No fim da madrugada

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Em frente ao espelho ela se olhou pela última vez: Soltou os cabelos, cheirou. Cheirou por baixo das axilas. Voltou. Rímel, batom. Olhou novamente. Não. Não havia esquecido nada. Passou próximo ao balcão e trouxe a cerveja. Ele, lá na mesa ao canto, já olhava para ela sorrindo. Cigarro entre os dedos. Um coroa como dizem, porém, charmoso, era o que ela achava. Renato tinha por volta dos seus cinquenta anos – faria cinquenta e um amanhã!- cabelos grisalhos, voz mansa. A pele não era tão marcada nem tão enrugada. Na verdade, Silvinha queria muito saber o que oferecia aquela pele, quais eram seus mistérios, aquelas unhas amareladas nas pontas, aqueles dedos que cheiravam a nicotina. Silvinha colocou a cerveja na mesa e a abriu. Abasteceu os dois copos. O que era ela para Renato, além da garota do bar em que ele frequentava toda sexta-feira à noite, e se estendia até o fim da madrugada? Pensava.

Preciso trepar, dizia ela sem rodeios, olhando em direção a ele,com a mão no queixo e um cigarro também aceso entre o indicador e o médio.

Ele apenas sorria, depois de um gole de cerveja. Respondeu: Há tantos garotos nessa cidade, você é jovem. Vinte e quatro? Não vejo nenhum impedimento. Por favor, só não tenha mais filhos.

Você falando assim parece o meu pai! E você também tem filhos!

Mas é diferente. E eu tenho idade de ser seu pai, respondia Renato, sorrindo

Mas não é, sacou?

Tudo bem, não sou. Quando você tiver cinquenta anos, quero ver se você vai viver nesse fogo todo.

Para de dizer besteira, Renato! Você falando assim parece até que já morreu! Conheço muito coroa, gente muito mais velha do que você que ainda tá aí, todo animado!

Deu uma pausa. Um trago. Soltou fumaça, então respondeu:

Pois é, talvez porque eu não seja como muito coroa por aí. Do mesmo jeito que nunca fui como muito jovem por aí.

Ah, você tá muito chato hoje!

Já se matriculou?

Não, mas vou fazer! Já falei a você

Faça, não quero ver você mais limpando o balcão desse bar daqui a um tempo

E se não for nesse bar, onde que a gente vai se ver?

Ficou suspenso por alguns segundos.

Não sei, mas eu vou ver você de onde eu estiver.

Nossa, que homem romântico!

Me dá licença, preciso ir ao banheiro

Deixa eu ver, não tem ninguém nesse bar. Já é tarde.

Não, sou louca! Respondeu sorrindo. Traga outra cerveja!

Mais do que as marcas na pele de Renato, havia em sua alma. Ele conversava muito sobre sua vida com ela. Aquilo começou aos poucos. Toda sexta-feira. Era o último cliente a sair. Até que uma vez, embriagado, pediu desculpas a ela, porque sabia que de alguma forma, sua demora ali, a impedia de ir pra casa, descansar. Perguntou se ela bebia, explicou que não queria nada com ela, só sua companhia naquela mesa, e mesmo desconfiada, ela aceitou. Sabia como era os homens. Então ia beber às custas dele. E se ele tentasse algo mais, ela cairia fora. Com o tempo, ela percebeu que era apenas companhia mesmo o que Renato queria. Bebia até sair dali embriagado. E com o tempo, aquela educação, aquela gentileza, aquela preocupação, sensibilidade — coisas que nunca teve de um homem em sua vida — fez com que se apegasse a ele. Além do que, lógico, achava-o bonito.

Conversavam até os primeiros raios da manhã, quando um se apoiava ao outro para se levantar – Renato mais que Silvinha, porque ela era mais resistente a bebidas – daí era quando Silvinha aproximava seu nariz ao pescoço dele cheirando a Mauá e ficava excitada. Levava-o até um Uber que ela pedia para que ele voltasse para suas filhas e esposa.

