Para além daqueles muros
Boga tinha dentes cariados e quando abria a boca ninguém suportava. Por isso do apelido. Só sabia escrever pouco mais do que o próprio nome. Dezesseis anos e três reprovações. Muito provavelmente haveria uma quarta. Por isso seu pai resolveu tirá-lo dali. Pra ajudá-lo na feira. Tina era a garota mais popular da escola. 15 anos, dezenas de namorados e uma possível gravidez. Ana não acreditava muito naquilo, e sim no truque de Tina para segurar um ex-namorado. Ela a odiava em silêncio. Ainda mais quando via Edu olhando para Tina daquele jeito. Porque Tina sempre deixava implícito a Edu a ideia de que um dia ele iria comê-la. Falava as maiores putarias na frente dele, que o deixavam louco. Louquinho. Daí Edu fazia todas suas vontades. Agora, por exemplo, estava trepado num pé de jambo, só porque Tina desejava comer jambos. Mas todo mundo ali sabia que Tina não ia dar pra ele. Ela só gostava de dar para os caras mais velhos. “Hey, só com uma mão!”, gritou Edu. Desce daí, doido! Boga falava se acabando de tanto rir lá atrás, junto a Ari. As meninas também riam. Na tentativa de atingir os amigos com alguns jambos, o máximo que Edu conseguiu foi acertar portas e janelas da casa que ficava à em frente ao pé de jambo. Era mesmo um palhaço!
Boga ainda limpava as lágrimas na blusa, quando disse “Porra, esse bicho é doido! Pena que no próximo não vou tá aqui pra vê essas presepadas!
”Por quê?,quis saber Ari.
Meu pai vai me tirar da escola. Falou que eu já sabia contar. Então eu podia passar troco. Dá e recebê e não ser tapeado.
E tu vai trabalhar com quê?
Cabeceiro. Igual a ele quando começou na feira.“Com cinco ano já carregava fruta e verdura na cabeça, junto com meu pai. E tô aqui vivinho até hoje. Tem esse negócio não.” Ele falou.
Os dois ficaram alguns segundos calados como se um anjo tivesse passado entre eles. Ninguém suportava Boga: Só Ari, que tinha em Boga sua companhia. Sabia da dificuldade de Boga tinha para ler e escrever. Como se fosse pouco, Edu ainda o chamava de “meu Burro Boga”. E Boga só fazia rir da própria estupidez. Pois sabia que era verdade. Porém, não ligava. Enquanto Edu dava sonoras gargalhadas porque Boga não conseguia estabelecer simples conexões de sílabas. Ria dos dentes cariados de Boga e das suas roupas doadas, quando ficavam apertadas em seu corpo. Sua irmã estudava na mesma escola e estava apenas um pouco mais adiantada que ele. Boga tinha muitos irmãos. Tanto ele quanto sua irmã tinham os rostos marcados e a pele ferida. Pareciam dois velhos em corpos de crianças. Boga adorava quadrinhos. Trazia de vez em quando para que Ari pudesse ler para ele.
“Me dá aqui teu celular, a resolução é melhor que o meu”, tomou das mãos de Ana, antes que ela dissesse algo. Tina gritou para Edu fazer uma pose. Ficasse de cabeça pra baixo. Olhou um tempo para o celular, para suas funções, enquanto procurava a camêra. O que não daria por um celular daqueles? O pai de Ana enviava dinheiro para ela lá de Portugal. Trabalhava como garçom. Levaria ela e a mãe pra lá ainda este ano — segundo Ana, que contava com isso todos os dias!— , não era como o seu, que enchia o rabo de cachaça todos os dias. Ana, preocupada, veio pegar o celular das mãos de Tina, que agora tirava selfies. Que entregou dizendo: “TOMA ESSA MERDA! TÁ PENSANDO QUE EU VOU ROUBAR, RATINHA? PEGA!”. Ana ficou menor ainda dentro do corpo franzino, que mal ocupava lugar no espaço. Baixou a cabeça e saiu dali sem nada dizer. Ratinha. A ratinha mimada, era como Tina a chamava. Lembrou do dia em que chegou com um sutiã de fôrro porque Tina, na semana anterior, havia dito que nem peito ela tinha ainda e por isso os meninos não olhavam para ela. Você ainda é virgem, né? Dá pra perceber pela tua cara. Mesmo humilhada constantemente, Ana sentia necessidade de andar ao seu lado. Talvez, usando as tintas que Tina aplicava na cara — parecendo uma piranha —, talvez, um conjunto de roupas menos vulgar, Edu também olhasse para ela, da mesma forma como olhava para Tina. Olhou para si mesma. Para os cambitos de ratinha.
