Há 35 anos, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o dia 11 de julho como o Dia Mundial da População. A data, estabelecida em 1989, foi inspirada pelo marco dos 5 bilhões de habitantes no mundo, atingido em 11 de julho de 1987 – hoje, o mundo já comporta 8 bilhões de habitantes. A celebração visa incentivar governos, organizações e a sociedade civil a desenvolver políticas e ações que promovam o desenvolvimento sustentável e o bem-estar das populações, especialmente em regiões enfrentando desafios significativos, como o Nordeste brasileiro, marcado por seu histórico de desigualdades e grandes fluxos migratórios, acentuados principalmente na década de 1970.
Por décadas, o Nordeste foi caracterizado por altas taxas de natalidade, analfabetismo e um desenvolvimento econômico e social aquém de seu potencial. Nos últimos 20 anos, entretanto, a região passou por transformações profundas, embora ainda enfrente desafios para superar completamente sua imagem negativa. Para compreender melhor as mudanças ocorridas e desmistificar a visão de uma região atrasada, conversamos com cientistas do Programa de Pós-Graduação em Demografia da UFRN (PPGDem) sobre o desenvolvimento desta vasta parte do Brasil, considerando os últimos 50 anos.
De acordo com Ricardo Ojima, chefe do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA/UFRN) e também coordenador da área Planejamento Urbano e Regional/Demografia junto à Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a região Nordeste atingiu, em 2022, uma população total de 54,6 milhões de habitantes, que é quase o dobro da população nordestina em 1970. “Olhando esses números, temos a impressão de que a população cresce muito, mas isso é parcialmente verdadeiro, pois entre 2010 e 2022, o crescimento populacional foi da ordem de 0,24% ao ano. E entre 1960 e 1970 esse crescimento foi de 2,48% ao ano. Isso está associado ao fato de que, de lá para cá, o ritmo de nascimentos caiu de modo sistemático e expressivo”, acrescentou.
Segundo o demógrafo, é uma tendência mundial e nacional a queda nos nascimentos na região Nordeste, embora essa diminuição tenha começado depois que em outras regiões do Brasil, aconteceu mais rapidamente. Outro fator importante é que as taxas de mortalidade também reduziram muito rápido, um pouco antes da queda das taxas de natalidade. “Não se trata de uma especificidade da região Nordeste, mas a queda dessas taxas nessa ordem é o que chamamos de transição demográfica. Vivemos, portanto, nesses 50 anos uma passagem de altas taxas de natalidade e mortalidade, para um novo momento em que temos baixas nessas taxas”, explica Ojima.
A transição demográfica impacta significativamente a dinâmica populacional, já que altera sua estrutura etária. A participação de crianças diminui, enquanto aumenta a proporção de idosos, embora a maior concentração ainda esteja nas idades adultas. Esse fenômeno, conhecido como bônus demográfico, ocorre quando há uma alta participação de pessoas em idade ativa na população, proporcionando uma oportunidade para crescimento econômico e desenvolvimento social.
Marcos Roberto Gonzaga, que assim como Ojima é professor do PPGDem/UFRN, esclarece que ainda há desigualdades regionais na redução da mortalidade infantil no NE, mas já se pode verificar uma convergência maior dessas taxas no país. Essa queda, segundo o demógrafo, tem relação com o surgimento de vacinas e melhores condições sanitárias que proporcionaram avanços no controle e tratamentos de muitas doenças transmissíveis. “No caso do nordeste, há pesquisas que demonstram que as políticas de transferência de renda condicionada e outras políticas, como por exemplo o Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC), tiveram importante contribuição na queda da mortalidade infantil na região”, reforça.
De acordo com Marcos, a própria queda da mortalidade infantil impulsionou, num primeiro momento, o controle deliberado do número de filhos. Em seguida, o acesso aos meios contraceptivos, maior acesso às informações, aumento da escolaridade, maior entrada das mulheres no mercado de trabalho, entre outros fatores, foram determinantes para uma generalizada da fecundidade em todo país. “O nível de qualidade de vida depende de múltiplos fatores, mas o controle racional e voluntário do número de filhos pode contribuir para uma melhor qualidade de vida de toda a família”, acrescenta.
