Quanto tempo custa a realização de um sonho? Alguns dias, semanas, meses, anos ou uma vida inteira? A resposta varia de acordo com a história única de cada indivíduo, e a de Tadeu Curinga da Silva é quase tão extraordinária quanto criar um jogo sozinho, no Brasil, em 1985, usando a complicadíssima linguagem de programação Assembly e transformando códigos escritos à mão em um jogo que não apenas se inspirava no clássico Pitfall, febre do Atari 2600, como elevava aquela forma a um nível ainda mais elevado variedade de telas.
Desenvolvido desde 1984 e lançado em 1986 para o computador Sinclair ZX-81, Em Busca dos Tesouros representou a primeira grande realização brasileira no mercado de games, à época muito diferente do atual, com gráficos simples, linguagens de programação extremamente complexas e realizações que colocavam à prova não apenas a criatividade dos desenvolvedores, como também sua capacidade de trazer ideias inovadoras em meio a uma série de limitações técnicas de hardware e baixa quantidade de armazenamento dos dispositivos.
Quando começou a desenvolver o jogo, Tadeu era um jovem de apenas 15 anos e estudante do atual hoje Instituto Federal do Rio Grande do Norte, mas a curiosidade daquele jovem e desejo de criar um jogo ainda mais profundo em possibilidades e telas (níveis de dificuldade) do que Pitfall o fizeram tornar realidade um sonho que parecia impossível. Além do ZX-81, Em Busca dos Tesouros era compatível com outros computadores à época fabricados no Brasil, como o TK-82C, TK-83, TK-85 e CP-200S, e era vendido de duas formas: por meio de fitas K-7, que reproduziam o jogo diretamente como uma mídia física, ou por meio de listagem para digitação, com os jogos sendo comercializados pela revista Micro Sistemas e enviados pelo correio aos compradores.
Em Busca dos Tesouros, porém, nunca foi lançado para o Atari 2600, mesmo sendo inspirado em um dos maiores clássicos do console, uma lacuna que enfim será preenchida quase 40 anos depois, por meio do port do jogo feito pela equipe da Bitnamic Software, empresa brasileira especializada em lançar (ou relançar) jogos para plataformas clássicas dos anos 80, sendo inclusive a responsável pelo relançamento, em 2019, de Em Busca dos Tesouros para o ZX-81. O port do jogo para Atari 2600, desenvolvida pelo game designer Fernando Salvio, traz uma série de novidades, como uma velocidade mais rápida de gameplay em relação à versão original de ZX-81, relançada pela própria Bitnamic em 2019, sistema cores e som, além de contar com uma seleção de 99 telas emblemáticas do jogo original, devido à limitação de 16kb dos cartuchos de Atari 2600.
Para Tadeu, que hoje atua como microempresário no setor de distribuição de bebidas no Rio de Janeiro, mas permanece extremamente atento ao mercado de games (ele é fã de The Elder Scrolls V: Skyrim, dos três primeiros Resident Evil lançados para PlayStation 1 e aguarda ansiosamente pelo lançamento de GTA 6), o lançamento representa a realização de um sonho após quase quatro décadas.
“O jogo foi publicado na Micro Sistemas em novembro de 1986, mas eu comecei a desenvolvê-lo em 1984, quando tinha 15 anos, e aí eu passei todo o ano de 1984 e uma boa parte de 1985 só desenvolvendo o jogo. E quando eu terminei o jogo eu fiquei assim: ‘e agora, eu vou ficar com o jogo só para mim? Não tem graça, né?’. Eu era um leitor ávido da Micro Sistemas, comprava a revista todo mês, e aí eu decidi enviar o jogo para eles, na esperança de que ele fosse publicado”, explica Tadeu. “Eles ficaram uns seis meses analisando o jogo até que finalmente publicaram, e por isso ele saiu só em novembro de 1986. Eu fiz o jogo, basicamente, porque eu gostava muito de videogame, e ainda gosto, e a minha grande referência era o Atari 2600. É por isso ver o Em Busca dos Tesouros ser finalmente lançado para o Atari é a realização de um sonho de 40 anos, porque foi o videogame que me fez amar esse universo.”