Os jambos atirados na janela e toda a algazarra não passaram despercebidos. De repente, dos fundos da casa em que ficava o pé de jambo, veio uma voz. Puxado uma perna, a velha se aproximou do portão. À sua frente vinha um cão. Com os dedos descarnados, apoiando-se por entre as grades, a velha gritou-lhes: EU VOU CHAMAR A POLÌCIA PRA VOCÊS, SEU BANDO DE MOLEQUES VAGABUNDOS! MEU FILHO É DA POLÍCIA!
Todos tiveram um susto. Ficaram sem reação. Só Edu, que sem ninguém esperar, lá de cima, apertou o pau na direção da velha: O AQUI PRA VOCÊ, SUA VELHA, E PRO TEU FILHO! Edu odiava a polícia. Queria ser como o tio quando crescesse, que morreu durante um confronto com a polícia, davam as notícias da época, ao resistir à prisão. O pai de Edu, que sofreu com a perda do irmão, conseguiu se safar. Também havia sido um malandro das antigas. Hoje era irmão. Não queria aquela vida para Edu. Sabia que era sem futuro. Mas só não via quem era doido: Edu já era um marginalzinho em curso. Já dava até pra ver seu rosto nas páginas policiais.
Peraí, gritou desesperada a velha. Procurando as chaves para abrir o cadeado. Enquanto um cão debatia-se nas grades do portão, querendo sair.
Rapidamente, num salto, Edu desceu do pé de jambo, amortecendo a queda com os joelhos e as mãos, que limpou na calça. E todos se puseram a correr e a gritar, empurrando-se uns aos outros. Alguns moradores, que não entendiam nada do que estava acontecendo, esticaram seus pescoços, a ponto de ver Ari tropeçando numa lata de lixo e Boga o levantar do chão. Só depois de algum tempo, passadas algumas ruas, chegaram a um largo sujo e abandonado, com pneus coloridos e velhos bancos de madeira: estavam mortos de cansados! De braços abertos, Edu se deixou cair na grama. As garotas riam escoradas uma à outra, ao mesmo tempo que buscavam ar, e na mesma hora deram por conta de um balanço desocupado. Vamo lá? disse Tina, enquanto Ari ainda tentava se recompor, apoiando-se nos joelhos, com a cabeça baixa. “Não, podem…podem ir…eu vou já”, disse. Seu coração ainda estava acelerado, apesar do riso. Ficou nervoso. Tinha medo que fossem “apanhados”, de que aquilo servisse de gatilho para uma de suas crises epilépticas. Que aliás, era a única coisa que não suportava depois do próprio nome que o pai deu-lhe em homenagem ao avô: Ariosvaldo. Só teve uma crise uma única vez no colégio. E foi o bastante para olhá-lo torto. Ficou se debatendo pelo chão e espumando pela boca. As garotas guardaram certo nojo daquilo. A escola guardou certo nojo daquilo. Diziam eca, que nojo! Olhou em direção às meninas, que agora estavam no balanço, junto com Edu. Olhou para Ana, que agora balançava Tina, e nem sequer perguntou como ele estava. “Ari, você pode ler para mim?”. Mostrou Boga umas Hq ́s a Ari. Boga gostava que Ari lesse, porque Ari fazia sons de raios e explosões com a boca tipo boooommmm. Ari balançou a cabeça afirmativamente enquanto segurava o peito com a mão. Pegou a revista das mãos de Boga e sentou-se na grama. Boga sentou-se ao seu lado. Era nesses momentos que queria ser como Edu: destemido, orgulhoso! Foi Edu, que a Boga, foi tomar “satisfações” com um outro garoto, que sempre roubava o lanche de Ari na escola .A pressão era tanta, todos os dias, que aquilo deixava Ari ansioso a ponto de quando via o menino que roubava seu lanche, começava logo a tremer. Por isso teve aquela convulsão na escola. — Vamo dá só dar um se ligue nele, disse Edu um dia. O esperaram na saída: Edu, Boga e Ari. E aquela ali, apontou Ari. Não foi difícil pegar o moleque, que devia ter uns 14 anos, porque Boga era ainda mais velho, mais alto e tinha mais corpo. Rapidamente o alcançou e segurou seus braços. Levaram para uma parte um pouco afastada da escola. Um terreno baldio, próximo a um enorme muro, onde antes funcionava uma fábrica de reciclagem. Tá vendo esse boy aqui? dizia Edu, segurando o queixo do garoto enquanto virava em direção a Ari. “Eu não conheço ele”, respondia o menino quase chorando, com os braços voltados para as costas, segurados por Boga. Conhece não? Dizia Edu. Peraí que tu vai lembrar dele. Aplicou uns tapas no rosto do garoto, e logo o viu balançar a cabeça afirmativamente. Seguiu-se uma série de murros, pontapés, chutes no saco, e puxadas no