1. CONSIDERAÇÕES BASILARES E IRDR n° 0005053-71.2023.8.04.0000.
O Judiciário vem sendo instado a sair do seu metaforizado estado (inicial) de inércia, para apreciar o cabimento de danos morais, em casos envolvendo cobrança indevidas de tarifas bancárias. A questão problema que se debate, neste singelo opinium, resume-se no seguinte: É crível indenizar (por danos morais) o consumidor que foi cobrado indevidamente? Ou a devolução/ ressarcimento material (atualizado), com repetição do indébito e com demais encargos processuais, já traduz o ideário de Justiça, da Deusa Themis?
Este debate, está sendo objeto de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) n° 0005053-71.2023.8.04.0000, admitido no Estado do Amazonas, cuja tese firmada é no sentido de que “o desconto indevido da cesta de serviços bancários não configura ocorrência de danos morais in re ipsa, devendo a repercussão danosa ser verificada pelo julgador no caso concreto”.
Neste cotejo, insta ressaltar que as Instituições Financeiras (IFs) são autorizadas pelo Banco Central, conforme Resolução n° 3.919/2010, a cobrarem tarifas para prestação de serviços, exemplificadas nas operações de saques, transferências, impressão de extratos, etc.
A cobrança de tarifas bancárias também é ancorada no Código de Defesa do Consumidor (CDC) e Resoluções do Bacen nº 3.694/2009, com as alterações da Resolução nº 4.283/2013, dispondo sobre a prevenção de riscos na contratação de operações e na prestação de serviços por parte de IFs e demais Instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil (BACEN).
O IRDR já denota que o objeto, em questão, é debatido de forma corriqueira, notadamente no Judiciário do Amazonas, que tem uma alta concentração de demandas judicializadas.
Com uma volumetria procesual considerável, é crível que tenhamos um cenário com entendimentos diversificados, numa ótica de livre convencimento motivado dos magistrados. Não é à toa, que a temática vem causando julgamentos divergentes nos processos de 1ºgrau e 2º grau, no que tange aos danos morais.
O referido IRDR, portanto, visa uniformizar o entendimento do Tribunal, evitando decisões contraditórias sobre a mesma matéria, com o propósito de prestigiar o princípio da segurança jurídica.
É preciso refletir para além da moldura do IRDR, haja vista que os seus reflexos assim exigem:
A mera cobrança em que não haja estado de inadimplência, enseja danos morais?
E a mera cobrança sem inscrição em cadastro de proteção de crédito, causa danos aos direitos de personalidade?
Tendo em vista não ser possível fazer prova negativa, a prova dos fatos a quem alega (ao autor consumidor)?
Ou é um dever processual da IF, pela inversão do ônus probatório, prevista no CDC?
Por fim, é cabível uma distribuição dinâmica do ônus probatório?
2. CONSEQUENCIALISMO DAS DECISÕES JUDICIAIS.
Para responder às provocações supra, destaca-se entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), proferido no Recurso Especial nº 1.550.509/RJ (2012/0033980-4), relatada pela Ministra Maria Isabel Galotti:
“para configurar a existência de dano extrapatrimonial, há de se demonstrar fatos que o caracterizem, como a reiteração da cobrança indevida, a despeito da reclamação do consumidor, inscrição em cadastro de inadimplentes, protesto, publicidade negativa do nome do suposto devedor ou cobrança que o exponha a ameaça, coação, constrangimento”.
O professor Flávio Tartuce ensina que o dano moral pode ser descrito como “aquilo que a pessoa sente (dano moral in natura), causando na pessoa dor, tristeza, vexame, humilhação, amargura, sofrimento, angústia e depressão”, e que, em regra, “necessita ser comprovado pelo autor da demanda, ônus que lhe cabe” (TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 5ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2015. p.397.).
Alegações e argumentações genéricas não são capazez de macular a dignidade ou outros componentes da personalidade. Incabível danos morais, que estejam desprovidos de provas contundentes e irrefutáveis, portanto.
O debate traz consigo questão importantíssima, numa perspectiva de sistematização institucional do Judiciário, a qual versa sobre litigância predatória, externalidades negativas e consequencialismo das decisões judiciais. Aqui, abre-se um parêntese, para destacar que o coautor do presente artigo, Marcos Délli Ribeiro Rodrigues, atua no RESP n. 2021665 – MS (2022/0262753-6), onde se discuti sobre litigância predatória (matéria afetada no STJ).
Com relação às alcunhadas demandas predatórias, a Corregedoria do TJAM publicou, em 16/01/2023, uma importante Nota Técnica, com instruções para que magistrados possam identificar e tomar providências relativas a demandas predatórias:
Demandas predatórias, ou fraudulentas, são aquelas que são judicializadas reiteradamente sobretudo nos Juizados Especiais e que têm o potencial de comprometer a celeridade e funcionalidade da Justiça.