Embora seja um grande fã de Pitfall e tenha o trabalho de David Crane para o Atari 2600 como uma referência, Tadeu destaca que sua ideia com Em Busca dos Tesouros era fazer um jogo inspirado em um dos grandes clássicos do começo dos anos 80, mas trazendo uma série de elementos novos que não fizessem do título brasileiro uma cópia.
“Eu fiquei dois anos inteiros trabalhando no desenvolvimento do Em Busca dos Tesouros, eu era um grande fã de Pitfall e do trabalho fantástico que o David Crane fez para o Atari, e me inspirei nele para criar o meu jogo, mas sem querer fazer uma cópia ou imitação. Meu objetivo foi trazer um jogo com mais telas e desafios novos, que usasse a base do Pitfall mas trouxesse coisas inéditas.”
No processo de criação do jogo, Tadeu aprendeu de forma autodidata a linguagem de programação de máquinas conhecida como Assembly. Tadeu explica que Pitfall tinha 255 telas contidas em apenas 4KB de dados, mas com telas geradas proceduralmente. No caso de Em Busca dos Tesouros, todas as 313 telas do do jogo foram criadas manualmente via Assembly para o Sinclair ZX-81.
“Eu sou um grande fã do David Crane, e ele fez essa mágica de colocar 255 telas em apenas 4KB usando essa técnica de telas geradas proceduralmente, porque havia uma limitação de dados muito grande. Era a única forma de fazer um esse número imenso de telas caber em 4KB. Quando eu criei o Em Busca dos Tesouros, eu não tinha como usar Basic (linguagem de programação), porque ele era muito lento e não permitia colocar tantos elementos na tela muito lenta, então, e aí eu tive que aprender o Assembly, porque o jogo tinha muita movimentação de personagens e elementos para serem processados na tela e isso exigia mais dados. Cada uma das telas do jogo na época foi desenhada à mão, eu usava um bloco de papel milimetrado formato A4, quadradinho por quadradinho, e depois fazia o código do jogo. A grande vantagem do Assembly é que ele é uma linguagem muito econômica em dados, então era possível criar um grande número de telas e com muitos elementos.”
Tadeu se apaixonou por videogames a ponto de criar o seu próprio jogo por causa do Atari 2600 e de Pitfall, dentre outros clássicos do console, e agora, quase 40 anos depois, finalmente vive o sonho de ver Em Busca dos Tesouros rodar no Atari 2600, a partir do port feito por Fernando Salvio e a equipe da Bitnamic, responsável pelo desenvolvimento e publicação da nova versão do jogo. “O Atari foi o console que despertou a minha paixão por videogames quando eu ainda era uma criança. Quando adolescente eu criei o meu próprio jogo inspirado em um dos maiores clássicos do console, o Pitfall, e agora, quase 40 anos depois, ver o Em Busca dos Tesouros finalmente rodando lá é um sonho realizado, não tem como ser diferente. É um círculo completo”, comemora.
Antes mesmo do lançamento para Atari 2600, Em Busca dos Tesouros já havia recebido uma nova versão para o ZX-81, mas história sobre o resgate do jogo é muito anterior a isso e data de abril 2006, quando o engenheiro de software Murilo Queiroz, um grande da versão original do jogo, contactou Tadeu por meio de uma carta enviada para a caixa postal do criador do jogo, após Murilo fazer uma longa pesquisa e conseguir contactar a mãe de Tadeu, Edinalva.
Dali em diante, Tadeu e Murilo trocaram cartas conversando sobre o desenvolvimento de Em Busca dos Tesouros, o que resultou no começo de uma amizade. Em setembro de 2006, Tadeu enviou a Murilo pelo correio o caderno original com o Em setembro de 2006, ele encontrou o caderno com o código-fonte do jogo escrito a lápis, além de uma carta manuscrita de 25 páginas revelando uma série de detalhes técnicos sobre o desenvolvimento do jogo original nos anos 1980. Tadeu também autorizou que Murilo divulgação do código e do caderno do jogo, mas com três condições: que o jogo não fosse modificado, que todo o material fosse devidamente preservado e uma terceira condição um tanto peculiar. A única modificação permitida era que o peixe rastejante presente em uma das telas fosse enfim libertado de sua prisão entre duas paredes de tijolos, um pedido que acabou sendo realizado não por Murilo, mas sim por um fã argentino do jogo chamado Gustavo del Dago.
