Confessionário

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Com um “quê” de Clarice, a coluna hoie fica por conta da delicadeza de Victória Rincon e seu “Confessionário”

Ânsia! Vira e mexe, na minha vida, sinto ânsias viscerais que me movem a ações vindas de não sei onde, sedentas de não sei o quê. Tento me concentrar em qualquer atividade e essa ânsia volta, remói, contorce, formiga, coça. Já tentou fazer alguma coisa enquanto se retorcia de enjoo? É como me sinto.

Parece que engravidei de mim mesma e algo dentro de mim pulsa querendo sair, vomito palavras como desde cedo fiz.

Impulsos tontos como aquele de estar dirigindo e pensar como seria se eu atirasse o carro contra o poste. Resisti a muitos, a este de agora não consigo mais. Quero te narrar algo que ainda nem sei, como a mãe que não sabe que face seu filho vai ter. Estou grávida de mim mesma, já te disse, e não sei que face tenho, ou até se ​ tenho. Meus pensamentos escapam de mim, a realidade escapa de mim, e se eu dissesse isso em alto e bom som talvez me julgassem louca. Que é a sanidade? Isso me intriga. Quais são os limites da razão? Às vezes me sinto em um mar revolto que me faz engolir água, às vezes boio sobre as ondas e elas apenas me enlevam.

Já me neguei direitos muito básicos como isso de engolir a água do mar figurativo que lhe falo. Não posso, sou mais forte que isso; não posso, tenho boas condições para não permitir que isso aconteça; não posso, estou perdendo algo ao fazer isso; estou romantizando o engolir da água; estou deslegitimando quem realmente se afoga por aqui.

Posso ser cruel comigo.

E às vezes acho que até me achar cruel é fraqueza minha, a culpa me ronda. Mas o que me trouxe até aqui foi a ânsia.

Quero tanto lhe escrever que por um momento me faço crer que tenho algo a dizer. Não tenho. Me sinto um tanto patética e talvez a vida seja isso mesmo. Tenho vergonha que me leia e quero tanto que o faça… Como a nudez da virgem. A ânsia e o temor. Não sou escritora, convenço-me. E daí penso onde nasce essa figura. Não sou escritora até que seja, não sou corajosa até ter a coragem, e um dia não serei mais. Onde estão as coisas antes que sejam e para onde vão depois que não são? Onde eu estava enquanto Clarice escrevia se apenas conheceram minha face muitos anos depois? Onde estavam meus pais quando um camponês da Idade Média nasceu? E é certo que Clarice está dentro de mim e é certo que houve um camponês que, de alguma forma, influenciou na vida dos meus. Se agora respiro, é porque há diatomáceas no oceano me fornecendo oxigênio, aprendi num documentário. E aí o quê? E aí que não sei de meus limites e sinto que sou bandeira num mastro, oscilando num vento que certa hora vai me rasgar.

Passei a lhe escrever porque acho que posso cansar os outros com minhas divagações, até porque elas pouco pretendem e uma conversa sem conclusão é uma roupa com um fio solto que pode desfazer toda a costura.

Eu não me conformo.

A existência é escorregadia demais, fugidia demais, não aprisionável. Quero dissecar um lambari que tento pescar com as mãos. Impossível, não sou pescadora. Até que talvez um dia seja. Não sou entendedora dessa questão do que é real, até que talvez um dia seja. E ali serei eu? Se hoje digo que não sei entender esse mar revolto, quando o souber, não terei morrido? É por isso que sinto um tanto que engravidei de mim. Sou uma boneca russa, uma cobra que troca de pele, mas não sou especial por isso. Tudo é assim.

Quando lhe falo, já não sei se sou eu ou sou você. Entrei na sua mente e nem me foi servido um café. Também receio que não tenha batido à porta, maus hábitos meus. Cheguei irrompendo até para mim, pari a mim mesma na porta de sua casa, desculpe o transtorno. Queria criar uma personagem ficcional para tornar mais distante essa narrativa. Juro que tentei, mas não consigo. Estaria te enganando e me escondendo atrás de uma máscara que não encaixa em meu rosto.

