S4U: CITYPUNK 2011 AND LOVE PUNCH é uma graphic adventure em que o jogador assume o papel de Miki, um arquiteto que vive no longínquo ano futurista e tecnológico de 2011 (nota-se o sarcasmo) em que o mundo físico coexiste com a chamada cyber life, vivida por inteligências virtuais autônomas — não necessariamente artificiais — cuja existência se confunde com usuários reais utilizando os meios digitais de comunicação.
Embora a arquitetura seja a formação de escolha de Miki, ela não é lá suficiente para sustentá-lo. Isso é porque ela se encaixa em um rol de negócios — criativo, ressalta-se — em que a vida cibernética em questão é bastante atuante, já que é uma atividade que depende do uso do computador durante sua execução. Nota-se que essas inteligências da cyber life têm perfis, personalidades, estilos e opiniões próprias, o que torna cada vez mais tênue a comunicação auxiliada por meios virtuais.
Com uma renda pouco suficiente em sua área de atuação principal, Miki aceita um bico de mouthpiece, que basicamente consiste em se passar pelo contratante a fim de convencer alguém do outro lado da tela a fazer alguma coisa na base da engenharia social, algo que vai de pedir um divórcio a assumir uma persona de influenciador digital e começar a mendigar dinheiro dos seguidores. É a partir daí que a história geral de S4U se desenrola como um todo.
Arquiteto no trampo fixo, mas fazendo freelas de engenheiro (social)
A forma com que o time de desenvolvimento se utilizou para contar sua história é bastante interessante. Durante a maior parte do da campanha, o jogador verá a exata mesma tela que Miki: a de um computador relativamente antigo, que servirá de interface geral do título. Assim, a narrativa vai se moldando em uma dinâmica da alternância das telas dos programas instalados e as janelas de chat pelos quais será exercido o trabalho de mouthpiece.
Para tal, o game se utiliza do teclado e do mouse, bem como um teclado e um mouse, uma vez que boa parte de sua jogabilidade será através dessa interface de um computador, alcançando um nível praticamente metalinguístico. Para os chats, será necessário apertar qualquer botão do teclado para que as respostas pré-registradas comecem a se materializar nas caixas de mensagem, sendo que uma parcela considerável conta com mais de uma opção disponível para ser selecionada durante o processo.
A progressão se dá ao longo de nove dias de jogo, com cada um representando uma ocorrência diferente a ser resolvida pelo jogador. Ao final de cada um desses períodos, o computador é desligado e podemos passear um pouco por um cenário exterior, quando conhecemos pessoas novas e temos acesso à loja, onde é possível adquirir alguns badulaques que servem tanto para suprir a necessidade de consumo de Miki quanto enfeitar o ambiente de trabalho.
É sempre nessa alternância entre os dias que o S4U libera o save para o jogador, o que acaba atrapalhando um pouco, porque certas sessões de mouthpiece são muito longas e essa impossibilidade estratégica de pausar em determinados pontos se mostra um pouco inconveniente. Não é nem uma questão de querer salvar para voltar àquele ponto depois e agilizar o meu progresso, mas porque eu posso ter que encerrar a jogatina naquele momento e não jogar o meu progresso no lixo a ponto de ter que refazê-lo.
E mesmo se eu quisesse retomar o progresso de um momento específico, alguns pontos de salvamento adicionais seriam igualmente bem úteis por conta das múltiplas possibilidades de finais.
Miki e seus teclados
Assim, boa parte da narrativa é exposta para nós de um jeito fragmentado. Miki tem acesso aos logs de conversa dos clientes e descobre que eles nunca fornecem todas as informações necessárias para o serviço, algo que certamente irá fomentar certas opiniões no jogador e influenciará na tomada de decisão, encaminhando para determinadas ramificações do enredo.
Como se a vida alheia já não fosse o suficiente, nós também passamos a acompanhar certos vislumbres da própria vida de Miki através dos seus próprios relacionamentos, como sua mãe, sua irmã e seu chefe, cujas mensagens chegam bem quando durante o expediente do seu bico, o que faz com que a nossa própria atenção como jogador tenha que se dividir entre os chats do serviço e os particulares — tal como a vida real, não?
Tal dinâmica, inclusive, faz parte da dificuldade oferecida por S4U, uma vez que o desafio consiste em ter que lidar com todos os indivíduos com os quais é necessário fazer a manutenção de uma conversa a fim de concluir determinado objetivo, muitas vezes dentro de um período estabelecido.
A demora em uma resposta pode acarretar a perda de paciência de nossos interlocutores, cuja consequência leva ao fracasso do serviço e um duro golpe no planejamento financeiro. Em contrapartida, um problema da vida real e presente no título é a maneira como alguns personagens passam tempo demais no status digitando e a resposta não condiz com o tempo despendido, o que acaba travando um pouco o fluxo de jogo.
Nota-se que essa dificuldade de atender com vários contatos e telas em simultâneo se apresenta em uma curva consideravelmente íngreme, mas não frustrante ou injusta, visto que os dois primeiros dias se apresentam bastante tranquilos em nossa labuta — ainda naquele ritmo de tutorial — para que os próximos se mostrem realmente complicados de concluir com êxito.
Apesar disso, a narrativa lida com a falha com muita delicadeza, lembrando ao jogador que sempre há o dia seguinte e que não será por causa dela que sua vida vai acabar. Ela continua. Uma moral que, de certa forma, até anda na contramão de boa parte das experiências disponíveis aí pelo mercado de jogos.
