Esquina do Continente – Entrevista com D. B Frattini

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Comumente diziam os mais antigos: toda esquina é lugar de vagabundo. Rebelando-me à máxima, ou justapondo-me a ela, dei o nome “Esquina do Continente” a uma série de entrevistas que sairá quinzenalmente aqui na coluna Crônicas do meio-fio do JOL, e que começa a partir de hoje. Pra iniciar, convidei a figuraça D. B Frattini. Espero que vocês curtam ler, assim como eu curti fazer a entrevista. Atenciosamente, William Eloi, ou Billy, ou Willy, ou Will ou Neno.

D.B FRATTINI

Professor especialista da Disciplina Fundamentos Estruturais da Composição Artística. Dramaturgo com diversas montagens no Brasil e exterior. Autor de “Abraços Ausentes” (coletânea de contos, 2020, Editora Letraria), “Bofetada e Êxtase” (contos, 2022, Editora Autografia) e “Meninos suspensos” (romance, 2023, Editora Patuá), em pré-venda. @dbfrattini

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Este é D.B Frattini: anjo, demônio. Uma mistura de Oscar Wilde e Andy Warhol. De uma ironia atroz — que não poupa nada nem ninguém; na maioria das vezes, nem a si mesmo. De aforismos agudos como a ponta afiada de uma faca! Este é D.B Frattini: professor, dramaturgo, contista e romancista. Protetor das causas perdidas como a literatura independente de nosso país e de seus artistas. Para quem a vida é um eterno estar diante das luzes da ribalta. Mas, afinal, quem é D. B Frattini? Deixaremos que ele responda essa e outras perguntas.

William Eloi: Quem é D. B Frattini? Outro personagem seu?

D.B. Frattini: É uma boa questão. Em 2023 completo quarenta anos de carreira. Quer dizer que estou na calçada com minha bolsinha há muito tempo e a memória costuma enfeitar os acontecimentos. Não sei mais dizer quem sou e acredito naquela história de ser velho o suficiente para ‘saber que nada sei’. Posso responder sobre o artista mineiro sexagenário, ficcionista, teatrólogo e professor universitário aposentado por invalidez e AVCs e câncer, alguém que insiste na vida pelo simples pavor de ir para o inferno.

William Eloi: Como foi seu primeiro contato com o mundo das artes? E as artes cênicas, como surgiu essa paixão em sua vida?

D.B. Frattini: Não acredito em paixão. Paixão é doença. Estudei Belas Artes, Teatro, Filosofia, Commedia dell’arte, Literatura e algumas outras modalidades artísticas. Comecei a trabalhar muito cedo como dramaturgo: minha primeira peça foi montada pelo Grupo Boi de Mamão, na época residente em Londres. Foi um convite afetuoso e aceitei por causa de Desmond Jones, grande incentivador de Physical Theater, a temporada foi pela Europa, pela Austrália e também pelo Brasil. “Friar” (ou “FREI”) ficou não lembro quantos anos no repertório desse grupo. A partir desse trabalho não parei mais com a escrita. Tenho uma boa memória para algumas coisas e péssima para outras, o uso de substâncias ilícitas faz esses buracos na cabeça da gente. No momento quero a santidade.

William Eloi: Bem, bebida junto à escrita para mim não passa de um mito. O que consegui no máximo foi vômitos e dores de cabeça (risos).

D.B. Frattini: O álcool é a pior das drogas e é lícita. A hipocrisia no momento de legalizar venenos no Brasil é risível. Uma grande palhaçada onde a bandidagem lucra e o usuário apanha. É preciso compreender a inversão de valores. Compreender que a cannabis sativa é uma planta medicinal já é uma grande evolução. Agora, quem é o maluco que vai dizer que a heroína transformou Billie Holiday numa cantora pior. Odeio a mentira fácil, a gente sabe que as drogas tiveram um papel essencial na evolução mundial de todas as modalidades artísticas.

William Eloi: Você morou 12 anos na Itália, teve algumas peças encenadas lá. Como foi essa sua experiência?

D.B. Frattini: Fui estudar. Fiz uma especialização na Toscana, na Universidade de Siena, com Mestre Antonio Tabucchi, grande conhecedor de Literatura Portuguesa. Depois fui para a Lombardia participar do Teatro Tascabile de Bergamo com a direção de Renzo Vescovi, lá conheci os princípios estruturais do trabalho do ator com máscaras e Commedia dell’arte. Foi uma ótima experiência de palco. Por outro lado, foi uma péssima experiência cotidiana: passei fome, frio e sede. Conheci o lado ruim da vida. Quase não dormia, vivia exausto. Aguentei alguns anos. Preciso encontrar um bom hipnotizador para regressar até esse tempo e redescobrir meus motivos e idealizações, costumo lavar da memória o sofrimento, e sei que exagero… virei um velho mimado.