Em meio às investidas de Silvinha, Renato certa vez disse: “No dia em que tivermos alguma coisa, perderemos nossa amizade”. Lembrou de quando disse isso à primeira menina que namorou, quando tinha por volta de dezoito anos. O namoro durou um mês e então acabou. Renato terminou uma amizade e sofreu por uma paixão.

Mas eu sou diferente!

Claro, eu também sou. Todos somos. Mas em certas ações agimos iguais. Eu gosto de você, mas você é minha amiga!

Ah, vá se fuder Renato! Amiga de cu é rola!

Então Renato ria das tolices de Silvinha. Ela, na mesma hora, também ria das tolices de Renato. Cada um tentava ensinar ao outro suas visões opostas de mundo, que no fim, eram metade malícia e metade sensibilidade. Assim é o mundo. Assim, Renato e Silvinha aprendiam um com outro, toda sexta-feira. Renato chegaria numa casa confortável, para os braços da mulher, das duas filhas, que lhe prepararam um bom café da manhã. Tomaria um banho e dormiria. Ao acordar, depois de algumas horas, se botaria a ler e a escrever. Silvinha desceria de ônibus numa favela, iria até a casa da ex-sogra, levaria a filha mais nova nos braços, coberta com um pano, e quando abrisse a porta, encontraria a outra, ainda dormindo. Tomaria um banho demorado, um café. Lavaria louças, prepararia o almoço das duas crianças e dormiria. Quando acordasse, lembraria de Renato. Ficaria com os dedos no meio das pernas antes de se levantar. E gemidos leves, abafados, sairiam de sua boca, ainda cheirando a álcool e cigarros.

Porque suas coisas são assim, tão tristes e violentas? Disse Silvinha a Renato, ao folhear o livro que estava escrevendo Hora das Moscas

Você já olhou ao redor? Tem certeza que já deu uma boa olhada ao nosso redor? Respondeu Renato enquanto lançava fumaça no ar, naquela sexta- feira

Silvinha o encarou, pela primeira vez e com espanto. Não entendeu porquê, mas seus olhos se encheram d’água na mesma hora. Lembrou das filhas, cada uma de um pai, que nunca lhes deu atenção. Lembrou da própria condição. Foi a primeira vez que algo assim havia tocado a ela.

Os primeiros raios da manhã começaram a entrar no bar. Renato olhava admirado a paisagem. Não teve certeza, mas parecia ter visto os olhos de Renato também se encherem d’água. Ele então balbuciou:

No fim da madrugada, sempre vem a luz…

O quê? respondeu Silvinha

Peça meu Uber, por favor…

Ela o carregou até a porta, dessa vez foi pior do que as outras, quase tombando. Sentiu o cheiro de Mauá próximo ao pescoço. Não aguentou. Deu um beijo em sua boca, que ele devolveu. Ficaram os dois ali colados por alguns segundos. O Uber esperando. Ela sabia. A partir daquele momento, ela era qualquer coisa, menos sua amiga. Ele encarou-a por alguns segundos, despediu-se bêbado, mas com educação, como sempre fez. E entrou no Uber.

Depois daquela última vez, Silvinha o aguardou na outra sexta. Se arrumou toda. Em vão. Ele não veio. Assim foi na sexta seguinte. E na outra. Ele deve tá encabulado com que aconteceu…mas…eu…eu o amo! Ele tinha razão. A amizade havia acabado. Ela pegou o celular e ligou pra casa dele – coisa que nunca havia feito – Silvinha sabia que Renato ensinava, além de escrever livros, fingiu se passar por professora. Ia dizer a ele que estava estudando, e que voltasse a aparecer nas sextas, como sempre fazia. A filha mais velha dele atendeu. Explicou que Renato havia sido enterrado há semanas. Estava enfrentando um câncer e vivendo os últimos dias de sua vida.

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