O crime de Lavagem de Dinheiro, previsto pela Lei n. 9.613/1998, visa combater a incorporação de recursos ilícitos na economia com aparência de legalidade, protegendo a Administração da Justiça. Este delito é autônomo, ou seja, não depende de comprovação de crimes antecedentes, permitindo uma repressão mais ampla. Empresas e outros negócios podem ser utilizados para “lavar” dinheiro, ocultando sua origem ilegal.
O artigo discute o uso do compliance como medida de governança nas empresas para mitigar a responsabilização criminal por Lavagem de Dinheiro, especialmente em casos de dolo eventual ou Cegueira Deliberada. O Direito Penal busca garantir a estabilidade social por meio da aplicação de sanções quando há violação das normas, que orientam comportamentos na sociedade.
A Lavagem de Dinheiro foi criminalizada pela Lei nº 9.613/1998, alinhada com normas internacionais, e aprimorada em 2012 pela Lei nº 12.683. Esse crime ocorre em três etapas: colocação[2] (quando os recursos entram no sistema financeiro), dissimulação[3] (transações para ocultar a origem ilícita) e integração[4] (reinserção dos bens na economia com aparência de licitude).
A legislação exige medidas preventivas, como a obrigação de instituições financeiras reportarem transações suspeitas ao COAF e a criação do ENCCLA para combater corrupção e Lavagem de Dinheiro[5]. Embora a punição dependa de dolo, o Judiciário brasileiro tem aceitado a Teoria da Cegueira Deliberada, presumindo o conhecimento da ilicitude. No entanto, ao meu entender, há uma falta de compreensão teórica, especialmente nos tribunais superiores, sobre a compatibilidade entre a Cegueira Deliberada e o dolo eventual, conforme o art. 1, § 2º, I, da Lei n. 9.613/1998[6].
Pontualmente, os equívocos se apresentam como uma não percepção da jurisprudência ao incompreender que, o Código Penal, ao adotar o modelo finalístico de ação, pune a conduta praticada com dolo ou culpa. Sendo o dolo fracionável em dolo direto e indireto, e este última subdividido em dolo alternativo e eventual, somente há a aplicação do dolo eventual quando ausente a vontade direta na produção do resultado (volição), assumindo o agente o risco pelos resultados dos atos praticados. A teoria da Cegueira Deliberada, por sua vez, retira o elemento da cognição do agente, elementar para a incidência do dolo, ainda que indireto, o que não acontece com o instituto do dolo eventual, que relativiza apenas o elemento da volição com a assunção do risco.
Como se percebe, sua aplicação como fundamento de punição é controversa, especialmente quando não prevista na legislação, pois pode conflitar com os princípios de tipicidade e legalidade.
Noutra baila, o compliance corporativo desponta como um instrumento essencial para proteger as atividades empresariais contra acusações relacionadas à Lavagem, além de garantir a observância à legislação vigente e à ética empresarial. Em um contexto no qual a teoria da Cegueira Deliberada tem sido amplamente debatida e aplicada para imputar responsabilidade penal a empresários que ignoram deliberadamente atividades ilícitas, programas estruturados de compliance com background checks, surgem como um contrapeso relevante para mitigar tais riscos.
De acordo com a doutrina de Pierpaolo Cruz Bottini[7], o compliance é fundamental para assegurar que os mecanismos internos das organizações estejam alinhados aos princípios da legalidade e da transparência. Esse alinhamento não só impede a perpetração de atos ilícitos, mas também cria uma barreira objetiva contra a caracterização do dolo eventual e da Cegueira Deliberada. A implementação de medidas como auditorias internas, mapeamento de riscos e treinamentos recorrentes para colaboradores demonstra a intenção inequívoca do empresário de evitar condutas ilícitas, afastando, assim, a presunção de negligência ou omissão consciente – elementar para a incidência da teoria da Cegueira Deliberada.
Sob a perspectiva do dolo eventual, por sua vez, Guilherme Brenner Lucchesi[8] afirma que a assunção do risco exige que “o agente tenha consciência clara das circunstâncias que cercam o ato potencialmente delituoso e, mesmo assim, prossiga com a conduta”. No entanto, a adoção de um programa de compliance robusto demonstra precisamente o contrário: a ausência de intenção dolosa e o comprometimento em evitar riscos. Por meio de um sistema de controle eficaz, o empresário reduz a possibilidade de conhecimento direto ou indireto sobre práticas ilícitas em sua empresa, afastando, dessa forma, a consciência objetiva necessária para a imputação de dolo.
Ademais, o compliance também contribui para a despersonalização da responsabilidade penal do empresário, reafirmando que a organização adota medidas concretas para prevenir condutas ilegais. Nos dizeres de André Callegari[9], um programa de compliance eficaz atua como uma manifestação de boa-fé empresarial, o que pode ser determinante na avaliação judicial de casos envolvendo lavagem de capitais. Esse posicionamento não apenas reforça a governança corporativa, mas também resguarda o empresário de acusações baseadas na ignorância deliberada ou no dolo eventual.
Com isso, programas de compliance estruturados não apenas reforçam a integridade corporativa, mas também afastam a presunção de dolo, consolidando-se como uma estratégia imprescindível na gestão empresarial contemporânea.
[1] PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, criminalização e direito penal mínimo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
[2] CALLEGARI, André Luis. Direito Penal econômico e Lavagem de Dinheiro: aspectos criminológicos. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2003. p. 52.
[3] CAVALCANTI, Rodrigo. Lavagem de capitais: a criminalidade econômica diante da expansão do Direito Penal e a preservação dos direitos fundamentais frente ao direito penal do inimigo – 2021. 124f.: il. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Programa de Pós-Graduação em Direito. Natal/RN, 2021. p. 32.
[4] CALLEGARI, André Luis. Direito Penal econômico e Lavagem de Dinheiro: aspectos criminológicos. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2003.
[5] WEISHEIMER, Evandro… [et. al.], Criptolavagem e compliance: tipologias de lavagem de dinheiro por meio de criptoativos e sua prevenção. São Paulo: Rideel, 2022.
[6] SAVINO, Felipe Gardelino. Lavagem de Dinheiro e Bitcoin: a idoneidade da moeda digital como meio para a prática delituosa. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 115, p. 805-828, 2020.
[7] BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2020.
[8] LUCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. 1. ed. Marcial Pons, 2018.
[9] CALLEGARI, André Luís; LINHARES, Raul Marques. Lavagem de dinheiro (com a jurisprudência do STF e do STJ). 2. ed. Temática: Direito Penal e Criminologia. São Paulo: Marcial Pons, 2023. 222 p.
*Diego Alves Bezerra, Advogado e Professor Universitário. Mestre em Direito pela UFRN. Especialista em Direito Penal Econômico pela PUC/MINAS e Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Uninassau/RN.
Crédito da Foto: Reprodução/FÓRUM
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