Luciana Lima, coordenadora do PPGDem/UFRN e vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep), reforça que apesar dos avanços na redução da mortalidade infantil no primeiro ano de vida, há desafios significativos a enfrentar, como garantir um pré-natal de qualidade para prevenir complicações que podem afetar negativamente a vida das crianças. “Um dos principais desafios é combater a alta incidência de partos prematuros, um sério problema de saúde pública tanto no Brasil quanto globalmente”, pondera.
Fecundidade e desigualdade de gênero
A atuária e demógrafa Luana Myrrha (PPGDem) observa que a mudança no comportamento das mulheres interfere nas taxas de fecundidade do Nordeste. Quanto mais oportunidades de trabalho ou estudo uma mulher tem, maior a probabilidade de ela adiar a gravidez. Hoje muitas, inclusive, optam por não ter filhos para se dedicarem às suas carreiras profissionais. Segundo Luana, o aumento da escolaridade e a maior inserção no mercado de trabalho para elas são fenômenos tanto nacionais quanto regionais.
“As mulheres, inclusive no Nordeste, já são mais escolarizadas do que os homens, embora ainda estejam menos presentes na força de trabalho. Segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), no primeiro trimestre de 2024, a taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho da região foi a menor do país, 43,6%, ao passo que essa participação foi de quase 58% nas regiões Sul e Centro-Oeste e de 55,9% no Sudeste. E a taxa de desocupação foi a maior do país para as mulheres residentes na região (14%). Para os homens, a participação na força de trabalho foi de 65,3% e a taxa de desocupação foi de 9%”, mostra Luana Myrrha.
Na visão da demógrafa, essa desigualdade de gênero ocorre porque, histórica, cultural e socialmente, existe uma divisão sexual do trabalho, que impõe às mulheres a responsabilidade pelo cuidado do domicílio, dos filhos, dos idosos, das pessoas com deficiência e das pessoas doentes, o que gera uma demanda de tempo de trabalho, que não é remunerado. Consequentemente, as mulheres não dispõem do mesmo tempo que os homens para se dedicarem ao trabalho remunerado. Por isso, muitas acabam saindo da força de trabalho, ou preferem trabalhos informais com menor carga horária para dar conta de tais demandas e outras sofrem preconceitos de gênero na contratação ou na carreira, principalmente quando são mães.
“Mesmo que as mulheres estejam mais escolarizadas, a ausência de políticas públicas, como, por exemplo, o investimento em creches e escola integral para crianças, dificulta a inserção e permanência delas no mercado de trabalho. Essa subutilização da mão de obra feminina na região pode ser explicada por vários fatores, um deles é o menor desenvolvimento regional e menor oferta de empregos. Além disso, no Nordeste ainda há uma forte presença do machismo e do patriarcado, que reforçam a cultura da divisão sexual do trabalho”, explica Mirrha.
Nas classes mais baixas, continua a demógrafa, as mulheres mães têm ainda mais dificuldade de se inserir no mercado de trabalho, uma vez que, se não há escola integral e gratuita, não tem quem cuide de seus filhos para que elas possam trabalhar. “Essa realidade é um pouco diferente nas classes média e alta, pois as mulheres conseguem pagar babás ou escolas integrais para seus filhos. Considerando que no Nordeste a desigualdade de renda é maior, esse fator também explica parte da subutilização do capital humano feminino” compara.
A marca da migração
Por causa da predominância dos fluxos de saída do Nordeste em direção ao Sudeste, a região sempre foi considerada como um local de expulsão de sua população. Ricardo Ojima e Victor Hugo Diógenes (PPGDem) explicam que ainda hoje esse deslocamento populacional é importante e destacado na comparação do país. No entanto, outros fluxos e também uma ampliação da importância dos movimentos internos à própria região Nordeste ganharam força nos últimos anos. “De um modo geral, os fluxos migratórios são mais diversos. Além do aumento dos deslocamentos dentro da própria região nordestina, destaca-se também movimentos para outras regiões além do Sudeste, como o Centro-Oeste, motivados principalmente pelas oportunidades ligadas ao agronegócio”, disse Victor.
A demógrafa Silvana Queiroz (PPGDem) observa que a migração de retorno para o Nordeste continuará sendo uma tendência. Isso significa que pessoas que haviam migrado para outras regiões do Brasil estão retornando ao Nordeste. Além disso, ela menciona que o volume de pessoas se deslocando para longas distâncias entre estados está diminuindo, enquanto aumenta o movimento de pessoas dentro do próprio estado (intraestadual), especialmente em direção às cidades de médio porte próximas das Regiões Metropolitanas (RMs) e em áreas rurais do Nordeste.
