Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e da Universidade Federal de Sergipe (UFS) recebeu, nesta terça-feira, 20, do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi), a carta-patente de uma tecnologia inovadora que envolve conhecimentos da área de ciências dos materiais e aplicação para a saúde. Trata-se de um filme cujo objetivo é que seja usado como uma membrana de barreira para auxiliar a regeneração óssea em casos de lesões ou doenças relacionadas à perda de massa óssea.
Esse filme atua como uma membrana de barreira, a fim de garantir um espaço protegido que permita que ocorra a regeneração óssea guiada, impedindo a invasão de fibroblastos – cuja presença dificultaria o “guiar” da recuperação – e podendo, também, fornecer estabilidade para enxertos ósseos. O depósito do pedido de patente aconteceu em 2018, época na qual Katharina Gabriela Spaniol terminava seu mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências e Engenharia de Materiais (PpgCEM) – é de sua dissertação que surge a invenção.
Ela relembra que, em um primeiro momento, ocorreu a tentativa de produzir um dispositivo composto apenas de material cerâmico, contudo os resultados obtidos não foram interessantes. “Então, durante a minha qualificação do mestrado, o professor Euler Araújo dos Santos, da Universidade do Sergipe, sugeriu usar o material antes do tratamento térmico, onde o polímero é degradado, e foi nesse período que formamos uma parceria entre o nosso laboratório no PPGCEM da UFRN e o laboratório do professor Euler na UFS. Esse foi o momento da virada da pesquisa”, descreve Gabriela Spaniol.
A pesquisadora detalha que o filme é composto por uma mistura entre um material cerâmico, o fosfato tricalcico (TCP), e um polímero, o poli (álcool vinílico). Gabriela explica que o TCP é biocompatível e pode ser absorvido pelo corpo, atuando como uma estrutura para o crescimento ósseo. “Contudo, é insuficiente em relação à resistência mecânica. Para superar essa deficiência, usamos o PVA, que é uma matéria-prima importante para a produção de filmes e que, também, poderia ser usada como membrana de barreira, pois é biodegradável e não toxica”, pontua.
Orientador da pesquisa e, também, um dos inventores envolvidos, Wilson Acchar complementa falando que a ideia é que o material seja metabolizado pelo corpo à medida que a regeneração óssea ocorra, de forma que o polímero sirva como estrutura; e a cerâmica, como matéria-prima para as células responsáveis pela osteogênese. Com uma vasta experiência em desenvolver produtos patenteáveis, o professor do Departamento de Física Teórica e Experimental realça que o método usado para a produção do material, o Tape Casting, é uma tecnologia usada amplamente no Laboratório de Propriedades Físicas e Materiais Cerâmicos (LaPFiMC).
“Esse método nos trouxe muitas vantagens e facilidades para o desenvolvimento dessa pesquisa e de outras que resultaram em produtos parecidos, pois permite a produção de fitas finas e homogêneas, tem baixo custo e, ainda, há possibilidade de ser usado para produção em larga escala”, afirma Acchar. A fabricação de fitas cerâmicas está situada em uma linha de trabalho voltada ao desenvolvimento de materiais com propriedades elétricas e magnéticas para aplicação eletroeletrônica, e outra concentrada nos biomateriais, utilizados em dispositivos médicos, como enxertos ósseos, curativos e implantes, para interação com os sistemas biológicos. Um dos produtos também em desenvolvimento concerne às fitas com argilas para a liberação controlada de fármacos na pele.
Gabriela contextualiza, ainda, explicando que procedimentos de reparo ósseo apresentam muitos desafios devido à baixa taxa de cicatrização, mesmo em casos de intervenção cirúrgica, o que gera um impacto negativo na qualidade de vida do paciente e custos médicos. “A nossa tecnologia apresenta-se assim como uma ferramenta no auxílio da recuperação do paciente em casos de intervenção cirúrgica”, frisa.
Além de Gabriela e Acchar, integram o grupo de inventores Anna Karla de Carvalho Freitas, Ana Paula da Silva Peres, Silmara Caldas Santos e Euler Araújo dos Santos. Em resumo, Gabriela, Acchar, Ana Paula e Anna Karla participaram do processo de idealização e desenvolvimento do material no LaPFiMC, enquanto Euler dos Santos e Silmara Caldas atuaram nos ensaios de bioatividade e biocompatibilidade do material. O grupo destaca que há um protótipo desenvolvido e usado nos testes de bioatividade in vitro. “A gente estudou se há formação óssea, e na avaliação da citotoxicidade, onde estudamos se o material é biocompatível. Os resultados foram animadores”, explica Gabriela Spaniol.
Uma trajetória multidisciplinar e geográfica
“Eu morei no RN desde que eu tinha 11 anos. Sou de São Paulo, mas me criei no RN. Hoje, estou na Austrália, com algumas horas de fuso”. Assim, a pesquisadora, que carrega o singular sobrenome Spaniol e apresenta nos áudios da entrevista um misto de sotaque paulista com nordestino, procurou descrever parte da trajetória. “É muito importante falar que esse projeto que deu origem à carta-patente é inspirado no meu tempo, no Japão, quando eu atuei lá no programa Ciências sem Fronteiras e trabalhei em um laboratório que fazia materiais compósitos para implantes ósseos”, acrescenta.
Mas, como “o bom filho à casa torna”, Gabriela voltou para terminar o mestrado. O ano era 2017 para 2018; as lembranças já não vêm em ordem cronológica, mas ajudam a mostrar que foi um longo caminho até aqui. “Quando eu vim para a Austrália, eu consegui uma oportunidade como auxiliar de pesquisa em uma das melhores universidades do mundo, a University of New South Wales, que estava entre as 50 do mundo. Foi um momento ímpar, pois tive a oportunidade de conviver com um professor que foi inspiração para mim no mestrado, pois eu lia muitos artigos e estudos dele para me inspirar”, descreve a, hoje, doutoranda na Griffith University.
“Daí eu ganhei uma bolsa de estudos em outra universidade para iniciar o doutorado, onde estou agora. Esse meu trabalho me rendeu muitos frutos, muito conhecimento, pois esse professor é uma referência nessa área de implantes ósseos. E essa bolsa eu consegui muito em virtude do trabalho iniciado lá no Japão, no Ciência Sem Fronteiras, que depois, é bom frisar, eu continuei na UFRN. Nos passos seguintes, publiquei o artigo e a patente, que possibilitaram conseguir concorrer, de forma mais competitiva, para a bolsa de estudos que tenho hoje. Eu fui agraciada com ela em 2019, mas fui passar as férias no Brasil, e a pandemia chegou. Resultado: fronteiras fechadas, e acabei retornando no final de 2021”. Entre idas e vindas, a presença da pesquisadora acaba sendo sentida ainda no Brasil pelos rastros que deixou. A patente recebida é um deles.
Fonte: Agecom/UFRN