Conforme o tempo passa, cada vez mais jogos de qualidade são lançados, muitos dos quais marcam nossas memórias de maneira especial. No entanto, existem aqueles títulos que se destacam de forma excepcional, tornando-se experiências verdadeiramente inesquecíveis e até mesmo transformadoras. Se eu tivesse que escolher três games com essa relevância em minha vida, To the Moon certamente estaria entre eles.
Por que a Lua?
Lançado originalmente para PC em 2011, e estando atualmente disponível também para Switch e plataformas mobile, To the Moon marca o início de uma extraordinária trilogia desenvolvida pela Freebird Games, sob a genial liderança de Kan Gao. A série gira em torno da Sigmund Corporation, uma empresa especializada na criação de memórias artificiais para aqueles que estão nos seus últimos momentos de vida. Esse serviço permite que os clientes realizem seus desejos mais íntimos e sonhos mais profundos, garantindo-lhes um fim sem arrependimentos.
Neste primeiro capítulo, acompanhamos a história de John, um homem idoso que perdeu sua amada esposa River há poucos anos, e que nutre um forte desejo de ir à Lua. O problema é que esse indivíduo não faz ideia do motivo por trás dessa vontade; ele simplesmente sente uma convicção profunda de que é disso que ele mais precisa para partir em paz.
Os protagonistas que controlamos e que auxiliam John a alcançar seu sonho são Eva Rosalene e Neil Watts, funcionários da Sigmund Corporation. Para cumprir essa missão, eles adentram as profundezas das memórias do paciente, buscando inserir um gatilho em um momento crucial de sua juventude. Esse estímulo é o que permitirá que a mente de John recrie sua própria história e, assim, alcance o objetivo almejado.
“O final não é mais importante que os momentos que levam a ele.”
To the Moon brilha e cativa principalmente por sua narrativa, e o trabalho realizado neste sentido é nada menos que primoroso. Grande parte disso se deve ao fato de que os personagens concebidos por Kan Gao são extremamente humanos, não apenas em comparação com outros jogos, mas também em relação a obras de ficção em geral.
Começando pelos doutores, enquanto Eva é mais séria e direta, Neil é brincalhão e, por vezes, um tanto indiferente. Essas diferenças propiciam atritos e alfinetadas entre a dupla, gerando a maior parte das situações cômicas do título. Assim como é altamente provável que aconteça com jogador, esses dois indivíduos não encerram essa jornada da mesma forma e com os mesmos pensamentos que a iniciam.
John é um enigma que desvendamos aos poucos, até finalmente compreendermos a razão por trás de seu anseio de ir à Lua. Nossa aventura por suas memórias parte dos eventos mais recentes e retrocede até a sua infância. Intrinsecamente relacionados ao curioso sonho deste homem, há outros mistérios capazes de nos surpreender, ao mesmo tempo que nos levam a entender completamente suas frustrações e anseios.
Por fim, mas de maneira alguma menos importante, temos River, a falecida esposa de John, tão misteriosa quanto o próprio desejo do homem de sair da Terra. Já nos momentos iniciais, descobrimos que ela possuía um comportamento peculiar de criar origamis de papel e pedir ao marido que os descrevesse. Além disso, a mulher sempre estava acompanhada por um curioso ornitorrinco de pelúcia.
A forma como esses personagens interagem entre si é um dos principais aspectos que fazem a obra de Kan Gao ser tão extraordinária. Toda a trama é entregue a nós de forma muito natural, com diálogos que realmente poderiam acontecer na vida real. Assim, nenhum indivíduo diz algo apenas para explicar um conceito ao jogador, pois cada conversa é meticulosamente enraizada em seu devido contexto.
To the Moon pode ser concluído em cerca de quatro horas, mas, ao alcançarmos seu desfecho, a sensação é de realmente termos percorrido toda a vida de um casal. À medida que avançamos cada vez mais fundo nas memórias do paciente, descobrimos camadas e particularidades sobre ele e sua esposa, o que faz com que a obra proporcione uma experiência que emociona a cada segundo. Embora o final do jogo seja surpreendente, belo e, talvez, um pouco amargo, tudo o que acompanhamos até aquele ponto é o que realmente importa e o que nos desmorona no desfecho.
A beleza da simplicidade
Semelhantemente a outras aventuras narrativas 2D, a jogabilidade de To the Moon é extremamente simples e consiste basicamente em andar por pequenos ambientes e interagir com objetos. Como mencionado, a campanha nos leva a vários períodos da vida de John, começando em sua velhice e indo até a sua infância.