O Censo Demográfico, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a cada dez anos para contar e caracterizar a população do país, é crucial para atualizar dados demográficos, econômicos e sociais. Marcos Gonzaga e Ricardo Ojima esclarecem que a contagem populacional é uma ferramenta crucial para capturar dados detalhados da população em todo o país, permitindo análises desde o nível municipal até o intramunicipal. O censo de 2022, por exemplo, se destacou por sua ampla cobertura domiciliar, embora a precisão dos dados populacionais possa variar entre regiões devido aos fatores como acesso aos domicílios e qualidade das respostas.
Embora existam outras fontes de dados, como registros administrativos, escolares e hospitalares, estas ainda não oferecem o mesmo nível de consistência e detalhamento proporcionado pelo censo. Para os muitos pequenos municípios, especialmente no Nordeste, o censo continua sendo essencial, pois muitos não têm capacidade para desenvolver sistemas de informação próprios para formulação de políticas públicas. Portanto, o investimento no censo demográfico não só é crucial para fornecer informações de longo prazo à sociedade, mas também para orientar eficazmente as políticas públicas em diversas localidades do país.
Um dos avanços notáveis no Censo 2022, segundo Luciana Lima, foi a maneira como a população quilombola e indígena foi enumerada e teve suas características específicas obtidas. Na visão da demógrafa, a utilização de metodologias e instrumentos de coleta especialmente desenvolvidos permitiu uma contagem mais precisa, fundamental para compreender a dinâmica demográfica e as necessidades desses grupos tradicionais.
“Mais do que um aprimoramento da coleta para se chegar a esses grupos, os dados do Censo 2022 avançam na inclusão de pessoas historicamente invisibilizadas pelo Estado na pauta das políticas públicas de diferentes áreas, como habitação, educação, mercado de trabalho, saúde, entre outros. E esse avanço foi importante sobretudo para a Região Nordeste, que concentra a maior parcela de pessoas autodeclaradas quilombolas do país (68%) e a segunda maior de pessoas indígenas (31%)”, complementa.
Desigualdades persistentes
Na perspectiva de Ricardo Ojima, as desigualdades regionais no Brasil são estruturais e persistem ao longo dos anos. Apesar dos avanços observados nas últimas décadas, ainda é perceptível essas disparidades representadas nos principais indicadores de desenvolvimento, como por exemplo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Segundo o demógrafo, nas três dimensões que compõem o IDH (expectativa de vida, educação e renda), a região Nordeste apresenta indicadores piores quando comparado com outras regiões, principalmente Sul e Sudeste, como taxa de analfabetismo e índices de pobreza. Contudo, fomentada por uma série de políticas públicas, algumas dessas desigualdades vêm apresentando uma diminuição nas últimas décadas.
“Embora o Nordeste ainda enfrente desafios significativos, há sinais de progresso e potencial para melhorias contínuas. Um dos aspectos importantes é considerar também as desigualdades internas e não levar em conta apenas as médias da região como um todo. Isso porque as desigualdades socioeconômicas são grandes internamente e, ao mesmo tempo que temos localidades muito bem em termos de indicadores de desenvolvimento, ainda persistem regiões de grande carência e dificuldades de enfrentar os desafios seculares impostos pela trajetória histórica e cultural do país”, defende Ojima. Diante disso, o demógrafo compreende que aumenta a responsabilidade e importância de pesquisas que possam se concentrar nessas desigualdades internas, entendendo as especificidades dessa região extensa, populosa e diversa.
Um dos aspectos que mudaram de forma importante a dinâmica populacional e o desenvolvimento regional, segundo Ojima, foi a expansão e interiorização do ensino superior e técnico no interior do Nordeste. A região recebeu investimentos significativos a partir do final dos anos 2000 e ampliou consideravelmente o acesso a esse nível de ensino. “De modo imediato, esses investimentos já impactaram na maior mobilidade populacional entre as localidades. Municípios interioranos passaram a receber e enviar estudantes cotidianamente dinamizando o comércio, os serviços e todas as atividades ligadas ao complexo educacional”, contextualiza.