O Poder Judiciário Estadual, por meio de uma iniciativa da Corregedoria-Geral de Justiça do Amazonas (CGJ/AM) e seu “Núcleo de Monitoramento de Perfil de Demandas (Numopede)”, divulgou no final de dezembro de 2022 uma Nota Técnica com orientações para que os magistrados possam identificar e tomar providências relativas a demandas predatórias, ou seja, aquelas que são judicializadas reiteradamente e intencionalmente de forma repetitiva tendo com isso o potencial de comprometer a celeridade e a funcionalidade da Justiça.
Instituído pela CGJ/AM, o Numopede atua na identificação e monitoramento de ações judiciais repetitivas ou com potencial de repetitividade; apoiando os Juízos na identificação de demandas consideradas inadequadas (ou repetitivas), orientando-os quanto às medidas saneadoras e preventivas que possam ser tomadas e divulgando subsídios técnicos, tais como Notas Técnicas, destinados à melhoria dos serviços judiciários.
O Núcleo também tem como atribuições: tomar providências necessárias para a averiguação dos casos submetidos à sua apreciação, inclusive com a solicitação de informações a outros órgãos públicos e entidades privadas; identificar demandas predatórias, bem como outros eventos potencialmente atentatórios à dignidade da Justiça e propor a realização de diligências e comunicação de fatos relevantes às autoridades competentes.
Conforme a Corregedoria, nos processo administrativo que gerou a Nota Técnica, “a litigância predatória é problema grave que demanda enfrentamento através de estratégias múltiplas, intraprocessuais, extraprocessuais (gestão de processos de trabalho) e institucionais; inclusive com a soma de esforços de todos os tribunais, particularmente por meio de seus Centros de Inteligência e mediante colaboração com outros sujeitos e entidades que atuam no sistema de justiça, particularmente Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil e Defensoria Pública”.
No mesmo documento, a Corregedoria-Geral de Justiça menciona que as demandas predatórias têm sido notificadas, sobretudo, no âmbito dos Juizados Especiais, pela característica de estes terem como uma das características a resolução célere de conflitos. Assim sendo, o coordenador dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Amazonas, o desembargador José Hamilton Saraiva dos Santos, citou que diante do sempre crescente número de demandas predatórias que chegam ao Judiciário, medidas para desestimular a prática (de judicialização de ações predatórias) são necessárias.
“Os Juizados Especiais alcançam excelentes resultados em virtude da celeridade. No entanto, por este motivo, eles são muito requisitados e medidas devem ser tomadas para que a proliferação de demandas indevidas não interfiram na boa conduta de seus trabalhos”, afirmou o magistrado.
Já o presidente do Sistema Permanente de Mediação de Conflitos (Sispemec) desembargador Délcio Luís Santos, acrescentou que “por abarrotar o Poder Judiciário e comprometer o seu bom funcionamento, a apresentação reiterada de demandas predatórias precisa ser combatida dentro da legalidade, sob pena de perda de credibilidade de todo o sistema”, apontou o magistrado. (Fonte: https://www.tjam.jus.br/index.php/cgj-sala-de-imprensa/cgj-noticias/7735-poder-judiciario-estadual-divulgou-nota-tecnica-com-instrucoes-para-que-magistrados-possam-identificar-e-tomar-providencias-relativas-a-demandas-predatorias)
Diversos outros Tribunais do país têm demonstrado preocupação com as demandas predatórias, através de suas Corregedorias, Ouvidorias e Núcleos de Inteligências.
O TJRN, por exemplo, também instituiu a NOTA TÉCNICA Nº 07/2023 – CIJ/RN, com o seguinte TEMA – Causas repetitivas: mecanismos de gestão eficiente e prevenção de risco de decisões conflitantes – conexão e cooperação entre juízes de mesma competência:
Em resumo, se o processo é instrumento para a realização do direito material e se a ineficiência da prestação jurisdicional gera custos para toda a sociedade, os atos que importem aumento desnecessário desses custos ou que retardem a adjudicação do direito devem ser coibidos, adotando-se estratégias que melhorem a eficiência da prestação jurisdicional. Nesta linha, são elencadas como boas práticas:
a) monitoramento de demandas repetitivas ou com litigantes contumazes através da consulta da parte através do CPF/CNPJ no PJe ou através de ferramentas de inteligência artificial a serem desenvolvidas no âmbito do referido sistema;
b) identificar a ocorrência de fatiamento de demandas ajuizadas pela mesma parte, com fatos comuns, causais ou finalísticos, aferindo a possibilidade de ser reconhecida a conexão, objetivando não só prevenir o risco de decisões conflitantes, mas também maior eficiência na prestação jurisdicional, com a unificação da produção de provas, redução do número de atos processuais e maior espectro de análise pelo magistrado sobre a natureza e a extensão da lide, inclusive para arbitramento de indenizações;
c) analisar a existência de conduta predatória no fatiamento das demandas, com a aplicação das penalidades processuais cabíveis e comunicar ao Tribunal de Ética e Disciplina da OAB;
d) reconhecer a prevenção do Juízo que primeiro receber a causa por distribuição eletrônica para julgar todas as demais, devendo solicitar que os demais Juízos remetam a ele os processos que tiverem sido distribuídos para outras unidades jurisdicionais ou, em caso inverso, declinar a competência para o juiz prevento que recebeu a primeira demanda, com base nos arts. 43 e 59 do Código de Processo Civil;
e) Ao avocar ou declinar a competência nas hipóteses acima considerar, além da ampliação das hipóteses de conexão previstas no art. 55, § 3º do Código de Processo Civil, utilizar-se dos fundamentos da cooperação judiciária previstos no art. 69, II, do CPC.