cabelo. Ari acompanhava tudo assustado, a ponto de iniciar outra crise. Edu encontrou um pedaço de madeira que estava ali perto. Aproximou-se de Ari, e disse: Vai lá, acerta ele! Agora é tua vez! O menino levantou a cabeça para Ari, toda marcada e vermelha. Lágrimas escorriam de seus olhos. Quase lhe suplicando piedade. Ari tremeu todo. Já tinha visto a mesma coisa acontecer a um cão, quando Edu encontrava com cães. Empurrou o pedaço de madeira que Edu apontava à sua frente e saiu. Edu aproximou-se do garoto. “Segura aí, Boga!” gritou.Mirou o pedaço de madeira no rosto do menino. Mediu o objeto e a distância. Simulou como um rebatedor de baseball,indo e voltando, simulando a tacada. “Um… dois…. dois e meio…”. Ari ficou de costas. Só virou quando ouviu a pancada e o corpo do garoto no chão. BUM! Na parede do muro, resto de sangue. “Corre, maluco, corre!”, gritou Edu. Então todos correram.Ari teve febre naquela mesma noite. E se mataram o garoto? Sua mãe, preocupada, deu uma dose extra de Levetiracetam, para evitar uma convulsão, como prescreveu o neuro. O garoto que costumava roubá-lo só apareceu semanas depois. Sem os dentes da frente. E quando olhava para Ari, desviava o caminho. Amanhã haverá teste de Matemática.Tina vem tirando boas notas. Ana também. Boga nem se preocupa mais. Ari terá que estudar hoje à noite. Porque Edu também rouba o lanche dos outros garotos. Mas Ariosvaldo, como chama Ari às vezes, quer só a cola. Afinal, livrou ou não livrou do outro garoto?Faz uma careta como se tivesse tendo um ataque epilético e bola de rir. O nome era psicopatia, Ari descobriu tempos depois, quando fazia faculdade, sobre Edu.
Nhec, nhec, rangiam as correntes enferrujadas do balaço. Agora era Tina que empurrava Ana. E a empurrava com tanta força que Ana gritava com as pernas ao ar, quase dando uma volta sobre si mesma, pedindo para parar. E quanto mais pedia, mas seu corpo se lançava aos céus.Nhec,nhec, Paaaaraaaaa, Ratinha, Ratinha mimada! Nhec,nhec! “…E de repente… Boooommm! gritou Ari fazendo aquela sua expressão de caras e bocas e as mãos abertas dando mais amplitude à cena, como Boga gostava. Nããããooooooo, vinha os gritos seguidos de choro. Ratinha, Ratinha mimada!Disse Tina, que abandonou o balanço, enquanto Ana chorava. Sem ligar para o que aconteceia, Edu chamou a atenção das duas — Olha ali!: no meio da praça, a briga entre um travesti e um garoto, misto de índio com do ator mexicano Gael Garcia, que segurava um pitbull pela corrente. Tinha o cão tatuado no abdômen trincado.Com a mão na cintura, gesticulando, o travesti, todo montado, de salto alto e peruca que balançava, apontava o relógio indicando a hora. Mas o índio, que levantava as mãos para se defender, apenas ria — o que só a deixa mais irritada! O travesti o acertava com bolsadas, enquanto o índio tentava segurá-la. Então ela parou. Até ter percebido marcas no pescoço do seu índio ! E logo recomeçou. E quanto mais levantava o braço para o índio, mais o índio ria e se defendia, para espanto geral da praça — e gritos de alguns outros que também passavam por ali incentivando a briga. O gongo do cansaço soou novamente. Então ela se pôs contra as cordas. Ficou observando os próprios pulsos. Depois, o peito do índio, e o tanquinho com a tatuagem do cão. O índio lhe pediu um cigarro, e ela, com a mão tremendo, catou em sua bolsa, e o acendeu. Colocou na boca do índio.E do mesmo modo como uma mãe arrependida confere o corpo de um filho depois de lhe bater, ainda que este filho fizesse por merecer, sabe que dói mais nela. Porque ama cada pedacinho ali.Vive, e morreria, por cada pedacinho.O índio, com o cigarro na boca, segurava a mão dela e os dois saíam dali, do palco da praça.
O sol caía no fim da tarde. Ana pulava em um pé só nos pneus coloridos seguida de Ari.Boga fazia iniciais do seu nome nos bancos com tinta de corretivo. Vamo embora?Alguém falou. E todos concordaram. Aos berros, corriam e se empurravam no caminho de volta. Pareciam índios, diziam as senhoras nas calçadas em tom de indignação. E quem se importava? Poucos ali seria alguma coisa na vida. Ou teria um bom emprego. Salário digno. Amanhã colocariam novamente as cadeiras umas sobre as outras e ganhariam o mundo.Era a única certeza que tinham sobre a vida.