No médio prazo, esse avanço contribui para fixação e melhor distribuição das oportunidades de renda, com uma população mais escolarizada e com melhores oportunidades de atração de investimentos econômicos dada pela oferta de mão-de-obra qualificada. “No longo prazo, há um potencial enorme de aproveitamento, mesmo que por curto período de tempo, do bônus demográfico. O interior do Nordeste sempre foi uma região de fluxos migratórios importantes com saídas de pessoas em idades adultas–jovens. A ampliação da oferta de ensino superior nessas localidades possui um potencial importante de reduzir esses fluxos e reduzir também o impacto que essas emigrações têm no processo de envelhecimento populacional”, comenta Ojima.
Nordeste envelhecido
O envelhecimento populacional emerge como um desafio premente em muitos países, caracterizado pelo aumento significativo da proporção de idosos na sociedade. Esse fenômeno, que já é observável no Brasil, é impulsionado pela queda das taxas de natalidade e pelo aumento da longevidade, criando um cenário em que a estrutura social e econômica precisa se ajustar rapidamente. Os sistemas de previdência e saúde enfrentam pressões crescentes para oferecer suporte adequado a uma população mais idosa, demandando soluções inovadoras e políticas públicas eficazes para garantir o bem-estar e a qualidade de vida dos idosos.
Marcos Gonzaga alerta que o envelhecimento populacional avança de maneira ampla, impulsionado principalmente pela queda da taxa de fecundidade. Para ele, em diversas localidades pelo país, espera-se uma diminuição absoluta no tamanho das populações já na primeira metade deste século. Enquanto isso, a proporção de idosos continua a crescer de forma acelerada. “No Nordeste, os indicadores seguem a mesma tendência observada nacionalmente”, confirma.
Embora algumas regiões estejam mais avançadas nesse processo, há uma clara convergência em direção a uma estrutura populacional cada vez mais envelhecida ao longo deste século. “Os desafios são variados, mas os equacionamentos do ponto de vista econômico e fiscal são fontes constantes de preocupação, especialmente em termos de custos para tratamento de saúde e equilíbrio previdenciário. Também são preocupantes a falta de infraestrutura de algumas cidades para atender uma população mais idosa e com maiores níveis de morbidade ou incapacidade funcional”, adiciona Marcos.
O demógrafo José Vilton Costa (PPGDem) complementa que o envelhecimento populacional no Nordeste provoca ainda o aumento de doenças crônicas e a necessidade de cuidados prolongados, especialmente diante de desigualdades socioeconômicas. Entretanto, isso também abre possibilidades para iniciativas que promovam a saúde desde jovem, utilizando tecnologias, como a telemedicina, para melhorar o acesso aos cuidados de saúde, principalmente em áreas remotas. Além disso, programas que estimulem o envelhecimento ativo, a participação social e a qualificação dos profissionais de saúde podem contribuir significativamente para elevar a qualidade de vida dos idosos. “Enfrentar esses desafios e explorar essas oportunidades exige estratégias integradas, considerando as particularidades regionais, visando um envelhecimento saudável e sustentável para toda a população”, alerta Vilton.
Outro problema preocupante, segundo Luana Myrrha, é que o envelhecimento dessa população está projetado para criar uma significativa pressão financeira futura, especialmente para sustentar os idosos. Sob o sistema de repartição simples da previdência social, onde as contribuições dos trabalhadores ativos financiam os benefícios dos aposentados, o aumento da proporção de idosos em relação à população economicamente ativa coloca um desafio considerável.
Myrrha chama atenção também para a informalidade no mercado de trabalho do Nordeste, que atinge 51,3% de sua população, sendo a segunda maior do país, segundo dados da PNADC, 2024. Isso significa que muitos trabalhadores informais, que não contribuem para a previdência durante suas carreiras, serão dependentes de políticas assistenciais na velhice. “O Benefício de Prestação Continuada (BPC), destinado aos idosos com mais de 65 anos de idade, cuja a renda domiciliar per capita é inferior a um quarto do salário mínimo, é um benefício que abarca parte desses idosos e, portanto, tende a ser mais demandado no futuro, diante do atual contexto de alta informalidade. Mas é importante ressaltar que parte dos idosos não terão acesso nem ao BPC, e nem à previdência social, por não atingir os critérios de elegibilidade de cada um, sendo um grupo demandante de política pública capaz de garantir a sobrevivência na velhice”, lamenta Luana Myrrha
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Fonte: Agecom/UFRN