Meu advogado conversou comigo ainda há pouco. Vai pedir minha interdição. Sou um homem de 45 anos que não responde pelos seus atos. Mas isso não é verdade. Sei muito bem o que fiz, embora a ação proposta pelo meu advogado, sustentada por um médico, irá dizer que não, que não estou no gozo de minhas faculdades mentais. Apenas tive a coragem que muitos não têm: matei um grupo de mendigos (pausa para um trago). Cianeto misturado à sopa distribuída num abrigo. Ora, por quê? Porque odeio Jesus. Mas isso foi culpa da minha mãe. Não quero me confessar a um padre. Não mais. E se eu disser a um juiz o real motivo pelo qual matei esses mendigos, ele apenas irá balançar a cabeça. Então decidi que vou me confessar a você — se você tiver interesse em me ouvir, claro. Mas creio que você vai querer me ouvir. Pelo simples fato de que as pessoas estão sempre dispostas a ouvir as desgraças dos outros. Meu advogado disse que esse crime teve uma grande repercussão na mídia. Deu pra sentir pela quantidade de repórteres querendo me entrevistar quando eu cheguei por aqui. Pelos flashes das câmeras quando saí do carro com um pano cobrindo minha cabeça. Tudo isso por um bando de mendigos! Você já esteve perto de alguém que há meses não toma banho? Já pensou realmente em abraçar uma dessas pessoas? Era a hora das moscas, como sempre se referiam alguns comerciantes ali perto, inconformados com o sopão do Padre Anselmo, que atraia as moscas e espantava seus clientes. Depois desse crime, vários outros mendigos, que por sorte faltaram nesse dia para irem fumar suas pedras de crack, ou que sobreviveram a essa sopa batizada, sumiram dali com medo da sopinha do Padre Anselmo como Branca de Neve fugiria da maçã envenenada, se soubesse que era uma maçã envenenada. Me pagaram um advogado, bom advogado, sem que eu soubesse. Um grupo de admiradores anônimos. Não tenho admiradores. Muito menos anônimos. Não fiz isso por ninguém. Fiz por mim. Em plena consciência de minhas ações, por ódio a Jesus. (Pausa para amassar o cigarro). Amar o próximo, sabe? Você ama o próximo e o próximo te fode, literalmente. Padre Anselmo que o diga. Ele me comeu. Quantos anos eu tinha? Sei lá. Oito, nove. E o pecador era eu! (Riso. Acende outro cigarro. Ri tanto que tosse ao sorrir). Porque minha mãe dizia que nascemos do pecado. Todos os dias antes de dormir, quando me botava pra rezar, dizia isso. E por pequenas que fossem minhas falhas, na rua ou em casa, me batia. Não me deixava nunca esquecer de quem era a culpa. Talvez por isso senti todo o peso do mundo quando meu pai se mandou, o malandro, à procura de outras bucetas. Eu achava que a culpa era minha, mesmo ele largando sua mulher esquizofrênica no meu colo — ou ela pirou depois que ele a deixou? Não sei. Com um cigarro na boca, ela me arrumava todo para ir à igreja. Seguir os caminhos do “Senhor”. Não ser um homem como foi meu pai. Então Padre Anselmo me empalava, para extirpar-me desses pecados. Enquanto Jesus assistia a tudo pregado numa cruz.
Mas esse negócio de culpa, sabe, é difícil sair. É como uma mancha. Mesmo sendo espancado quase todos os dias, eu amava minha mãe. E cada vez que ela piorava em seu estado, a cada internação sua, eu sentia mais culpa, mas não só eu era atormentado pela culpa. Às vezes, em seus lapsos de lucidez, lembro de minha mãe chorando ao ver as marcas no meu corpo, as cicatrizes por causa dos cigarros que ela apagava em mim — para que eu não voltasse a errar — quando me olhava o corpo, ao me dar banho. Ela chorava muito. E eu chorava com ela, ao acariciar sua cabeça. (Fumaça lançada ao ar. A mão fazendo movimentos). Meu pai, sentindo-se culpado, internou-a num hospício. A culpa é foda.
Amar o próximo. Os cristãos são mesmo engraçados. Por essa época meu pai me levou para morar com ele e com sua nova família — sua mulher e meus dois meios-irmãos. Me matriculou numa escola próximo de onde morava. Vida nova, sabe? Vamos esquecer o que passou. Mas eu não conseguia esquecer o que passou. Os alunos da escola nova da vida nova não me deixavam esquecer o que passou. Esse cara é muito calado! Dizem que a mãe dele é louca! Um sol ducaralho e ele só anda com esse moletom fedido! Deve ser louco como a mãe! Louco, louco, louco! Hey! Gardenal, estou falando com você! Amar o próximo. (Solta fumaça no ar).