Apareço nesse espelho sem banho nem maquiagem e é estranha essa visão de me ver fora de mim. Estou aí ou cá? Talvez eu nunca deixe que me leia, como os vários escritos que tenho desde a infância, quando eu era escritora antes de ser. Não acho que vou falar algo profundo ou que você não saiba, acho que posso até lhe entediar. Mas, sabe…. A mãe não deixa de parir por achar que seu filho vai ser mais um no mundo. É fisiológico. Assim também está a acontecer comigo. Não espero que me ame, que me veja, que me valide, embora algo em mim espere esse abraço. Eu só preciso. Preciso de quê? Não sei. Precisar é impreciso, o trocadilho me sai já com alguma repulsa. Mas é como a fome da madrugada que embrulha o estômago, mas nada na geladeira parece agradar. A existência tem um pouco disto.

Insatisfatoriedade.

A vitória já é o prenúncio da derrota, a embaixadinha que não está vencida porque a bola não caiu por trinta vezes. Se cair na trigésima primeira, já se perdeu. A exposição numa rede social que só dura vinte e quatro horas e, se eu te provei algo nesse período, pouco importa, pois amanhã terei que reprovar. Provar e reprovar, no significado que você atribuir, não vou lhe poupar a interpretação, a imaginação, o teu espaço nessa roda.

É que eu pari e me trouxe ao mundo, saí de dentro de mim e me ponho dentro de você, sem esforço de minha parte. Se você fechar essa página e me deixar de ler, já não sou mais dentro de ti. É você que me põe para dentro agora. E isso pouco difere do que faz com o rapaz na rua, que seus olhos mastigam atentos e você o leva pra casa mesmo que ele continue ali onde estava. A gente se multiplica dentro das pessoas? Quando sonhas comigo, estou em ti ou permaneço em mim? Quando alguém me deseja sem me conhecer, quem está desejando de fato? Não me conhece, pobre criatura, e ainda assim me envaideço por um instante. Vou lhe decepcionar! Rio do hiato entre o que pensam de mim e o que sou. Mas o que sou? Isso também me escapa.

Preciso dizer que há coisas que me irritam. Volto a você como quem volta a um padre num confessionário. Não vejo seu rosto e isso me conforta, pois, se o visse, talvez enxergasse o julgamento que também nasce em mim. Meus pensamentos transitam e às vezes sinto que morrem antes de nascer, antes de se fazerem palavras. Suspeito que todos tenham um livro escrito dentro de si, mas muitos de nós são analfabetos de sua própria linguagem. Às vezes, coisas borbulham aqui em meu corpo e não sei lê-las. Antes que eu consiga captar suas mensagens, elas estouram para nunca mais. E assim acho que perco um pouco mais de mim e um pouco mais da existência.

Mas, como vinha a lhe confessar: há coisas que me irritam. Quando percebi isso pela primeira vez, foi como olhar para baixo em um sonho e me descobrir desnuda. Que vergonha, que horror. É que criamos tabus para nós mesmos e ali nos escondemos como que com roupas bem-acabadas que não somos, mas que nos vestem. Roupas diferentes dessas que aqui lhe apresento, porque as minhas são cheias de furos e linhas soltas, como eu te adiantei serem as formas de meus pensamentos.

Às vezes, tenho vontade de colocar as pessoas no 2.0. Parece que estão lentas, meio mortas, principalmente se estão ébrias, como se afundadas em um sofá que são elas mesmas. Não gosto de moralismo, que as pessoas façam mesmo o que querem; se querem estar lentas para se anestesiar, que fiquem. Mas não posso ser hipócrita e ignorar que me irritam (quando não estou na mesma sintonia). Procuro a pessoa no fundo de um copo turvo, difícil de encontrar. Difícil de estabelecer o contato, então me emboto também em mim, como se embaixo de uma colcha grossa que me separa da pessoa também distante de si.

Não sei se sou justa com os que me rodeiam, com essa pressa de que eles sejam. Devia dar espaço para que fossem e acho que isso é o melhor agrado. A presença serena dos ouvidos abertos, do corpo enraizado como a árvore que oferece sombra sem contar minutos, de você que me oferece suporte sem que eu o/a conheça. Temos sempre um chão para cair, essa é uma sustentação básica e fortalecedora. Digna ou não, o chão me suporta. Queria ser assim para a vida. Às vezes acho que sou. Deito numa rede e vejo a vida inteira ali, a condensação perfeita de tudo que já foi e tudo que será.

Nada precisa ser feito.

O encaixar do filho no seio da mãe, pacífico e natural. Toda a nutrição necessária.

Mas há momentos em que não, está tudo colorido de uma acidez inquietante e eu me apresso para não sei o quê. Me empurro para o momento seguinte, para o momento seguinte, para o momento seguinte.

Tenho vontade de correr sem usar minhas pernas.

É curiosa essa coisa de sentir.

Texto de Victória Ricon

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