Os últimos

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Cristina! Saí dali apavorado, ainda sem acreditar! A princesinha da escola! Eu sabia: era uma questão de tempo! Um dia, Cristina! Ainda que eu fosse o último! Como o padre da nossa pequena paróquia costumava dizer: Está lá em Mateus: “muitos serão chamados e poucos os escolhidos”. De fato, muitos foram até você e eu nem sei mesmo se você me escolheria se eu não estivesse ali, tão à mão; se não tivéssemos nos reencontrado depois de vinte e cinco anos enquanto esperávamos aquele ônibus, porque ninguém te ofereceria uma carona agora, Cristina, a garota mais linda da escola; nem mesmo num dia chuvoso como aquele em que os céus pareciam desabar sobre nossas cabeças, simplesmente porque todos já estavam fartos de você – eles haviam jogado teus ossos fora. Menos eu, fiel como um bom cão, pra te lamber os ossos; menos eu, pra te acolher debaixo daquele guarda-chuva quebrado. Eu disse: “Acho que não deve passar mais ônibus por aqui, mas posso te levar debaixo desse guarda-chuva quebrado, se você quiser.” E você: “Eu não me importo de andar embaixo do seu guarda-chuva quebrado”, então se aproximou e se apoiou em mim, e logo segurou o meu braço com firmeza. Você entendeu que eu era a sua melhor opção… porque eu era a sua única opção. Então eu me exibi ao seu lado cheio de orgulho – ainda que ninguém mais lhe dirigisse o olhar como nos velhos tempos, em que você era a princesa da escola. Você riu quando eu disse isso, e percebi as rugas no seu rosto, e a falta de dois molares no canto superior de sua boca. Seu ar de cansaço. Você trabalhava até tarde num balcão de uma lanchonete, com dois filhos pequenos pra criar. Alguém já havia me falado. Ela não é mais aquela garota. Dá pra qualquer um agora. Daí eu entendi, Cristina, que minha vez havia chegado, entendi, pois eu era o qualquer um no meio da multidão, e ninguém poderia me roubar isso agora. Chegamos os dois encharcados a uma vila suja e vagabunda que você chamava de lar. Você girou a chave de mansinho na porta, insistindo pra que eu entrasse. O seu lar consistia numa sala, uma mesa, dois pares de cadeiras – uma delas com uma perna quebrada –, uma pilha de pratos sujos e restos de brinquedos espalhados pelo chão. Você procurou até que encontrou os últimos três palitos de fósforo, um fogo que teimava em não vir – pois seu gás estava pra acabar –, então deitei o botijão para ver se tirava algo dali. Você conseguiu fritar ovos com cebola que comemos com um resto de café requentado. Você ficou impressionada com os detalhes que guardei, seus, durante todo, todo esse tempo. Rimos de mais algumas histórias e eu achei o buraco no meio dos seus molares ainda mais maravilhoso! Então de repente olhei a hora e falei: é tarde. Preciso ir. Eu tirei algum dinheiro da minha carteira e coloquei sobre a mesa. Disse que era para o seu gás. Você quis chorar, daí perguntei pelos “pais” de seus filhos. Você me disse que um estava preso porque há meses não pagava a pensão, e o outro, o outro… era casado. Bem, você me falou eu não sei o que farei para não cortarem minha luz esta semana. Daí me levantei. Olhei para o fundo da minha carteira quase vazia e tirei de lá duas últimas notas solitárias. Coloquei junto às outras sobre a mesa. E assim me despedi de você. Você se levantou e disse: Fique. Eu não posso, falei. Você pegou minha mão e passou próximo ao seu rosto, à sua boca, e disse por que você não entrou na minha vida antes? Então lembrei da parábola de Mateus e de repente saí de minha condição sentindo-me especial. E nós nos aproximamos de novo, e nos beijamos de novo, e fomos em direção ao banheiro e nos amamos ali, no chão úmido e lodoso daquele banheiro. Eu não era mais um cão. Eu era um sapo que você tinha transformado num rei.

 

***

 

 

Então eu gozei. Tentei lhe dizer algo, mas apenas soluçava. Você se afastou de mim, enfiou-se debaixo daquele chuveiro. Eu procurei minhas roupas espalhadas no piso grosso do banheiro, pensando no tempo que havia dispensado a você – uma meia hora num chão imundo, e os vinte e cinco anos de uma vida devotados a uma puta! –, porque lá de dentro você me perguntava se me pagavam bem onde eu trabalhava e se, de repente, eu não poderia indicá-la a qualquer coisa, ou a alguém, quem sabe? E que esperasse você na sala porque você queria o meu contato. Eu menti, dizendo que era corretor de imóveis – meu carro estava numa oficina –, do mesmo jeito que você mentiu ao dizer que aquele início de calvície me caía bem e que nunca havia me achado assim tão feio na época em que estudávamos juntos. Você soube disfarçar muito bem, confesso. O problema é que eu também. Procurei o dinheiro que havia deixado na mesa, mas ele não estava mais lá. Eu não a vi entrando no quarto para ver as crianças. Você devia ter colocado no bolso da calça ou… Procurei debaixo do pano da geladeira. E lá estava. Tentei me apressar, porque o barulho do chuveiro havia cessado, ainda ajeitando a camisa por dentro das calças. Virei-me na ponta dos pés, com o dinheiro em minhas mãos, e dei de cara com o garoto, que ficou ali me encarando sem entender. Puxei duas notas miúdas. Entreguei a ele e fiquei com o resto. Fiz sinal de “silêncio” com o dedo indicador sobre os lábios e disse aos sussurros: “Compre algumas balas para você amanhã de manhã”. Saí.

A chuva continuava. Tentei abrir meu guarda-chuva, mas ele emperrou. Com raiva, arremessei-o no lixo. As mãos nos bolsos amassavam as notas de dinheiro úmidas – só para ter certeza de que ainda estavam ali. Andava depressa e olhava para trás de vez em quando. Para ver se alguém me seguia. Meus pés espalhavam poças de lama por onde eu passava. A mesma lama que me cobria toda vez que os carros passavam por mim, próximo ao meio-fio. Dentro da lama, a sola de um de meus sapatos ameaçava se descolar. Parei embaixo de uma marquise onde um bêbado tentava se abrigar do frio enrolado em alguns jornais. Amanhã acordaria cedo para ir trabalhar na portaria de um edifício. Então lembrei de você, Cristina. E daquele garotinho parado, me observando. Daquela vila suja e vagabunda que você chamava de lar. Saí de lá com duas certezas: Mateus havia mentido; Jesus, nos enganado. Os últimos serão sempre os últimos!

Imagem: Pixabay

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