Em cada fragmento da memória, devemos localizar itens-chave que servem como gatilhos para adentrarmos mais profundamente nas lembranças. A cada transição entre as etapas da vida do indivíduo, somos desafiados a resolver quebra-cabeças simples, os quais envolvem a manipulação de colunas de quadros para formar uma imagem. O jogo também oferece situações interativas diversas que se encaixam perfeitamente e, por vezes, humoristicamente dentro de cada contexto, como uma inusitada circunstância em que andamos a cavalo.
Embora os visuais também sejam simples, eles são ricos em detalhes e conseguem até mesmo transmitir as emoções dos personagens por meio de suas expressões e reações. Outro aspecto igualmente formidável é a trilha sonora, composta por diversas faixas que se encaixam perfeitamente nos momentos cômicos, dramáticos, felizes ou de suspense. Vale destacar que todas as músicas foram compostas pelo próprio Kan Gao em colaboração com a artista Laura Shigihara.
É realmente difícil explicar o quão impactante é a parte sonora desse jogo e o quanto ela contribui para o resultado final. Desde os primeiros minutos, ao adentrarmos na casa do paciente e ouvirmos o casal de filhos da governanta tocando “For River”, uma melodia que John criou para sua esposa, fica evidente que essa será uma experiência muito fora da curva.
Uma curiosidade que vale a pena mencionar sobre a versão mobile (não tive a oportunidade de confirmar, mas acredito que também vale para o Nintendo Switch) é a inclusão de uma espécie de diário. Esse artigo é preenchido automaticamente com as informações que coletamos ao longo da jornada, oferecendo uma maneira conveniente de acompanhar os detalhes descobertos durante a aventura. Além disso, a campanha é dividida em vários capítulos menores, permitindo que o jogador revisite momentos específicos da história a qualquer momento que desejar.
Uma arte inspira a outra
A associação mais comum feita com To the Moon é com o filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças. No entanto, vejo muitas semelhanças entre o estilo narrativo de Kan Gao e os métodos de dois cineastas: Christopher Nolan e M. Night Shyamalan. Assim como nos melhores trabalhos desses dois diretores, To the Moon pega um conceito quase fantástico e o estrutura de maneira crível e sem exageros, criando um cenário consideravelmente plausível.
Há quem sugira que, após o grandioso sucesso de O Sexto Sentido e seu extraordinário final, Shyamalan tenha se tornado refém de reviravoltas em suas tramas, inserindo esse artifício em praticamente todas as suas obras subsequentes. De certa forma, podemos notar um padrão similar em Kan Gao, já que, além de To the Moon, Finding Paradise e Impostor Factory também apresentam plot twists, o que certamente sempre mantém o jogador que acompanha a série ansioso para ver como o final do próximo jogo o surpreenderá e arrancará suas lágrimas. Vale lembrar que Nolan também utiliza reviravoltas com muita frequência.
Além da semelhança do conceito central da Sigmund Corporation com o filme A Origem, no qual a trama gira em torno da ideia de entrar na mente de pessoas em estado de sono para roubar ou inserir informações, temos em comum entre as histórias de Kan Gao e Nolan a não linearidade, uma característica que nos faz ingressar em seus universos como mais um personagem.
Nesse sentido, Eva e Neil visitam a mente de John de trás para frente (de certa forma, similar ao filme Amnésia), e nós descobrimos novas peças do quebra-cabeça que é a mente do paciente apenas quando esses dois indivíduos também as descobrem. Sendo assim, nas obras de Kan Gao, assim como em muitas de Nolan, o jogador se torna mais um investigador e protagonista.
Mesmo tendo uma grande curiosidade sobre como seria um cenário hipotético no qual esse desenvolvedor estaria por trás de um filme, creio que To the Moon, bem como suas sequências, estão na mídia exata em que deveriam estar. Enquanto Nolan pode até ser questionado por não conseguir desenvolver bem seus personagens em algumas ocasiões e Shyamalan por trazer algumas reviravoltas que não parecem tão naturais ou coerentes, na minha opinião, Kan Gao ainda não falhou em nenhum desses aspectos.
“Apesar de que ser capaz de articular isso é outra história.”
To the Moon não é apenas uma simples obra de ficção, mas uma jornada profunda que nos convida a refletir sobre nossas relações e conexões. Infelizmente, mesmo que eu continuasse a escrever eternamente, jamais conseguiria transmitir plenamente o poder que esse jogo possui. Se você ainda não teve o prazer de conhecer esse título e estiver disposto a se aventurar, mantenha isso em mente enquanto desvenda a história do casal, principalmente a de River.
Texto de Lucas Oliveira
Fonte: GameBlast