Não faz muito tempo que o mundo foi surpreendido com o caos instaurado pela pandemia da covid-19. O ano era 2020, os trabalhos presenciais suspensos, os números de mortes crescendo e o pressentimento de que tudo ainda demoraria bastante a melhorar. Cada um procurando equilibrar sua vida comum atravessada pelo medo. Em dezembro, época do Natal, a sensação de que a esperança bate à porta é sempre mais forte. Foi na expectativa de que este fosse seu presente natalino, pelo ano particularmente difícil, que Aline Ghilardi, professora do Laboratório de Paleontologia ligado ao Departamento de Geologia (GEO) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), recebeu a notícia sobre a publicação de um artigo científico internacional, no periódico Cretaceous Research, sobre o primeiro dinossauro não-aviano (que não pertence ao grupo das aves) com penas preservado no hemisfério sul do planeta. Ele era brasileiro. Seu nome: Ubirajara jubatus.
A felicidade inicial, no entanto, não teve chance de durar. O aparente sonho se transformou rapidamente em desencanto. O artigo havia sido publicado apenas por estrangeiros e todos os indicativos mostravam que o fóssil estudado havia sido adquirido de maneira no mínimo suspeita. “A seção de materiais e métodos de um artigo científico de paleontologia geralmente consta quando e onde o fóssil foi coletado. Nesse artigo constava que o fóssil foi retirado do Brasil em 1995 e levado para a Alemanha, onde havia permanecido desde então. Isto desafiava parte da legislação sobre fósseis do Brasil”, explica Aline.
A primeira lei brasileira que versa sobre a proteção de fósseis é de 1942. Trata-se de um decreto-lei que determina que os fósseis são propriedade da Nação e que para haver sua extração, é necessária autorização do Departamento Nacional de Produção Mineral, atual Agência Nacional de Mineração (ANM). O conteúdo deste decreto-lei foi atualizado e adicionado à constituição de 1988, que vai além e também considera sítios fossilíferos como patrimônio cultural da União. Aline acrescenta que em 1990 foi publicada uma portaria de regulamentação do Ministério da Ciência e Tecnologia do Brasil (atual Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações ou MCTI) sobre a forma como pesquisadores estrangeiros deveriam coletar e estudar qualquer tipo de material biológico ou paleontológico do país.
“Nessa portaria diz-se que qualquer material holótipo – ou seja, aqueles utilizados para descrever novas espécies – deve obrigatoriamente voltar ao Brasil. Além disso, a portaria diz que não basta uma autorização da agência competente específica de cada área, você precisaria de uma autorização adicional do Ministério da Ciência e Tecnologia para poder coletar, pesquisar e exportar espécimes biológicos ou fósseis brasileiros”, complementa.
O fato de este fóssil estar fora de seu lugar de origem já indicaria um desacordo com a legislação existente anterior a sua saída. No entanto, outro fator também importante demonstrou um problema mais profundo: a falta de autores brasileiros ou de colaboração com as instituições nacionais, também exigidas pela mesma portaria do MCTI. Estes aspectos combinados fizeram com que a indignação da pesquisadora ganhasse espaço por meio da internet e, rapidamente, reunisse milhares de outras vozes. “A primeira coisa que uma pessoa muito chateada no meio de uma pandemia faz é reclamar no Twitter. Então a primeira coisa que eu fiz foi utilizar minhas redes sociais, nas quais eu já tenho costume de divulgar a ciência, para construir um fio de informações explicando porque a descoberta era tão fantástica e tão frustrante ao mesmo tempo”, comenta a paleontóloga.
#UbirajaraBelongstoBR
Aline lançou, então, uma hashtag de protesto que ganharia o mundo: #UbirajaraBelongstoBR (Ubirajara pertence ao Brasil) e promoveria um grande e súbito interesse pelo assunto. Um dos acontecimentos responsáveis por contribuir na massificação do tema foi, entre outras coisas, a solicitação feita a Paulo Nascimento, o Pirula, pesquisador e youtuber brasileiro, para comentar sobre o caso em seu canal. Após uma de suas lives, com a participação da professora Aline, este assunto explodiu nas redes e os problemas do tráfico de fósseis começaram a ser discutidos não apenas por pesquisadores, mas também pelo público não especializado. O movimento iniciou também um debate sobre “colonialismo na ciência”, já que questionava os motivos que fazem com que pesquisadores europeus e americanos, se sintam à vontade para agir de maneira ilícita quando se trata da apropriação de conhecimento e materiais de países do sul global.
Assim, iniciou-se a saga de retorno de Ubirajara jubatus para o Brasil. O dinossauro estava na Alemanha, no Museu de História Natural de Karlsruhe, depois de mais de 25 anos em uma prateleira sem ser descrito. Foi apresentado ao mundo em 2020, mas trazê-lo de volta ainda envolveria uma longa jornada. Com o amplo alcance da hashtag, Aline Ghilardi logo se juntou a outros colegas da área para que juntos pudessem alcançar ainda mais impacto na tentativa de exercer alguma mudança significativa nesta temática. “As ações não poderiam acontecer apenas em redes sociais, elas deveriam ocorrer também em outras frentes. Em paralelo, muitos colegas tomaram ações independentes, como escrever para o periódico que publicou o artigo, explicando a problemática. Outros tentaram contato diretamente com o museu onde ele (o fóssil) estava. A própria Sociedade Brasileira de Paleontologia emitiu uma carta ao Museu”, comenta Aline sobre as articulações conjuntas.