William Eloi: Sua literatura apresenta sempre algo de subversivo, contestador, imoral – num sentido “Deus Pátria e Família” de ser. Mas, pra você, o que é imoral?

D.B. Frattini: Suas perguntas exigem respostas extensas, não dá para ser conciso. E um senhor assim ilibado, impoluto e pundonoroso como eu poderia se ofender com a questão… Sei que minhas personagens não trafegam por um maniqueísmo ligeiro, não julgo, não estou interessado em chapadões e planaltos, o que vale é o abismo e a coragem de despencar. Mas não acredito em devassidão, libertinagem e indecência moral pontual, o ser é metamorfoseado pelo contexto para sobreviver aos atropelos da miséria obrigatória imposta pelo poder. Procuro construir cenários interessantes para tramas recheadas de conflitos internos e uso todos os recursos literários possíveis para ‘tocar’ o leitor e despertar alguma consciência crítica diante dos absurdos da existência. Pareço pretensioso, tudo bem… Depois de certa idade o artista começa a se despedir das trivialidades, o tempo adquire um peso enorme e já não podemos lidar com falsidades estéticas. Devo pedir perdão para o leitor? Talvez?

William Eloi: Seu livro “Bofetada e Êxtase” é uma verdadeira pancada! Um soco no estômago! Ouvi relatos de gente que ficou mal ao término do livro. Confesso que não lia algo tão impactante desde “Diário de um ladrão”, de Jean-Genet. O que você nos diz sobre isso?

D.B. Frattini: Jean-Genet era filho de uma prostituta, um verdadeiro ‘filho da puta’ e tinha todo o direito de distribuir bofetões, um artista icônico da maior importância para a Literatura Moderna. Meus contos reunidos em “Bofetada e Êxtase” não valem nada perto de um capítulo de qualquer livro de Jean-Genet. Tento. Mas, nunca tive a intenção de provocar ressacas literárias, fujo de polêmicas. Sou doce, tenho o paladar infantil, gosto de pensar em “Bofetada e Êxtase” como uma festinha familiar, um natal com um peru enorme exposto para ser esfaqueado e digerido até os ossos.

William Eloi: Sua relação com Hilda Hilst? Casa do Sol?

D.B. Frattini: Quando digo que embelezamos nossas memórias não estou mentindo: guardo Hilda Hilst dentro do meu coração; foi muito importante na minha formação, no meu entendimento da necessidade do drama para expor as falhas na conduta das personagens; e não era nada fácil conviver com ela. Trabalhamos juntos na Unicamp: eu com Treinamento de Atores com Máscaras e ela com Literatura, lá no Departamento de Artes. Lembro que estava escrevendo “Os Filhos de Ema”, encomenda do Grupo Lume de Luís Otávio Burnier, e mostrei o texto inicial para Hilda que me devolveu o calhamaço todo riscado e com algumas páginas arrancadas. “É uma bosta!” foi a coisa mais suave que falou. Reescrevi a peça em dois atos inspirada em uma lenda do Folclore Sergipano recolhida por Câmara Cascudo com a orientação de Hilda Hilst. Reaprendi a escrever com ela. Tenho essa dívida de gratidão que procuro pagar desfiando meu terço para que sua alma esteja bem guardada na Páscoa eterna de Nosso Senhor Jesus Cristo, coisa que a faria tossir de tanto gargalhar.

William Eloi: Mesmo no auge de um Brasil que mostrou sua cara, produzir um tipo de literatura tão provocativa como a sua, com avanços de extrema direita, não o assustava, não o assusta em nenhum momento?

D.B. Frattini: Susto é um negócio muito sério para gente longeva, os ataques cardíacos acontecem com muita facilidade. A ditadura, o Plano Collor, o Sarney, o Temer, nada disso me matou e foi um susto atrás do outro. Depois do Bozo penso que ganhamos uma armadura completa contra políticos psicóticos incendiários. Não sei até que ponto o Brasil mostrou sua cara, o Brasil é imenso e as máscaras são infinitas. Escrever num país tomado por analfabetos úteis não pode assustar. É uma obrigação íntima para qualquer artista das letras. O trabalho de um escritor é precioso por aqui. O fato de não desenvolver uma literatura ‘normativa’ não importa. Precisamos formar leitores.