Simultaneamente à espiral de dificuldade, o próprio enredo também começa a embolar em uma espécie de trama envolvendo a Cyber Life e a própria internet como um todo, cabendo a Miki ter que resolver com todas essas problemáticas ao mesmo tempo em que tem que lidar com certas questões do mundo externo, como família, relacionamentos e trabalho. Sob determinado ponto de vista, ele lembra um pouco a estrutura de Neuromancer — cujo protagonista havia sido contratado para a realização de um trabalho simples que acaba se desenrolando em uma conspiração muito maior para aquele mundo —, só que em uma versão softcore da coisa.
Cyberpunk Softcore
A menção a Neuromancer não é gratuita. Embora S4U: CITYPUNK 2011 AND LOVE PUNCH não seja um representante legítimo do gênero cyberpunk, nota-se que aquele mundo está à beira de se converter a tal condição, caracterizada pelo paradoxo de alto desenvolvimento tecnológico e baixa qualidade de vida.
Especificamente, isso é ilustrado nas dificuldades que Miki encontra ao ter que lidar com tanta Cyber Life permeando sua vida e assumindo várias funções cotidianas, do atendimento da loja de conveniência à sua própria atividade profissional como arquiteto, um empecilho que ele inclusive chega a discutir com alguns colegas de profissão desiludidos com o futuro guardado a ela.
Dando vários pontos de vista para que o jogador forme sua própria opinião (ou não) sobre o assunto, S4U conversa bem com uma análise feita pelo escritor e semiótico italiano Umberto Eco na década de 1960. Para ele, há duas posturas distintas a respeito da revolução tecnológica que ditaria o destino da cultura de massa e iria se acentuar nas décadas seguintes: os apocalípticos e os integrados. Enquanto o primeiro grupo acreditava que essa seria a sina da sociedade, de um jeito fatalista, o segundo seria aquele que aceitaria o tal futuro de forma otimista e ingênua, sem olhar crítico.
Embora o jogo se passe no ano de 2011, nota-se que esse é um dos principais receios dos profissionais criativos diante da ascensão recente das inteligências artificiais generativas agora em meados dos anos 2020. A despeito da narrativa do produto não servir exatamente um manifesto em relação a essa problemática, é interessante vê-la filosofar sobre tal, que também pincela sobre como são os relacionamentos humanos dentro dessa modernidade online, bem como a valorização dos momentos off-line, de desconexão do mundo digital.
Estética Technozen
Visualmente, S4U aposta no minimalismo como fio condutor para suas principais propostas, sendo que, embora considere o padrão vigente de 2011, ele não leva em conta toda aquela poluição estética característica da época. A interface se utiliza de vários elementos do momento, como os degradês e a aparência das caixas de texto, mas ainda consegue se distinguir por mérito próprio.
Apesar desse visual conciso, nota-se que atenção aos detalhes é algo que não falta, sendo que o cuidado de fazer com que as teclas pressionadas na tela correspondam exatamente às que eu aperto no meu próprio teclado físico o meu favorito com facilidade.
Adicionalmente, é bacana como o título consegue dizer muito sem necessariamente verbalizar suas ideias. Isso fica bem claro logo na tela de introdução, após o tutorial, quando desligamos a máquina, saímos para o cenário exterior pela primeira vez e nos deparamos com uma paisagem urbana de tirar o fôlego e que até contrasta com as figuras estéreis da interface anterior, mostrando o contraste evidente entre o mundo físico e o virtual — o que indica, inclusive, que S4U tenha um lado na discussão apontada anteriormente.
Sem deixar de lado essa questão estilística, uma das decisões mais questionáveis por parte do U0U Games, o time de desenvolvimento, talvez esteja sendo a de se sustentar em linguagem de internet na hora de escrever os diálogos que chegam no inbox. Na prática, esse tipo de comunicação colabora para tornar os personagens realmente vivos — uma vez que cada pessoa terá seu próprio padrão de escrita, sobretudo em conversas tão particulares —, mas ainda assim é compreensível o lado de quem não consegue acompanhar esse trabalho da tradução para o inglês.
Nesse aspecto, o próprio estúdio já se prontificou a tentar entender os tropeços da localização, abrindo até um formulário de feedback para os jogadores responderem. No entanto, a maior dificuldade aqui está em tentar lidar com alguns termos ou mesmo personagens cujo significado ou função na trama já nos tenham fugido da memória.
Fragmentos de uma sociedade conectada
Com clara inspiração em VA-11 Hall-A: Cyberpunk Bartender Action e em Emily is Away, S4U: CITYPUNK 2011 AND LOVE PUNCHconsegue se destacar ao trabalhar sua jogabilidade quase toda em primeira pessoa à sua própria maneira, oferecendo uma aventura sólida e charmosa. Seu maior mérito, entretanto, é a sensibilidade com que consegue trabalhar sua própria narrativa e fomentar um sentimento muito importante para a manutenção das relações entre os seres humanos: empatia.
Prós
- Jogabilidade inventiva a um nível metalinguístico;
- História delicada que pincela bem algumas das angústias referentes à evolução tecnológica e aos relacionamentos humanos;
- Múltiplos finais que favorecem o fator replay;
- Estética Technozen que remonta um visual retrô e acolhedor;
- Equilíbrio surpreendente entre o visual clean e a atenção metódica aos detalhes;
- Identidade visual e detalhismo gráfico que conseguem reforçar a mensagem sem necessariamente ficar verbalizando.
Contras
- Às vezes, certas respostas demoram demais para pipocar na tela, o que descoordena o fluxo do jogo;
- Sistema de save consideravelmente restritivo e ter mais espaços para salvar o progresso;
- Estilo de escrita com ênfase em linguagem e grafias de internet pode gerar certas dificuldades de entendimento;
- Um glossário com os principais termos referentes àquele mundo cairia bem.
S4U: CITYPUNK 2011 AND LOVE PUNCH — PC — Nota: 7.5
Análise feita por João Pedro Boaventura
Fonte: GameBlast
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