Todo mundo conhecia. O quarto todo fedia à bosta. Ficava nos fundos da casinha modesta e abafada no fim da vila. O velho ficava ali tremendo, com a fralda pesada de urina e merda. Chamava-a por horas. Toda vez que ela saía pra receber o benefício era assim.Parada em frente à portinha holandesa, procurando as chaves. Para um par de narizes sensíveis o odor daquele quarto era como agulhas enfiadas no extremo da cavidade nasal. Para Iolanda, algo comum, pois era só colocar os pés naquele batente, que sabia o que esperava.
Assim que entrou, deixou a bolsa em cima da estante, foi até ele, que não parava de repetir seu nome, ao mesmo tempo em que fazia gestos débeis com as mãos no ar
Com jeito, Iolanda começou a tirar a fralda suja e com esforço colocou-o na cadeira de rodas adaptada ao banho. Teve sorte desta vez, pensou. O conselho já esteve três vezes em sua casa e encontrou o pai afundado em merda. Você não não tem outros irmãos? Tenho. Oito. E porque só você pode cuidar do seu pai, que é idoso e cego?
Porque todos seus irmãos eram casados. Tiveram sorte. Iolanda era a única solteira, embora tivesse tido três filhos. Um menino e duas meninas. Seu ex-esposo bebia todos os dias e a agredia. mas ela sabia que merecia.Então Iolanda o abandonou para cuidar do pai velho. A mãe terminou os últimos dias no João Machado — Hospital pra doido. A senhora conhece?.
Hoje havia saído de casa sem se alimentar direito. Mas não podia parar o que estava fazendo. Ela ao menos podia se mover para pegar o que fosse e levar à boca. E o pai? Também as cólicas não a deixavam. Ia fazer cinquenta e cinco, mas ainda menstruava!Fora o balde de roupas sujas que ainda a aguardava. Não teve tempo de lavar, e assim, iam se amontoando.
Enquanto Iolanda lavava as partes íntimas do pai, passava creme nas assaduras, percebia que o shampoo e as fraldas já estavam acabando. Não fosse sua vizinha, a única que a visitava, ninguém, vinha saber como estava o pai. O benefício que ela recebia do pai não era suficiente para as necessidades e ela também estava desempregada. Pedir algo a seus irmãos? Nem pensar! Como sua amiga tantas vezes sugeriu. “Não existe só você de filha, Iolanda!”
Teria de ser algo prático. Uma canja, pensou. Assim podia se alimentar depois que desse de comer ao pai. Gotículas de suor pendiam de seu buço. Bem como a blusa que se colava às costas. O vento não circulava. Correu à geladeira tomada pela ferrugem. Pegou cenoura, alho, cebola, que comprava na hora do grito na feira, ou que recebia de alguém, e alguns miúdos e asas de galinha.Enquanto cortava os legumes, limpava o suor que escorria agora da testa, com o antebraço de carnes flácidas. Seu pai, lá do canto, gemia Iolanda, Iolanda. E agora vinha o imenso desejo de ir ao banheiro, cagar. Não podia perder a oportunidade, já que há dias não conseguia. Deixou tudo ali, os legumes, o pai, as moscas sobre os miúdos de galinha, e foi. “Oh, meu Deus, obrigada Senhor! ”Dizia de si para si quando despejava a merda no sanitário, que caía muito devagar. Olhou para o lado. Não tinha papel. enquanto através da parede, continuava: Iolanda, Iolanda!
Oito irmãos, três filhos — que preferiam a companhia de um pai bêbado, à do avô. É que sua amiga não sabia que o pai passou anos na prisão. Estuprou a irmã de Iolanda, quando ainda eram bem novas. E quando saiu da cadeia, estuprou suas duas netas, filhas de Iolanda. Foi num quartinho como esse há muitos anos. Iolanda havia voltado de uma faxina. Deixado às filhas sozinhas com o avô.Dado confiança onde os outros só deram às costas.
Iolanda, Iolanda. Chamava pelo seu nome com lágrimas a percorrer-lhe o rosto sulcado, delirando. Não, ela não pensa assim. Ele é seu pai. Por mais que tenha errado no passado, é seu pai, precisa dela. Só Deus pode nos julgar.Pensava nisso tudo quando o colocou de volta na cama, asseado e com lençóis limpos. Ela com cólicas, desde que havia chegado da rua, passando horas em pé naquele banco, e que nem ao menos tinha tomado um banho ou não comera nada. Iolanda pensava que o gás iria acabar. Teria que atravessar a cidade para fazer uma faxina- já que seus irmãos não dariam um tostão– pensava já no que a aguardava amanhã, assim que chegasse naquele mesmo quartinho dos fundos, no fim da vila.