William Eloi: Você está com um livro novo aí. O que se pode esperar dele? Outro BOFETADA e ÊXTASE? Conte-nos um pouco sobre ele.

D.B. Frattini: Não. Cada livro carrega sua personalidade própria. Meu novo trabalho é um romance curto (exigência do mercado, ninguém lê romances com mais de trezentas páginas… foi o que me disseram). Meu novo romance é um contão. Quando digo que existe uma grande diferença entre “Bofetada e Êxtase” e o novo trabalho estou me iludindo (sei da mão que me mata), meus diálogos, meus monólogos interiores, minha ironia, meu pensamento pouco normativo, minhas indagações cruéis estão em tudo que escrevo. Quem leu “Bofetada e Êxtase” logo na primeira página do novo livro vai reconhecer o escritor. É um livro menos caótico, é verdade: no romance o desenvolvimento dos conflitos é menos imediato e o texto exige maior plasticidade. É a história de um homem singular, não é apenas um novo tarado (e é… não dá para não ser).

William Eloi: E o mercado independente brasileiro? O que falta ao povo brasileiro valorizar o que é produzido aqui e o gosto pela leitura?

D.B. Frattini: Longa história, hein? O escritor brasileiro é naturalmente independente, não existe um Mercado Editorial para escritores brasileiros. Estamos sempre misturados com traduções de bestsellers estrangeiros, a literatura estrangeira é a especialidade de todas as grandes casas editoriais do Brasil inclusive pela facilidade imposta pela nossa colonização cultural, não posso sequer dizer que existem alguns casos que fogem dessa regra, o escritor brasileiro que vende livros e é bem-aventurado atualmente é aquele que se molda e imita o estabelecido pelo mercado de bestsellers gringos. O trabalho será sempre hercúleo para devolver o Mercado Editorial Brasileiro para seus verdadeiros donos: os escritores do Brasil. Precisamos de novas leis, de novas regras que igualem a questão dos impostos, a competição é muito injusta.

William Eloi: Acho que Alfredo Bosi fala um pouco sobre isso em seu livro “Dialética da Colonização”. E como se já não fosse pouco, há a questão também das redes sociais, que faz com que num país de maioria analfabeta, quase não se busque a leitura

D.B. Frattini: O crítico já observava alguns aspectos da nossa “falha” estrutural no campo literário lá no começo dos anos 1990, não conseguimos realizar uma Literatura Brasileira de verdade e os motivos são óbvios além daqueles que envolvem a elite extremamente interessada na ignorância dos menos afortunados. O Brasil sempre esteve nas mãos de autoridades pouco interessadas em “intelectualizar” o cidadão e despertar consciência crítica na população oprimida pelo produto cultural estrangeiro: tenho a impressão que o maior sonho do brasileiro de classe média sempre foi o de um dia ser americano do norte. Ao contrário do que se pensa, a Internet e suas redes sociais mais ajudam do que atrapalham: com a vulgarização da informação criamos uma espécie de correnteza ao contrário; quem nunca teve voz ativa consegue ser ouvido; existe mais lixo do que ouro, é verdade; mas aconteceu, depois de um século de achatamento, alguma democratização na comunicação de massa. A única saída está na EDUCAÇÃO reformada e direcionada para aqueles que realmente necessitam: o brasileiro precisa aprender tudo; precisa aprender inclusive que é brasileiro. Jamais conseguiremos alavancar uma Literatura Brasileira sem o leitor entender que é brasileiro e que existem escritores brasileiros. Somos mais de 214 milhões de brasileiros, o artista nacional que consegue vender 30 mil exemplares de seu livro vira uma grande estrela apagada pelo nada. Já andei dizendo que sou otimista, o problema é a idade: com um pouco mais de experiência e no meio de oportunistas a gente sempre espera o pior.

William Eloi: Para terminar, sala de aula ou escrever livros?

D.B. Frattini: As salas de aula foram generosas comigo e ficaram para trás. Não tenho mais saúde para falar durante o tempo necessário e fiquei pouco paciente. Sou ranzinza e agora é crime usar de violência física para ensinar a boa educação. Nunca fui um professor vocacionado, ainda mais dentro do meu métier: os fundamentos estruturais da composição artística; orientar artistas é um inferno; orientar aquele que precisa de desorientação é uma experiência que cola o caos na vida de um mestre. Escrever me parece mais justificável: o instrumento é interno; a loucura é material de trabalho; e a solidão é uma benção.

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