A habilidade de esquiva contrasta com a lentidão de que falei por ser mais ágil, apresentada na tela como um curto teleporte. Desviar no momento certo do ataque inimigo resulta em uma esquiva perfeita para as costas dele para aproveitar a brecha e puni-lo com alguns golpes a mais. A animação da esquiva perfeita tem efeito de zoom e câmera lenta para enfatizar o sucesso da ação, mas faz isso com uma trepidação semelhante a uma queda abrupta da taxa de quadros por segundo, sem a fluidez que um movimento de esquiva merece.
Há medidor de vigor para restringir o uso indiscriminado de ações como esquivar e defletir projéteis. Na verdade, é um medidor duplo, o que aumenta o tempo de espera para enchê-lo e faz com que seja preciso gerenciar bem para não ficar incapaz de se evitar dano em momentos críticos, principalmente contra chefões.
Um ponto que me desagradou na parcela retrô do design foi a forma de recuperar saúde. Não carregamos itens de cura para usar conforme a necessidade, de forma que isso só é possível ao encontrar comida e, na maioria das vezes, com pouco efeito. E onde fazemos isso? Nas tochas e lanternas, é claro. Em mais um parentesco com Castlevania, Beyond the Ice Palace 2 quer que quebremos todas as fontes de chamas azuis que surgem pelo caminho a fim de curar o Rei e também coletar dinheiro. É mais um motivo para prosseguir com cuidado, atento ao medidor de saúde.
Outro exemplo de design que atrapalhou minha experiência é ser jogado para trás ao receber dano, o que muitas vezes me levou a cair das plataformas altas ou em um abismo, recebendo ainda mais dano. É uma complicação que julgo desnecessária para o desafio que já existe.
Também esteticamente a semelhança a Castlevania conseguiu fazer algo que permite reconhecer a influência da outra série, mas sem parecer uma mera cópia. Em diversos pontos o visual mostrou-se admirável.
Na pele azulada do cadáver reerguido do túmulo, atravessaremos cemitérios, cavernas, palácios (inclusive o de gelo do título) e ruínas de cidades com atmosfera convincente em um estilo de pixel art que remonta a algo parecido com o Game Boy Advance e uma trilha musical dramaticamente sombria, repleta de órgão, cravo e piano, além de uns poucos momentos de coral.
Vania sem metroid
A estrutura da progressão é completamente linear, atravessando fases da esquerda para a direita, uma após a outra. Um mapa tem o desenho de todo o reino e mostra o avanço do Rei rumo ao seu objetivo final, além de também servir para usar a viagem rápida. Espere um pouco, viagem rápida para quê? Para permitir retornar a fases anteriores ao adquirir novas habilidades, como o pulo duplo. Então é metroidvania? Não.
Esse backtracking não acrescenta nada que seja realmente relevante, uma vez que, exceto por uma área opcional quase no final do jogo, revisitar locais pregressos apenas leva a baús aqui e ali com fragmentos de cristal de melhoria de personagem.
É uma ideia que parece estar ali apenas para dar uma pincelada discreta de não linearidade a um jogo linear no qual esse elemento não faz qualquer falta. Odallus: The Dark Call, por exemplo, teve mais sucesso em aprofundar esse tipo de progressão de fases que podem ser revisitadas com a obtenção de melhorias.
Os níveis têm elementos de plataforma e o Rei pode se agarrar em beiradas para subir nelas, mas, em geral, não há grandes bifurcações ou áreas mais abertas que tirem a sensação de que há um caminho estrito a ser seguido. Felizmente, a graça da exploração está em descobrir salas secretas, ocultas atrás do cenário e, geralmente, com boas recompensas, um bom incentivo para permanecer atento enquanto atravessa o reino.
Algo que pode ser um problema está em quão distantes os pontos de salvamento, que também servem para a viagem rápida, se tornam uns dos outros. À medida que avançamos na campanha, morrer se torna um grande retrocesso, exigindo atravessar áreas longas novamente até chegar ao ponto que nos custou a vida.
Certo chefe que repeti muitas vezes precisava de três minutos até que eu chegasse até ele e pudesse tentar novamente. Ainda por cima, após a vitória demorou a aparecer um novo ponto de salvamento, o que me fez andar com cuidado redobrado. Em outro, eram cinco minutos refazendo a fase até a luta que me derrotou muito mais vezes do que minha paciência gostaria.
Somando as distâncias à impossibilidade de se curar quando precisar, vários segmentos de Beyond the Ice Palace 2 foram motivo de frustração, levando-me a parar de jogar para tentar prosseguir em outro momento.
Para ajudar um pouco, há a possibilidade de melhorar o Rei com o uso de cristais encontrados pelo jogo, investindo-os em cinco atributos: aumentar a saúde, o vigor, a força, a recuperação da comida e a fúria. Cada nível não parece fazer muita diferença, mas é bom que possamos escolher nossas preferências.
Na via inversa, podemos comprar acessórios, mas não escolhê-los, pois são apenas quatro e todos são equipados automaticamente, o que faz parecer que esse sistema paralelo foi criado apenas para ter mais alguns itens para dar utilidade ao dinheiro obtido.
Já no lado técnico, ele sofre de tearing em vários cenários, o que não atrapalha a gameplay, mas incomoda a experiência. O relógio interno também não funciona, reiniciando a cada sessão de jogo. Por causa disso, eu até obtive o troféu que exige completar a campanha em menos de quatro horas, mesmo que, quando terminei, a contagem do PS5 marcava 11 horas (no mínimo um terço disso deve ter sido pelas mortes sucessivas em certos trechos).
Um palácio de gelo impiedoso
Beyond the Ice Castle 2 resgata um jogo simplista dos anos 1980 para uma releitura com muito mais substância. Para o bem e para o mal, ele remonta a elementos antigos de Castlevania, apresentando fases lineares, uma ótima atmosfera de fantasia sombria, uma movimentação lenta e pesada e uma dificuldade elevada, reforçada pelo sistema de cura nada generoso e pelas longas distâncias entre pontos de salvamento. Isso faz da morte uma repetição de fases que pode ser frustrante e afastar o público que não se dispõe a enfrentar esse tipo de experiência punitiva retrô.
Prós
- Visuais bem trabalhados para uma atmosfera de fantasia sombria;
- Mesmo com fases lineares, as passagens secretas incentivam a exploração dos cenários;
- O sistema de melhoria de personagem permite escolher focar em atributos de preferência;
- Textos em português brasileiro.
Contras
- O movimento lento e pesado torna a ação menos responsiva;
- Ser jogado para trás ao receber dano é uma punição desproporcional e atrapalha muito;
- Os elementos de revisitar fases já concluídas são superficiais e desnecessários ao ritmo adotado na maior parte da campanha;
- O sistema de cura é escasso e não permite guardar itens para usá-los no momento de necessidade;
- Certas fases têm distâncias grandes demais até o próximo ponto de salvamento, tornando a morte mais frustrante do que precisaria ser.
Beyond the Ice Palace 2 – PC/PS5/PS4/XSX/XBO/Switch – Nota: 7.0Versão utilizada para análise: PS5
Análise feita por Victor Vitório
Fonte: GameBlast