*ÉRIKA DE PAIVA DUARTE TINÔCO, JUIZA RELATORA
(Fonte: https://corregedoria.tjrn.jus.br/index.php/normas/atos-normativos/-70/25392–3513/file)
A problemática da litigância predatória é tão importante ao Judiciário, que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou a Rede de Informações sobre a Litigância Predatória:
O fenômeno da litigância predatória tem sido objeto de inúmeros estudos, levantamentos e notas técnicas pelos Tribunais do país. Consiste, normalmente, a litigância predatória na provocação do Poder Judiciário mediante o ajuizamento de demandas massificadas com elementos de abusividade e/ou fraude.
Conforme identificado tanto na consulta feita pela Corregedoria Nacional de Justiça aos tribunais, como nas notas técnicas produzidas pelo Centros de Inteligência do TJMT, TJMS, TJBA, TJRN, TJPE e TJMG, alguns dos indicativos de demandas predatórias ou fraudulentas percebidos pelos tribunais se relacionam com as seguintes características:
Quantidade expressiva e desproporcional aos históricos estatísticos de ações propostas por autores residentes em outras comarcas/subseções judiciárias; petições iniciais acompanhadas de um mesmo comprovante de residência para diferentes ações; postulações expressivas de advogados não atuantes na comarca com muitas ações distribuídas em curto lapso temporal; petições iniciais sem documentos comprobatórios mínimos das alegações ou documentos não relacionados com a causa de pedir; procurações genéricas; distribuição de ações idênticas.
Com o objetivo de combater esse tipo de prática abusiva de efeitos deletérios para o Poder Judiciário ao sobrecarregar varas e tribunais com demandas artificiais, foi concebida, para o ano de 2023, a Diretriz Estratégica n. 7 para as Corregedorias, a fim de que envidem esforços no sentido de regulamentar e promover práticas e protocolos para o combate à litigância predatória, preferencialmente com a criação de meios eletrônicos para o monitoramento de processos e alimentação de um painel único pela Corregedoria Nacional de Justiça.
Nesse sentido, a criação do presente painel da Rede de Informações sobre a Litigância Predatória, no âmbito da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça, é consectário do monitoramento da referida Diretriz Estratégica n. 7 das Corregedorias, e tem por objetivo elevar o nível de efetividade no acompanhamento de questões relacionadas à litigância predatória, notadamente ao fomentar o compartilhamento de dados e informações entre os órgãos dos tribunais do País com atribuições de monitoramento e fiscalização de feitos judiciais que apresentem feições dessa natureza. (Fonte: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/litigancia-predatoria/)
Nos termos do art. 20 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (LINDB), há que se fazer uma análise sobre valoração jurídica abstrata e/ou genérica, sendo imprescindível avaliar o consequencialismo da prestação jurisdicional:
Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Sem mais delongas, na ótica jurídica, aqui se entende pela INEXISTÊNCIA do dano in re ipsa (presumido), na hipótese debatida, inclusive para se evitar enriquecimento sem causa e estímulo às lides temerárias e às demandas predatórias.
Caso se entenda de forma diversa, estar-se-á causando reflexos e externalidades negativas, com aumento do quantitativo de demandas e da taxa de congestionamento no Judiciário, fazendo com que haja perda de eficiência, aumento de custos e um forte impacto negativo institucionalizado (contrariando o ODS 16/ONU, que apregoa paz, Justiça e Instituições eficazes).
Sem contar que as IFs demandadas terão que readequar seus balanços, provisionamentos e contar com um custo extra considerável (contrário ao ODS 08/ONU, que objetiva o crescimento econômico). Com isso, certamente as IFs serão obrigadas a fazer rearranjos financeiros e repassar tais custos ao mercado consumidor. Portanto, a análise sistematizada e consequencialista, no âmbito econômico-social também reforça que não se deve conceber o dano moral presumido.
Em suma, a decisão judicial deve refletir se deve beneficiar alguns litigantes (muitas vezes contumazes); ou ponderar numa ótica consequencialista, analisando as questões jurídicas; as questões de política judiciária (evitando efeitos manadas); as questões macroeconômicas; e os efeitos sociais sistêmicos (desenviesadas de falsos moralismos deve ser consubstanciada numa ótica consequencialista e em desestímulo aos que pensam que podem continuar ofendendo à dignidade da Justiça, com lides roletas russas).
* Advogados da MDR ADVOCACIA, Marcos Délli Ribeiro Rodrigues e Roseane Bezerra da Cruz
Crédito da Foto: Reprodução/TJAM.JUS.BR