Uma das vitórias iniciais foi a remoção temporária do artigo, que segundo Aline, é algo muito raro de acontecer. Foi um fruto das ações conjuntas. Com essa resposta, as movimentações pelas redes e em outras frentes ganharam ainda mais intensidade e, de acordo com a professora, “algumas tratativas mais sérias tiveram começo”. Na metade de 2021, o Museu de Karlsruhe, finalmente, responde a carta da Sociedade Brasileira de Paleontologia, que pedia a repatriação do fóssil, dizendo que, segundo as leis alemãs, o fóssil pertencia ao estado de Baden-Württemberg, onde ele estava localizado. Portanto, não haveria devolução de Ubirajara ao Brasil.
Se as redes sociais já haviam tido uma participação importante nessa batalha, foi nesse momento que os brasileiros provaram seu engajamento. Com a negativa, a Sociedade Brasileira de Paleontologia liberou, para conhecimento público, a situação e a resposta alema que foi publicada também no perfil do Instagram da própria instituição estrangeira. Aline compartilhou a resposta do museu em suas redes, o que atraiu a atenção dos protestos. Apenas na publicação em que se posicionavam sobre a não devolução de Ubirajara, mais de 12 mil comentários de brasileiros descontentes lotaram o instagram do Museu.
Para Aline, ficava cada vez mais evidente que apenas falar do problema não seria solução, era necessário transformar toda a indignação em dados. Então, uma frente de trabalho com outros colegas de profissão foi formada para discutir e entender todo o processo de saída dos fósseis do Brasil e o quanto o país perdia com isso. “Um dos primeiros trabalhos que a gente publicou foi uma carta na revista Nature, Ecology and Evolution. Convidamos um advogado alemão para ajudar a entender a legalidade do posicionamento do museu e destrinchar se fazia sentido aquele comunicado. Chegamos à conclusão de que não, porque o direito não se pauta apenas na interpretação crua das leis, mas há também uma discussão e interpretação ética a ser feita. Publicamos essa correspondência e mostramos onde eles falhavam e também como se aproveitavam de brechas legais de nossa legislação para conseguir remover os fósseis daqui”, acrescenta.
Repatriação
Outra parceria aconteceu com colegas do México que vivenciaram no início de 2021 uma situação parecida com a brasileira e envolvendo alguns dos mesmos autores do estudo de Ubirajra. “Com base nisso, decidimos unir esforços para analisar os últimos 30 anos de publicações sobre fósseis das regiões mais visadas pelo tráfico de bens paleontológicos nos dois países. Esse trabalho foi publicado no início de 2022. Para o Brasil, descobrimos que quase 90% dos fósseis de novas espécies da região do Araripe estavam em museus estrangeiros. E poucos trabalhos mencionam como o fóssil foi coletado, ou autorização de coleta”, ressalta Aline.
O levantamento de todos estes dados serviu para que concretamente eles pudessem ser apresentados às autoridades brasileiras e também da região do estado de Baden-Württemberg. Com isso, uma investigação foi iniciada na Alemanha. O fruto desta investigação culminou no reconhecimento da má conduta e do comportamento antiético dos pesquisadores envolvidos. Com isso, finalmente, foi determinada a repatriação do dinossauro em julho de 2022.
Para Aline, é necessário que tais comportamentos sejam cada vez mais combatidos, “atitudes colonialistas influenciam a nossa ciência e tornam ela uma ciência pior e os resultados enviesados”. A pesquisadora fala ainda da força das redes sociais e de como elas fizeram diferença nessa batalha, em conjunto com todas as outras medidas, de divulgação e produção científica. “Essa não é uma vitória solitária, teve a colaboração de muita gente, de outros colegas paleontólogos, tanto brasileiros e estrangeiros, de divulgadores, de influencers e de pessoas do público geral. O público geral, especialmente, teve um papel muito importante nesse retorno, com os protestos”, finaliza.
A volta de Ubirajara
Depois de toda a luta que começou com a hashtag incômoda de Aline Ghilardi e depois cresceu envolvendo cientistas de diversos países, autoridades, imprensa e sociedade civil, finalmente o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) recebeu, no último dia 4 de junho, o fóssil do dinossauro Ubirajara jubatus. O material fossilífero foi analisado no dia seguinte por representantes do Brasil e Alemanha e apresentado oficialmente nesta segunda-feira, 12 de junho. A solenidade realizada pelo MCTI foi restrita a autoridades e pouquíssimos convidados, entre os quais Aline, representante da UFRN e do público que voltou a ocupar as redes sociais em comemoração.
