Quase 94% dos casos de sífilis congênita registrados no Brasil são notificações baseadas na dúvida, ou seja, sem olhar para dados qualificados, uma prática que tem ocorrido, habitualmente, em todo o país. Além de mascarar a realidade do cenário epidemiológico no contexto da saúde pública, esse problema nas notificações pode causar prejuízos financeiros ao Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil, uma vez que não se exige a investigação das ocorrências – o Brasil notifica situações suspeitas ou de crianças expostas como ocorrência de sífilis congênita, ou seja, sem sua devida confirmação. Esse aspecto impede que as autoridades de saúde pública possam conhecer o real tamanho do problema ou o correto cenário epidemiológico do país, principalmente em relação à sífilis congênita.
O alerta é do relatório Notificação de Sífilis Congênita no Brasil: um alerta para falta de investigação dos casos, de autoria de 35 pesquisadores, de várias regiões do país, vinculados ao Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde (LAIS/UFRN). O documento é mais um produto do Projeto Sífilis Não, uma parceria entre o LAIS/UFRN, o Ministério da Saúde do Brasil e a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), iniciativa que ganhou destaque nacional e internacional devido a sua relevância e também pelas suas publicações científicas, entre elas um artigo na Revista The Lancet no ano de 2022.
De acordo com a análise dos dados feita pelos pesquisadores, o equívoco que vem sendo praticado no Brasil diz respeito às orientações inseridas no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT). Segundo esse documento, o profissional deve, em uma situação de dúvida, notificar casos de sífilis congênita sem que as investigações tenham sido feitas. Na prática, o Brasil os está registrando sem analisá-los adequadamente, como ocorre em outros países do mundo. É como se um médico que ainda não tem certeza sobre o diagnóstico resolvesse informar ao paciente de uma doença que ele pode não ter, por exemplo, a aids.
Além disso, a Portaria nº 3.276, de 26 de dezembro de 2013, que regulamenta a política de incentivo financeiro de custeio às ações de vigilância, não exige investigação dos casos com relação à sífilis congênita para fins de repasses de recursos anuais do Sistema Único de Saúde (SUS). Para a transferência dos valores, basta a notificação, o que impacta negativamente a política nacional de gestão e controle da sífilis, visto que o Brasil está financiando o registro de supostas doenças, isto é, de casos suspeitos, quando deveria financiar o cuidado integral. Assim, precisaria haver investigação adequada para se registrar uma nova ocorrência. Os pesquisadores do LAIS apontam que o PCDT deveria ter a seguinte recomendação: se houver dúvida, trate. Somente notifique depois de investigar adequadamente o caso. No entanto, o documento atualmente indica: quando houver suspeita, sinalize. De acordo com os achados apresentados no relatório, o Brasil atualmente informa ocorrências de sífilis congênita com base na incerteza, o que não parece adequado. Assim sendo, a Portaria Nº 3.276, de 26 de dezembro de 2013 deveria ser revisada para condicionar os repasses financeiros à investigação de sífilis congênita e não à simples notificação, que são, quase que em sua totalidade, baseadas na suspeita.
Para os autores do relatório, os dados analisados chamaram a atenção pelo alto número de crianças registradas no período de 2015 a 2021: mais de 139.000 casos, porém, quase a totalidade sem a devida investigação. “O que mais se destaca é que somente 3,3% das crianças, do total de registros válidos para análise, tinham a titulação adequada para a notificação, ou seja, o aviso não ocorreu pela incerteza, mas por uma evidência concreta e objetiva”, argumentou o diretor executivo do LAIS/UFRN, Ricardo Valentim, um dos autores do relatório.
Isso pode ser um grande problema para o Sistema Único de Saúde do Brasil, que usa essas advertências para orientar os repasses de recursos, para a compra de insumos, como testes e medicamentos, e para o pagamento de procedimentos médicos e hospitalares. Além disso, cria problemas para as famílias, que ficam estigmatizadas e muitas vezes expostas a situações desnecessárias.
Em caso de dúvida, trate e investigue. Sinalize como sífilis congênita somente depois de confirmar a existência da infecção. Se não for confirmada, descarte a ocorrência. Esse fluxo não acontece no Brasil.
O documento Notificação de sífilis congênita no Brasil: um alerta para a falta de investigação dos casos está disponível para acesso do público em geral. Ele foi encaminhado ao Ministério da Saúde (MS) e às secretarias estaduais e municipais de saúde por meio do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). O documento também foi enviado aos ministérios públicos que acompanham e monitoram as questões relacionadas à sífilis no Brasil, além do Tribunal de Contas da União (TCU).
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Fonte: LAIS/UFRN