A proposta de Chants of Sennaar é a de tradução. No mundo dos games, isso é melhor descrito como uma campanha de investigação e puzzles, o que combina muito com a ideia de que uma tradução também é uma investigação, afinal.
Com muitas incógnitas e mistérios, a principal recompensa da campanha é o envolvimento pela descoberta contínua. Dessa forma, acredito que seja um daqueles jogos de que se diz “quanto menos souber, melhor”, motivo para fazer uma análise que preserve a experiência para o contato direto dos leitores que se interessarem pelo tipo de desafio do jogo, mas sem deixar de tratar da gameplay e da profunda construção de mundo pelos aspectos socioculturais da linguagem.
Línguas antigas, vivas como seus povos
Em uma colossal Torre no deserto, habitam muitos povos. O lugar tem linhas minimalistas, seguindo os contornos simples e cores luminosas de histórias em quadrinhos europeias, reforçados com hachuras. O estilo encaixa muito bem com o cel shading que faz o visual passear entre a profundidade da terceira dimensão e a composição harmoniosa da segunda para ilustrar as muitas arquiteturas acumuladas na edificação.
De um misterioso sarcófago surgiu você, a pessoa Viajante, aquela que pode vencer as barreiras de pedras, idiomas e preconceitos que separam os Fiéis, os Combatentes e os demais moradores da construção que um dia almejou o céu. Para realizar o feito, porém, é necessário entender o que as nações dizem, o que suas palavras significam e, com isso, quem elas são. Como tradutor de escritas, você será um diplomata de povos.
Os glifos estranhos estão espalhados por toda parte. É preciso observar os arredores, cuidadosamente construídos de forma a fornecer contexto para as deduções da Viajante. Falar com a população local também ajudará a entender a língua o bastante para descobrir como liberar o caminho para ascender ao próximo andar da Torre. Ali, um novo alfabeto de glifos estranhos surgirá.
Mesmo se movendo nesse ciclo, Chants of Sennaar está longe de ser repetitivo. Puzzles diversos entregam pistas de significados, que também serão intuídos por associação com aquilo que você e a Viajante já conseguem ler.
Os alfabetos de glifos são totalmente diferentes entre si e têm lógicas próprias que se revelam na personalidade coletiva de seus povos, na sintaxe das frases e também na própria composição dos sinais gráficos, que gradualmente fazem sentido ao leitor atento.
O jogo da tradução, a tradução do jogo
Em resumo, sintaxe é o estudo de como as palavras são combinadas para formar frases. Chants of Sennaar envereda por essa via em seus nós mentais: a construção da fala de um povo é diferente das demais. Por exemplo, todos têm a negativa, mas a posição do “não” dentro da sentença segue formas diferentes, assim como a formulação de perguntas e do plural dos nomes.
Quando encontramos um glifo, ele é adicionado ao diário. Ao levantarmos uma hipótese de seu significado, podemos anotá-la junto ao sinal para que apareça automaticamente nas próximas ocorrências daquela palavra misteriosa.
Não se preocupe, não temos que adivinhar e digitar letra por letra da tradução. A anotação serve apenas como lembrete para nos ajudar; muito útil, devo acrescentar. A hora de acertar é pré-definida pelo jogo, quando a Viajante pega o diário e cria de três a cinco desenhos que devemos associar aos glifos que já encontramos.
A confirmação vem apenas quando posicionamos todos de forma correta, o que diminui a margem de investirmos em chutes, mas ainda permite a tentativa e erro e a dedução por eliminação. Ou seja: se temos dúvida do significado de apenas um dos desenhos, podemos tentar todos os glifos restantes nele até fechar o conjunto correto. Neste caso, foi o jogo quem deu a resposta ao mostrar um desenho que nós nem imaginávamos. Isso não foi muito frequente, mas aconteceu comigo.
O jogo traz a opção de português brasileiro, que não é perfeita. As falhas são raras, mas podem induzir ao erro e atrapalhar o raciocínio. Outro ponto que pode incomodar é a planta labiríntica de algumas áreas. Um sistema de mapas certamente ajudaria e ainda poderia ser usado como parte do próprio processo de tradução, a exemplo do que já ocorre em um dos andares da Torre.
Vale acrescentar que joguei inteiramente com minha esposa, mesmo sendo para um jogador. Sabe o ditado que diz que duas cabeças pensam melhor do que uma? Também vale para certos jogos de investigação, raciocínio e dedução.
Na experiência de jogar com ela, a parte de ter que entender como cada língua é estruturada aumentou nossa satisfação em compreendê-las, como o estímulo de quebrar um enigma. No entanto, nós dois viemos da área de Letras, então não posso afirmar se essa parte dos puzzles gerará a mesma empolgação para quem tem menos familiaridade com idiomas e tradução.