Você sabe o quanto um morto fede? Tudo vem dos cem trilhões de bactérias que andam com a gente. Então é só a gente morrer que essas bactérias tomam conta do corpo. Putrescina e cadaverina vêm dessa festa! E não tem flor que dê jeito. Cedo ou tarde, uma hora você vai feder! Mas eu não ligava para isso, sabe? Apesar do açoite. Apesar das muitas vezes em que fui queimado com a ponta de um cigarro aceso. Eu não queria largar minha mãe. Eu e as moscas não ligávamos para isso, como elas não ligavam para o mau cheiro dos mendigos no sopão, que entrava ardendo no nariz. As moscas são o maior exemplo de amor ao próximo que eu conheci. Foi preciso a vizinhança acionar a assistente social para eu largar do caixão de minha mãe e assim cessar aquele mau cheiro. Foi quando meu pai me levou para morar com ele.
Meu pai havia me deixado para tomar conta de meus dois irmãos mais novos. Ele precisava trabalhar, sua mulher precisava ir à cabeleireira. Sua mulher não gostava de levar meus irmãos mais novos quando saía porque eles eram muito agitados — principalmente o garoto. Então eu fiquei cuidando deles. Meu irmão deixou um copo de suco derramar no sofá da sala, brincando com minha irmã. Eu não entendi quando eles chegaram — meu pai e sua mulher —, o alvoroço que fizeram porque queimei meu irmão com a ponta de um cigarro aceso e joguei minha irmã contra a parede — quando ela tentou me impedir, dados os gritos e choro do garoto. A mulher do meu pai queria levar o caso à polícia. Meu pai conversou com ela. Tive que fazer as malas. (Acende outro cigarro).
Estava morando num quartinho numa vila, pago pelo meu pai, que me visitava muito raramente. Fiquei só, a exemplo da minha mãe. Só não. As moscas vinham com frequência. A mosca tem múltipla visão. E por ter múltipla visão, me contava tudo: de uma mulher que esquecera a filha num carro, de um velho estuprador que morava aqui de lado na vila. De uma garota abandonada por seu pai alcóolatra aqui na vila. De um bebum que se deixava bater na cara para ter dinheiro para mais um copo de cana, de pessoas que enlouqueciam por causa da covid.
Eu havia comprado um revólver lá na favela em que compro maconha. Foi nessa mesma época que meu pai me levou a um psiquiatra com o pretexto de me tratar. Eu tinha claramente transtornos psicóticos e esquizofrenia. Precisaria tomar remédios e iniciar uma terapia urgentemente, foi o que o psiquiatra falou. Enfie esses remédios e sua terapia no cu! Enfia você também, papai! Eu havia comprado um revólver lá na favela onde compro maconha — eu disse isso? — para entrar na escola metendo bala em todo mundo. Depois, desisti. Ali na escola são todos uns filhos da puta! Amar o próximo. Faria como Jesus. Este é meu sangue… para remissão dos pecados. Foi então que soube do sopão do Padre Anselmo aos sábados, quando passou na TV. A hora das moscas. Ele estava em outra paróquia. Estava mais velho. Mas não era apenas a velhice. A carne que despencava dos músculos, que afundava na face, tinha algo a mais do flagelo da culpa comum aos cristãos. Padre Anselmo não me reconheceu a princípio. Depois, com lágrimas nos olhos, estremeceu. Fomos a um canto mais reservado da paróquia. Colocou-se de joelhos. Me pediu perdão. Disse que sua vida nunca mais foi a mesma desde aqueles dias. Que desde aqueles dias suaconsciência lhe persegue. Que pensou inúmeras vezes em tirar a própria vida, mas sabia que aos olhos de Deus seria ainda pior. Eu o perdoo, Padre Anselmo.
Crianças de um abrigo que tomaram da sopa batizada da paróquia morreram. Um grupo de cristãos que levantavam cartazes tentava invadir a delegacia. Pediam justiça! Sim, o dar a outra face é uma mentira! — Talvez eu morra antes de ser condenado! Padre Anselmo, que tomava a sopa junto com os mendigos, tivera uma piora. Estava na emergência junto aos outros que sobreviveram num primeiro momento. Vi isso na TV, antes de chegar aqui. Quê? Ele acabou de morrer? Deverá haver uma procissão, uma enorme procissão, por motivo da morte do padre. Daqui alguns anos irão até mesmo ao Vaticano tentar sua canonização. Irão dizer que morreu pelos pobres. E daqui a alguns anos dirão que foram curados por seus milagres. Mas por enquanto não. Por enquanto o Padre Anselmo é carne, e toda carne, cedo ou tarde, fede! E tem as moscas, o maior exemplo de amor ao próximo que já conheci. (Fumaça lançada ao ar).
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