Longe da praça, a meio da caminho de casa, Tina dizia: Nossa, tô morrendo de sede. Quando mais a frente encontram um garoto do outro lado da calçada, de uma rua por onde vinha. Não devia ter mais do que 10 anos. Magro. Descalço. Pequeno. Sambudo. Vestido de maneiras simples e, ao contrário de Boga, sua roupa parecia caber dois si. Edu : “Hey, boy, vem cá! Me dá cinco picolés! O menino rapidamente se aproxima do grupo e abre a caixa.Todos falam ao mesmo tempo perguntando pelos sabores. Tem de quê?Empurrando-se uns aos outros e metendo a mão na caixa de isopor. Ai, eu tô com tanta sede que eu chuparia até mais um, fala Tina.Pode pegar, diz Edu. “Vocês também! Quem quiser pode pegar.” E todos vão lá novamente. O garoto a princípio teme pela caixa de isopor. Mas seus olhos crescem, porque sabe que vai ter um bom lucro. Pegaram tudo o que tinha!Começa a sorrir!Hey, tira uma foto da gente, pede Tina ao menino. Cada um fica ali com um picolé na boca, e faz uma pose. Edu corre até o garoto e puxa o celular da mão dele. “Peraí, se não tiver ficado boa, vou pedir pra você tira outra”. Na mesma hora chega uma mensagem — já falei pra você parar de ficar me enviando mensagem!Minha mulher anda desconfiando! Diga quanto é que eu pago pra você tirar! Tina chega e toma o celular de Edu, que apaga a mensagem.”Cadê a foto…ficou legal!Ficou massa!”Na mesma hora um medo súbito toma conta de Ana. MEU CELULAR, MEU DEUS!O CELULAR QUE MEU PAI ME DEU!Que foi ratinha?Perdeu o celular do papai?Diz Tina sorrindo.
“Foi você!Foi você que roubou meu celular!”Disse Ana. que parte para Tina, mas é segurada por Boga e Ari.
CÊ TÁ LÔCA, RATINHA?TÁ LÔCA!DEIXA ELA VIM! PODE VIM RATINHA! DEIXA ELA VIM! Ana corre, se afasta do grupo, e sai aos prantos.
É, tá na hora da gente ir, diz Edu ao grupo. O garoto do picolé, que assistiu a toda cena, diz: Ei, você não me pagou pelos picolé!
“Como é?” Diz Edu. “O picolé que vocês chuparam, Você ainda não me pagô”. Repetiu o garoto.
“Eu acho que você não me entendeu, boy! Eu disse a você eu quero picolé, então você me deu. Eu não disse que queria comprar. Eu disse que queria um picolé. O menino ficou espantado. A princípio pensou se tratar de uma brincadeira.Os outros também. Afinal, Edu os convidou. Pensaram que ele tinha dinheiro. Só perceberam que Edu falava sério quando deu as costas ao garoto. “Ei, eu quero meu dinhêro!”
Boy, se manda! Disse Edu. Só que o garoto insistia. Então Edu se aproximou do garoto, e o acertou com alguns chutes na bunda. O menino tentou correr, e quanto mais corria, mais Edu o chutava. Por fim, Edu pegou a caixa de isopor e a fez em pedaços. O menino apanhou e ficou ali no chão, com o braço cobrindo os olhos cheios de lágrimas, e a secreção escorrendo do canto do nariz. Ari se aproximou do garoto e perguntou: Quanto foi? O menino levantou a cabeça. Os olhos inchados e vermelhos e respondeu entre soluços, ao mesmo tempo em que puxava o catarro que escapava do nariz enquanto chorava: Dez reais. Ari abriu meteu a mão no seu bolso, mas só havia um e cinquenta. Esticou na direção do garoto. Boga deu outros cinquenta centavos.
Mais a frente, Edu esperava os dois junto a Tina. E esses dois com esse menino! Vamo embora que amanhã tem teste de Matemática! Edu lançou um olhar apertado de lince em sua direção. “ Pra quê a pressa, se o Prof de Matemática anda te cumendo?”
“Quê?” respondeu Tina, perplexa. “
“Eu vi a mensagem que ele enviou pro teu celular. Copiei. Passei pro meu.” Tina ficou sem ação.
“Tu não tem vergonha, hein? Cara casado…um gordo nojento daquele! Ainda por cima, careca!”
“Por favor, não diga isso a ninguém. Eu ainda…”
“Não, não vou dizer a ninguém. Nem se preocupe. Mas como vai ser? Na minha casa ou na sua?”
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