Não creio, porém, que algum conhecimento formal de linguística seja estritamente necessário para aproveitar Chants of Sennaar. Afinal, este é um jogo de puzzle investigativo em que o design dos enigmas é bem-sucedido em criar uma trilha ascendente de pistas que se complementam e conduzem o caminho, passo a passo. As frases são curtas e acessíveis, na faixa de três a cinco glifos por vez, sem complicações desnecessárias.
A forma e a essência da linguagem são a ponte para a humanidade
Após completar a tradução do primeiro idioma, achei que o jogo precisaria de vocabulários maiores para não ficar superficial ou repetitivo — são cerca de 40 glifos em cada. No entanto, essa impressão mudou radicalmente à medida que avancei pela torre. A habilidade de fazer muito com pouco é louvável e, em Chants of Sennaar, se revela por uma elegante rede de línguas que se comunicam e aprofundam umas às outras em suas diferenças e semelhanças.
No fundo, compreender idiomas significa vislumbrar culturas. A fala e a escrita são, afinal, duas das mais prolíficas formas de expressão de toda e qualquer coisa. Damos nomes até ao que não somos capazes de entender. Os nomes e as coisas mudam de ângulo conforme mudamos de ponto de vista; isto é, culturas são relativas e as pessoas que delas participam também o são.
O estúdio francês Rundisc parece ter grande compreensão dessa dimensão, necessária para alcançar o encaixe minucioso que Chants of Sennaar realiza entre a gameplay dos puzzles, a filosofia de design, a estrutura da campanha, o enredo mitológico e a defesa de uma visão de mundo fraternal e humanista.
Vou resumir assim: a soma das partes é maior que o todo. A ênfase está em “soma das partes”: nenhuma parte sozinha pode ser o todo, nenhum todo existirá pela exclusão silenciosa erguida pelos muros e portas fechadas.
A linguagem e a comunicação são, portanto, o meio para religar a ruptura e conhecer mais do todo fragmentado. Pode parecer uma cosmovisão ingenuamente otimista, mas é válida. Apenas pense em como todas as nossas relações têm que passar por uma ponte entre o Eu e o Outro. É claro que existem muitas pontes diferentes, isto é, muitas linguagens distintas, mas aquela que o jogo escolheu para celebrar é a verbal, especialmente a versão que concretizamos por meio de sinais gráficos — a escrita.
Como uma ferramenta, a escrita nos trouxe a cinco mil anos de literatura, registros, memórias e conhecimentos que podem fazer aquilo que a vida humana é incapaz: vencer o tempo. Sim, o potencial da escrita é ambivalente para o bem, para o mal e para tudo que existe entre um e outro. Seu propósito definidor, porém, é o de comunicar, o que por si só já é um reconhecimento da existência do “nós”, o plural dividido em “eu” e “outro” que pode estabelecer pontes, abrir portas e levar à ascensão torre acima. Uma vez no topo, juntos podemos ver o imenso mundo que nos cerca.
Chants of Sennaar dá espaço para mais interpretações. Essa foi a minha, que ofereço a você.
Uma Babel que atinge as alturas
O game da desenvolvedora francesa Rundisc nos leva a um exercício de traduzir não apenas idiomas, mas também pessoas diferentes de nós. É uma experiência de investigação linguística que só poderia existir na forma de jogo, colocando seu leitor como agente ativo da compreensão, da mudança e da restauração de laços partidos.
Belo, inteligente, envolvente, desafiador e profundamente humano, Chants of Sennaar foi para mim uma experiência única em suas muitas faces. A premissa de puzzles linguísticos não sugere que eu recomende o jogo a qualquer pessoa, mas os que gostam de saborear a forma e o fundo das palavras, mesmo que sem estudos formais, devem encontrar satisfação em decifrar as línguas e seus povos que são, ao mesmo tempo, a tranca e a chave para desvendar um mundo misterioso.
Prós
- Os idiomas são traduzidos por uma rede de puzzles articulados com eficiência;
- A curva de aprendizado incentiva a satisfação da descoberta como recompensa;
- Os contextos socioculturais são expressos na língua de cada povo, somando uma construção de mundo interessante e profunda;
- Belo uso de ângulos, cores e sombras para formar uma estética variada e particular;
- Legendas em português brasileiro.
Contras
- A mecânica do diário induz a solucionar dúvidas pela tentativa e erro;
- Um sistema de mapas ajudaria nas diversas travessias das áreas e encaixaria com a proposta de tradução cultural que o jogo apresenta;
- Os erros de português são poucos, mas menos tolerados por se tratar de um jogo baseado em dedução de palavras.
Chants of Sennaar — PC/PS4/XBO/Switch — Nota: 8.5Verão Utilizada para análise: PS4 (via PS5)
Análise feita por Victor Vitório
Fonte: GameBlast