É fato notório que o Poder Judiciário vem exercendo protagonismo institucional nos últimos anos, o que demonstra a sua importância e imprescindibilidade institucional ao Brasil. Portanto, sua atuação deve procurar se pautar numa ótica sistêmica; avaliando todas as consequências de suas decisões; sopesando os aspectos coletivos e individuais; o equilíbrio com os demais Poderes; analisando as searas internacionais; mensurando a necessidade de ativismo judicial; etc. Tudo, com o propósito contributivo e colaborativo de impulsionara o Brasil a um crescimento sustentável, consciente e estratégico (sob o manto da legalidade, obviamente).
Dito isto, passemos a analisar o Tema 1.230, com trâmite judicial em curso, no STJ (Superior Tribunal de Justiça), cujo Site (Fonte:https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/19012024-Repetitivo-vai-definir-tese-sobre-possibilidade-de-afastar-impenhorabilidade-de-salario-por-divida-nao-alimentar.aspx) noticiou, em 19/01/2024, que “Repetitivo vai definir tese sobre possibilidade de afastar impenhorabilidade de salário por dívida não alimentar”:
“A questão submetida a julgamento, cadastrada como Tema 1.230 na base de dados do STJ, vai definir o alcance da exceção prevista no parágrafo 2º do artigo 833 do Código de Processo Civil (CPC), em relação à regra da impenhorabilidade da verba de natureza salarial tratada no inciso IV do mesmo dispositivo, para efeito de pagamento de dívidas não alimentares, inclusive quando a renda do devedor for inferior a cinquenta (50) salários mínimos”.
O artigo 833 do Código de Processo Civil de 2015 taxa um rol de bens que são impenhoráveis, a exemplo “da quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos”.
Ao mesmo tempo excepcionou que essa regra não se aplica “à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais”.
Em nossa opinião, a exegese é clara, no sentido de que é plenamente possível a penhora em caso de prestação alimentícia e de importâncias acima de 50 salários mínimos (independentemente da natureza jurídica da versa).
Problematizando a situação, reflitamos: seria possível penhorar verba salarial para pagar dívida de natureza não alimentar, mesmo que o devedor receba abaixo de 50 salários mínimos/ mês?
A indagação é justamente o que está sendo discutido no STJ, que decidiu afetar os Recursos Especiais 1.894.973, 2.071.335 e 2.071.382.
Não é de hoje que a Justiça vem entendendo ser possível o bloqueio e a penhora de verba alimentar, abaixo de 50 salários mínimos. NO IRDR n. 0000374-37.2021.5.08.0000, do TRT 8ª Região, a tese jurídica fixada foi de que são penhoráveis os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, mesmo que não excedam a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais (Fonte:https://www.trt8.jus.br/sites/portal/files/pdfs/precedente/precedente_irdr_7_id29114.pdf).
A justiça do trabalho também vem permitindo a retenção e penhora do saldo de conta salarial, fundamentando que não é crível tutela a inadimplência a todo custo, sob o pretexto da impenhorabilidade salarial:
“Se por um lado existe a impenhorabilidade do salário, como garantia da parte em arcar com os custos de sua sobrevivência, por outro aspecto este instituto não pode ser utilizado indistintamente, de forma a tutelar a inadimplência de outras responsabilidades também assumidas pelo devedor. Desta feita, doutrina e jurisprudência vêm entendendo que é possível a retenção de 20% (vinte por cento) do saldo existente em conta salário, que não onera em demasia o devedor, permitindo a subsistência básica, e não deixa o credor sem satisfação, ainda que parcial, do débito”. (TJMG – Proc. nº 9029518-40.2018.8.13.0024 – Comarca de Belo Horizonte / 10ª Unidade Jurisdicional Cível – 28º JD da Comarca de Belo Horizonte –juíza ANA CRISTINA VIEGAS LOPES DE OLIVEIRA, j. 08/01/2024).
A Justiça estadual também vem entendendo que é possível a penhora parcial da aposentadoria, para a pagar débitos do beneficiário devedor:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. PROVENTO DE APOSENTADORIA. PENHORA PARCIAL. POSSIBILIDADE, DESDE QUE SE PRESERVE A DIGNIDADE DO DEVEDOR. Pretensão à reforma de decisão que deferiu o desbloqueio de apenas 30% dos proventos de aposentadoria recebidos pela recorrente. A regra da impenhorabilidade salarial não caracteriza direito absoluto e deve ser compatibilizada com o direito de crédito, desde que não viole o princípio constitucional da dignidade, garantindo a subsistência do devedor. Mitigação da impenhorabilidade adotada pelo STJ. Precedentes deste TJSP. No caso em apreço, não ficou demonstrado que a penhora de 30% do provento acarretaria ofensa à dignidade da executada, em que pese estar acometida por doença grave. Decisão mantida. Recurso não provido. (TJ-SP – AI: 20334471320218260000 SP 2033447-13.2021.8.26.0000, Relator: Djalma Lofrano Filho, Data de Julgamento: 22/04/2021, 13ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 22/04/2021).