Um esforço conjunto do Centro de Ciências Exatas e da Terra (CCET), do Departamento de Geologia, da Agência de Comunicação da UFRN e da Reitoria da UFRN possibilitou que a cientista estivesse na cerimônia para o registro histórico. “Recebi o convite para participar da cerimônia como convidada especial. Apenas autoridades, representantes de algumas instituições, pessoas diretamente envolvidas no processo de repatriação e jornalistas foram autorizados a participar da cerimônia. A UFRN me forneceu um espaço para desenvolver minhas pesquisas não apenas sobre fósseis, mas também sobre os impactos do colonialismo na ciência. Agora estamos colhendo os frutos. Ela me ofereceu também apoio para ver de perto um dos grandes resultados do meu trabalho desenvolvido aqui, e tudo isso vai ficar para a história, não só da Paleontologia, mas da Ciência do Brasil. Espero poder continuar contando com o suporte da instituição e assim, poder levar – com orgulho – o nome da UFRN para mais conquistas tão importantes como essa”, disse Aline.
Cientistas do Brasil e do mundo acompanharam a repatriação de Ubirajara pelas redes, parte deles pelos perfis de Aline que alcançaram milhares de visualizações. Nem se quisesse ela poderia esconder a cara de felicidade. “É muito emocionante ver que algo no qual você tanto se empenhou deu resultado. Faz a gente se sentir muito estimulado a continuar lutando. Mudanças são possíveis e eu acredito fortemente que a divulgação científica é um caminho fundamental para conquistarmos o apoio do público em nossas batalhas dentro da Ciência e das instituições. Esta luta, em específico, ensina muito sobre como o público deseja participar e se engajar com o que fazemos. Foi uma conquista da união entre pesquisadores e o público. A sociedade civil que se mobilizou. É uma conquista nossa. Espero que essa conquista inspire jovens cientistas a se engajarem em batalhas para tornar a nossa ciência melhor, mais inclusiva, justa e ética”, comenta.
Mas a luta continua. Segundo Aline Ghilardi, já existe um engajamento para novas repatriações, mas, por hora, os pesquisadores contam com a boa vontade das instituições estrangeiras, já que elas sabem do que os cientistas brasileiros são capazes. “Estamos dando a elas um voto de boa fé, mas se for necessário, vamos ativar as redes sociais novamente. Vimos que isso surte efeito”, alertou a pesquisadora que aproveitou sua estada em Brasília para fazer campanha. “Tive a oportunidade de conversar com Ricardo Galvão, atual presidente do CNPq, antes da cerimônia. Ele me parabenizou pessoalmente pela atuação na luta pela repatriação e aproveitei para pedir que ele considerasse com atenção a possibilidade de um novo edital para o fortalecimento da paleontologia nacional, o que ajudaria muito a coibir que mais fósseis continuassem saindo do Brasil”, completou.
Já com a ministra Luciana Santos (MCTI), além de receber os cumprimentos pessoalmente pela luta, a pesquisadora aproveitou para pedir apoio na repatriação de mais fósseis que se encontram no estrangeiro. “Fósseis esses, que listamos cuidadosamente no trabalho publicado em 2022. Expliquei que o apoio do MCTI seria fundamental para que isso ocorresse sem a necessidade do desgaste envolvido em protestos pelas redes sociais. Pedi particularmente apoio para a repatriação do fóssil de Irritator challengeri, e ela demonstrou disposição do MCTI em ajudar”, comemorou Ghilardi.
Mas afinal, quem foi Ubirajara?
Ubirajara jubatus é uma espécie que viveu na Bacia do Araripe, no Ceará, durante o período Cretáceo, provavelmente há mais de 110 milhões de anos. A primeira parte de seu nome tem origem indígena tupi e significa “senhor da lança”, já a segunda vem do latim e seu significado é “com juba”. Ambas se referem às características físicas e singulares do dinossauro que possuía uma estrutura filamentosa semelhante a penas e espinhos, fazendo referência à ideia de lanças entre seu pescoço e ombros, e as penas em suas costas que causavam a formação de algo parecido com uma juba ao seu redor.
Da família Compsognathidae, Ubirajara era um terópode (subordem de dinossauros bípedes) parecido com Compsognathus e Sinosauropteryx. Eram dinossauros de porte pequeno, que chegavam a aproximadamente meio metro de altura e não passavam de um metro e meio de comprimento. Devido suas patas traseiras serem longas, propícias para correr, acredita-se que era uma espécie com agilidade para caça e vivia em pequenos bandos.
O fóssil, que comprova a existência deste animal, é composto por partes do esqueleto, com exceção do crânio, pernas e a ponta da cauda, que foi preservado em uma formação rochosa típica da região do Araripe. O esqueleto inclui nove vértebras cervicais, treze vértebras dorsais, duas vértebras sacrais, a cintura escapular, uma costela cervical, sete costelas dorsais, quinze costelas abdominais e o braço esquerdo quase completo. Além dos ossos, o fóssil também revela vestígios de penas, pele, estruturas granuladas no tronco e as coberturas de queratina que envolvem as garras das mãos. É importante ressaltar que o esqueleto está parcialmente articulado, o que significa que algumas partes estão conectadas entre si. Os paleontólogos acreditam que esse fóssil represente um indivíduo jovem e, possivelmente, do sexo masculino.
Fonte: Agecom/UFRN