Seis anos após as primeiras trocas de cartas discutindo o desenvolvimento de Em Busca dos Tesouros, Tadeu e MuriloQ se conheceram pessoalmente em setembro de 2012, num encontro de colecionadores de videogames antigos realizado em Belo Horizonte. Em 2019, Tadeu, Murilo e um colecionador chamado Kelly Murta, que em 2003 ajudou Murilo ao jogo, participaram do documentário “LOADING… nossos primeiros jogos de computador”, com depoimentos sobre a criação e a relação dos fãs com Em Busca dos Tesouros. Murilo trabalha hoje nas horas vagas na criação de uma inteligência artificial baseada por reforço em redes neurais que seja capaz de zerar o jogo sozinha.
“Depois que eu saí de Natal, no Rio Grande do Norte, eu vim para o Rio e me mudei várias vezes, e mesmo assim o Murilo conseguiu me achar, e desde o primeiro contato por carta ele se revelou um grande fã do jogo, e aquilo reacendeu em mim o interesse de conversar sobre o jogo que eu havia criado, era algo que estava adormecido já. O Murilo conseguiu acesso ao jogo por meio de um grupo de maio de colecionadores de jogos antigos, e lá ele soube que havia uma pessoa com o código do jogo, que era o Kelly Murta, que havia adquirido o código do jogo em uma edição da Micro Sistemas muitos anos antes”, explica.
“Foi por meio de alguma dessas conversas que o Kelly mandou para o Murilo o código do jogo para rodar em um emulador. Ele encontrou na internet a árvore genealógica da minha família, que eu não faço ideia de quem fez esse negócio, e de alguma forma encontrou a partir de lá o telefone da minha mãe, conversou com ela, explicou toda a situação conseguiu com ela a minha caixa postal. Nossa amizade começou ali.”
Após o lançamento de Em Busca dos Tesouros, porém, Tadeu não trabalhou mais com desenvolvimento de jogos, visto que, na época, não existia no Brasil um mercado viável para desenvolvimento de jogos. “Não tinha como eu viver disso, era um mercado quase inexistente no Brasil, e mesmo no mundo ainda era um mercado muito pequeno ao que temos hoje. O Renato Degiovani e o Divino Leitão eram raríssimas exceções aqui, e mesmo assim era um mercado muito pequeno e extremamente restrito. Eu tive que tocar minha vida e fazer outras coisas.
Quase quatro décadas depois, Tadeu não esconde a emoção de ver Em Busca dos Tesouros, e não descarta 100% a possibilidade de um dia desenvolver uma sequência no futuro, embora a falta de tempo seja o grande obstáculo a ser superado para esse projeto se tornar realidade.
“Eu escrevi uma carta de duas páginas agradecendo ao pessoal da Bitnamic pelo lançamento do Em Busca dos Tesouros para o Atari, e o Fernando Salvio fez um trabalho excelente nessa versão. Eu não descarto fazer um Em Busca dos Tesouros 2 um dia, eu tenho esse desejo, só preciso arranjar tempo para isso.”
Bitnamic comemora lançamento
Game designer por criar a versão de Em Busca dos Tesouros para Atari 2600, Fernando Salvio reconhece a versão original do jogo para o ZX-81 como um grande marco técnico para o aparelho, e diz que o port para o Atari 2600 traz características próprias para se adaptar às características do console, com um número menor de telas, mas uma gameplay mais fluida.
