Pesquisa sugere que dedicação às atividades domésticas de mulheres é subnotificada no Brasil

Em comparação com outros países latino-americanos, as mulheres brasileiras gastam substancialmente menos horas em serviços domésticos não remunerados. Pelo menos é o que diz a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), conduzida anualmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No entanto, pesquisadores da UFRN e da UFMG apresentam uma hipótese de que esse tipo de atividade pode ter sido subnotificada no Brasil. Para solucionar o problema, propuseram um método para ajustar os dados de uso do tempo da PNAD com base na relação entre horas destinadas a cuidados diretos não remunerados e cuidados indiretos em uma população de referência com dados mais detalhados.

Utilizando uma versão modificada do método demográfico de padronização indireta e dados internacionais para ajustar as estimativas da PNAD, os pesquisadores apontam que registraram um aumento de 60% (mulheres) e 35% (homens) no número de horas gastas em serviços não remunerados, dependendo da idade. O método proposto também altera os perfis etários, tornando-os mais condizentes com a literatura. Além disso, o trabalho indica que os dados ajustados sobre a utilização do tempo podem ajudar os pesquisadores a examinar mais detalhadamente as questões de gênero na economia do Brasil, ampliando as estimativas da contribuição de homens e mulheres de diferentes períodos para uma fração da economia invisível nas estatísticas oficiais.

Com o título Um método empírico para ajustar os dados de uso do tempo no Brasil, a pesquisa publicada na plataforma Scielo Brasil é assinada por Jordana Cristina de Jesus, do Programa de Pós-graduação em Demografia (PPgDem/UFRN), Cassio Maldonado Turra e Simone Wajnman, ambos do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Trabalho doméstico não remunerado da mulher pode ser 60% maior do que o estimado – Foto: EBC

Primeira autora, a demógrafa Jordana Cristina, explica que a sondagem da PNAD pergunta aos entrevistados qual é o número de horas dedicadas normalmente a essa ocupação, mas a qualidade da informação fornecida carrega imprecisões. “Ao responder esse tipo de pergunta, os entrevistados têm que passar por um ‘processo cognitivo’ e podem ter interpretações variadas da pergunta feita pelo entrevistador. Este tipo de levantamento depende também da memória do entrevistado, que responde o que seria uma estimativa do tempo dedicado aos afazeres domésticos ao longo da semana”, completa Jordana.

A partir da análise de várias fontes de dados, a investigação acredita ser possível confirmar que, embora a informação da PNAD tenha tido o objetivo de captar tanto as horas de atividades domésticas quanto as horas de cuidados (que a mulher dedica para tomar conta dos filhos ou de idosos), o levantamento parece refletir padrões sem a carga da segunda variável. Para a correção dos dados brasileiros, foi necessário estimar qual seria então essa carga de cuidados subdeclarada a partir do nível de horas de atividades domésticas já manifestadas. Pelo que foi observado, a pesquisa mostra que existem diferenças tanto em relação ao padrão (perfil ao longo do ciclo de vida) quanto em relação ao nível (quantidade de horas) de trabalho doméstico quando se compara o Brasil aos demais países.

Sobrecarga feminina

De acordo com Jordana Cristina, esses achados lançam ainda mais luz sobre aspectos socioculturais do trabalho reprodutivo e da sobrecarga feminina no trabalho doméstico não remunerado. “As evidências são de que, espontaneamente, as mulheres não declaram na sua carga de trabalho doméstico o tempo dedicado ao cuidado dos filhos ou idosos quando questionadas sobre suas jornadas semanais. Isso demonstra a naturalização, em nossa sociedade, principalmente da atividade de cuidado como um ‘trabalho de amor’. Essa naturalização contribui para que uma quantidade imensa de cuidados seja provida às famílias pelas próprias mulheres, sendo feita sem qualquer tipo de reconhecimento ou remuneração”, reforça Jordana.

Professora Jordana Cristina é primeira autora da pesquisa – Foto: Cícero Oliveira – Agecom/UFRN

A investigação mostra ainda que a possível subestimação do trabalho doméstico parece estar concentrada nas idades de 20 a 40 anos, justamente quando as mulheres estabelecem sua participação no mercado de trabalho, sendo foco de muitas análises sobre diferenciais de gênero. “Por exemplo, a carga de trabalho doméstico de uma mulher de 25 anos, em um domicílio com criança, deveria ser cerca de 50% maior do que o valor captado na pesquisa, se corrigido pelo nosso método. Dessa forma, a quantidade de trabalho doméstico feito pelas mulheres não estaria refletida nas estatísticas” diz Jordana Cristina.

A demógrafa acrescenta ainda que a realização de atividade doméstica guarda relação com alterações ocorridas ao longo do curso de vida, como a transição para a vida adulta e consequente maior responsabilização por trabalhos domésticos, o nascimento de filhos, a entrada e saída do mercado de trabalho. “Por esse motivo, incorporamos a idade com uma dimensão central em nosso estudo”, complementa.

Ajuste nos dados

Para Jordana Cristina de Jesus, a imputação da carga de cuidados aos dados brasileiros amplia a agenda de pesquisa sobre as desigualdades de gênero, raça e classe no uso do tempo no Brasil. A pesquisadora aponta ser preciso reconhecer que o uso do tempo é uma questão política, não individual. “Todos nós dispomos das mesmas 24 horas ao longo de um dia para ter um trabalho remunerado, cuidar da casa, dos filhos, dedicar-se à prática de atividade física, aos estudos, ao lazer e aos cuidados com a saúde. A individualização e responsabilização das mulheres pelo cuidado com os filhos e com a casa coloca muitas delas em situação de pobreza”, relata.

Subnotificação pode causar esgotamento mental e comprometer o futuro das mulheres e de suas filhas – Foto: Cícero Oliveira – Agecom/UFRN

Essa pobreza, segundo a demógrafa, pode ser pensada em uma perspectiva multidimensional: pobreza de renda, uma vez que são impedidas de acessar plenamente postos de trabalho, e pobreza de tempo, já que cedem, permanentemente,  parte de seu dia para o cuidado do outro. “As restrições de tempo e o esgotamento mental e físico a que mulheres mais pobres, em sua maioria negras, são submetidas não são graves apenas para essas próprias mulheres, mas também podem comprometer a geração de suas filhas, quando, por exemplo, o cuidado não remunerado e o trabalho doméstico são delegados às meninas, comprometendo suas oportunidades de educação”, contextualiza.

Jordana lembra que a Agenda 2030 tem como uma das metas a igualdade de gênero e empoderamento de todas as mulheres e meninas. Porém, a seu ver, o caminho para atingir essa igualdade passa, necessariamente, pelo reconhecimento e valorização do trabalho doméstico e de cuidado não remunerado, pela ampla promoção da responsabilidade compartilhada e a provisão de políticas públicas para as famílias. “São necessários investimentos em serviços públicos que desafoguem as mulheres, sobretudo as mães-solo, como creches em tempo integral, incluindo período noturno, transporte público eficiente e de qualidade, para economia de tempo, e infraestrutura básica do domicílio, como acesso a água tratada e encanada, eletricidade e gás de cozinha”, finaliza Jordana Cristina.

Fonte: Agecom/UFRN

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