O próprio STJ tem julgados, onde permitiu a penhora de verbas remuneratórias:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. NATUREZA ALIMENTÍCIA. PENHORA DE VERBAS REMUNERATÓRIAS. POSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DO ARTIGO 833, § 2º, DO CPC/2015.
1. A Corte Especial do STJ, no julgamento dos EDcl nos EAREsp 387.601/RS, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, DJe 4/3/2015, consolidou o entendimento de que os honorários advocatícios são considerados verba alimentar, sendo possível a penhora de verbas remuneratórias para o seu pagamento.
2. Com efeito, a jurisprudência do STJ é firme no sentido de que o caráter absoluto da impenhorabilidade dos vencimentos, soldos e salários (dentre outras verbas destinadas à remuneração do trabalho) é excepcionado pelo § 2º do art. 833 do CPC/2015, quando se tratar de penhora para pagamento de prestações alimentícias. Portanto, tendo os honorários advocatícios, contratuais ou sucumbenciais, natureza alimentícia, é possível a penhora de verbas remuneratórias para o seu pagamento.
3. Recurso Especial provido. (STJ – REsp: 1714505 DF 2017/0313034-5, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 10/04/2018, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/05/2018).
É importante destacar que os meios defensivos e recursais do devedor e as possibilidades de substituição da penhora (por seguro garantia, mesmo sem anuência do credor, por exemplo – STJ, REsp 2.034.482), denotam algumas das dificuldades da recuperação do crédito, o que afeta a segurança jurídica e, muitas vezes, a boa fé contratual.
Com as dificuldades na recuperação do crédito, a taxa de congestionamento de processo no Judiciário segue alta. O painel do CNJ em números (Fonte: https://grandes-litigantes.stg.cloud.cnj.jus.br/), também constata um problema sistêmico, que afeta, por exemplo, a gestão dos grandes litigantes, a exemplo do Ministério da Fazenda, Fazenda Nacional, Município de São Paulo, Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, Banco Bradesco, Estado de São Paulo, etc.
Com isso, os riscos dos negócios seguem altos, culminando no desestímulo ao empreendedorismo nacional e internacional, em nosso Brasil, o que enfraquece nossas instituições e, consequentemente, a geração de empregos. Neste contexto, reflitamos:
Quem quer emprestar e não reaver seus recursos?
Quem deseja transmutar uma relação de empréstimo ou financiamento em doação (forçada e unilateral)?
O desestímulo à recuperabilidade do crédito pode ser visto como um cenário de sustentabilidade dos negócios no Brasil?
Com a diminuição do apetite negocial, no mercado brasileiro, a empregabilidade e, consequentemente, as pessoas são afetadas?
Numa análise consequencialista/ sistêmica, entendemos que o Judiciário se fortalece e coopera com o crescimento sustentável do país, quando permite a penhora parcial de verba salarial, para pagar dívida de natureza não alimentar, mesmo que o devedor receba abaixo de 50 salários mínimos/ mês. Destaque-se que a penhora parcial consagra o mínimo existencial do devedor e, ao mesmo tempo, atende certa necessidade do credor. Um meio termo hábil economicamente e equidistante socialmente. Portanto, dotado de Justiça multipartes, ao nosso sentir.
De outro ponto, percebe-se que o entendimento esposado da impenhorabilidade da verba salarial é anterior ao conceito legal de mínimo existencial trazido pela lei do superendividamento (Lei nº 11.150/22) que estabelece em seu artigo 3º o valor de R$ 600,00 (seiscentos reais) de renda mensal como parâmetro, traduzindo a possibilidade, em tese, da disponibilidade do excedente para pagamento de dívidas de qualquer natureza sem atingir a subsistência do devedor, e devendo o caso concreto estabelecer limites à penhorabilidade que atinja esse mínimo e não um critério objetivo e alto para o padrão salarial brasileiro de 50 salários mínimos mensais, estimulando a perpetuação da dívida e desestimulando o crédito ao bom pagador.
Por fim, destacando o princípio da esperança, em um futuro não tão distante, talvez evoluamos com a IA (Inteligência Artificial), onde grande parte dos contratos serão auto executáveis e só batamos às portas do Judiciário, em ultima ratio.
*Advogado Rodrigo Cavalcanti, doutorando em Direito e sócio do MDR Advocacia, Cláudia Elisa de Medeiros Teixeira, mestranda em Direito e procuradora da Caixa Econômica Federal, Bruna Paula da Costa Ribeiro, mestranda em Direito e sócia do MDR Advocacia e Marcos Délli Ribeiro Rodrigues, doutorando em Direito e sócio do MDR Advocacia.
Crédito da Foto: FREEPIK