“O jogo original possui 16k. Mas é altamente enxuto. Nesta versão usei a ferramenta Batari, que facilita certas coisas, mas cria um código não tão enxuto quanto poderia ser. Usei um recurso chamado multibanking kernel que permite que eu use mais de 4k para o desenho das telas e sprites, uma limitação do Batari. Nesse sistema, cada 4k que o Atari lê de cada vez, posso criar algumas telas, como se fosse um jogo independente. O prejuízo é que toda a lógica de desenho de telas é repetido a cada pedaço de 4k. O jogo com 100 telas acabou ficando com 64k. Nossa ideia era expandir até 128k ou 256k, e talvez cobrir as 313 telas, mas para o jogo poder rodar no Atari 2600+ (versão oficial atual da própria Atari), que possui essa limitação do tipo da ROM, resolvemos manter em 64k”, explica.
“O Atari, no geral, permite dois objetos (sprites) na tela, dois mísseis e uma “bola”. É praticamente um Pong melhorado. No jogo original existem telas que aparecem muitos objetos diferentes ao mesmo tempo. Para contornar essa dificuldade, usei um míssil para o cipó, um para o elevador e o segundo objeto são os inimigos no geral, tendo que sacrificar algumas coisas do original. Acabava olhando uma tela no original e escolhendo a mecânica principal da tela em questão. Em algumas, acabei criando coisas novas. E para contornar a questão dos “tesouros”, criamos as telas intermediárias onde coletamos os tesouros, pois colocá-los da forma do jogo original seria impossível, ou ficaria bem ruim.”
Sócios-fundadores da Bitnamic Software, Marcus Garret e Filipe Veiga consideram Em Busca dos Tesouros um dos jogos brasileiros mais relevantes da história e um verdadeiro marco técnico para a indústria brasileira. Para Marcus, por exemplo, o fato de o jogo ter sido criado por um adolescente de 15 anos sozinho só torna o resultado ainda mais impressionante e merecedor de elogios.
“O que torna o Em Busca dos Tesouros ainda mais impressionante é entender que o jogo foi criado por um garoto de 15 anos em meados dos anos 1980, num período em que a Internet, como a conhecemos, inexistia, ou seja, nada de Google, nada de pesquisas via I.A. e nada das facilidades da atualidade; num tempo em que a informação se mostrava bastante escassa: ela só existia por meio de livros, que eram bem caros (especialmente para um garoto!), e de revistas, tais como a Micro Sistemas, porém, a informação não era “mastigada” ou particularmente de fácil entendimento”, argumenta.
“Aqueles microcomputadores, como o TK82-C, no qual o jogo foi criado, eram extremamente rústicos e limitados, era preciso tirar leite de pedra. Ainda assim e com todas aquelas limitações, o Tadeu criou uma verdadeira obra de arte para aquele computadorzinho “espartano”: um equipamento sem som, sem cores e com pouquíssima memória; apenas 16 Kbytes. Se você abrir um arquivo vazio do bloco de notas do Windows, verá que ele ocupa mais memória em disco que os 16 Kbytes do TK82-C.”
Sobre o trabalho de preservação de memória de jogos feito com os ports de títulos como Em Busca dos Tesouros para o Atari 2600, Filipe Veiga explica os detalhes do trabalho de pesquisa e consulta à comunidade de colecionadores de jogos retrô, para a posterior busca pelos desenvolvedores dos títulos originais desses títulos que de alguma forma marcaram época na indústria.
“O processo começa com a consulta a comunidades de fãs, colecionadores e desenvolvedores da época, além da análise de arquivos históricos, revistas especializadas e fóruns dedicados ao retrogaming. Quando encontramos um jogo que consideramos importante para a preservação, buscamos o contato com os autores originais ou seus representantes legais para obter as permissões necessárias para um relançamento. Em muitos casos, os próprios autores ficam surpresos e felizes com o resgate de suas criações”, destaca.
“Após essa etapa, realizamos melhorias no jogo, sempre mantendo a fidelidade à versão original. Isso inclui correção de bugs, melhorias gráficas e sonoras, e, em muitos casos, a adição de novos conteúdos nos manuais, como depoimentos e entrevistas com os autores, além da produção de edições de luxo, com vários ‘mimos’. Nosso objetivo é garantir que as novas gerações possam experimentar esses títulos históricos, enquanto respeitamos e celebramos o legado deixado por seus criadores”, conclui.
Imagens: Reprodução
Fonte: IGN