Um soco na cara é uma questão de sobrevivência

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Ok, seu perfil é para biblioteca — disse com convicção (além da surpresa, é claro!) ao perceber que eu carregava um livro. Então pediu educadamente para ver a capa, que revelava parte do peito de uma mulher. — Huumm, Henry Miller? Não conheço — comentou, embora tenha me falado que também lia. Falou sobre esse e aquele autor. Sobre John Green, sobre Luiz Gaziri, sobre Stephen Covey, Warren Bennis, pra só daí então usar a si mesmo como exemplo. Filho de mãe semianalfabeta, mas que havia estudado e trabalhado duro esse tempo todo.

O problema é que nesse país ninguém lê! As pessoas estão acomodadas!

Eu odeio John Green — respondi.

Como?…

Abrindo e fechando o portão.

Foi ali que Pitoco me reconheceu, ao aproximar-se de vassoura e balde em punho, enquanto eu abria e fechava o portão. De repente não havia mais vaga na biblioteca. Eu odiava John Green. Como também Luiz Gaziri, Stephen Covey, Warren Bennis… Há 600 milhões de anos nasceram os primeiros seres multicelulares. Combinações de genes que deram origem a fungos, plantas, vermes, mosquitos, dinossauros, formigas e muitas outras formas de sucesso ou fracasso ecológico, o Dr. Dráuzio Varella comentava isso num artigo. Sendo porteiro de uma faculdade, não sei dizer se o termo sucesso poderia ser aplicado a mim.

Tu lembra não? Não. Eu não lembrava. Embora isso não signifique que não tenha ocorrido, dada minha natureza de sempre ser acusado por um ou outro garoto que me roubava o lanche, e a natureza de Pitoco, o menino briguento. Pitoco logo me reconheceu, humilhado pelos alunos daquela faculdade. Talvez minha cara de menino acuado não tenha mudado em anos: Eu pago seu salário, filho da puta!, xingavam-me os alunos quando eu os proibia de passar. Pra mim era como um soco, bem familiar. — Você acha que essa faculdade prefere perder um aluno desses a pagar um salário mínimo todo mês a você? — perguntava-me o outro porteiro, a quem eu rendia.

As bactérias mais antigas, encontradas em rocha desde 3,5 bilhões de anos, se multiplicaram; e a vida unicelular, por quase 3 bilhões de anos. Então, 600 milhões de anos atrás nasceram os primeiros seres multicelulares, surgiram o sexo e as versáteis combinações de genes que deram origem a fungos, plantas, vermes, mosquitos, dinossauros, formigas e muitas outras formas de sucesso ou fracasso ecológico. Então, por que eu ainda estava vivo? Bem, acho que não seria muito vantajoso que caras como eu morressem — nem para a faculdade. A natureza é perfeita! Deus é perfeito! Há na África formigas que são escravizadas ainda na fase de larvas, até virarem pupa, e não reconhecem como inimigas as formigas que as farão escravas. Do mesmo modo, nos EUA, formigas de uma certa espécie liberam uma substância que impede que suas vítimas as reconheçam como inimigas. Talvez seja algo naquele solo que faz com que também os seres humanos lá nascidos coloquem seus coturnos em nossas gargantas e digamos emocionados: God Bless America!

Do meu canto, eu só abria e fechava o portão, dava boa noite aos professores — que nunca me respondiam — e a seus alunos — que continuavam a não me ter o menor respeito. Tudo normal, enquanto pensava nas horas que gastei sentado numa cadeira queimando as pestanas com álgebra — meu Deus, eu odiava álgebra! — e meu pai disse, quando terminei meu segundo grau: Ok, agora vá lá e arranje um emprego.

No entanto, no reino animal um soco é uma questão de sobrevivência. Então deve-se procurar algo menor, mais frágil, para aplicar-lhe um soco. Um belo soco. Pensei no meu cão quando cheguei naquele dia do trabalho. Daí lembrei da minha vizinha, que recolhia gatos e cachorros e lhes dava comida. Certamente me denunciaria por maus tratos. Daí pensei na minha mulher. Acertaria ela sem motivo algum, ou pelo simples motivo que sua pele era mais macia em relação aos ossos do meu metacarpo, daí seria preso. Então procurei até encontrar a coisa mais frágil e indefesa da casa. Apliquei um soco que a deixou partida em vários pedaços bem diante dos meus pés, que se encheu de sangue. Minha esposa ao chegar não acreditou, não entendeu por que os vidros do espelho entraram na minha mão ensanguentada. Daí levou-me ao médico para fazer a sutura.

Pitoco havia me salvado outra vez. Quando adolescente, ao cruzar uma avenida, uma gangue queria me bater por motivos que nem sei. Pitoco, na ocasião, fazia parte dessa gangue e me livrou da surra que estive prestes a levar, sem motivo algum, a não ser o motivo de me arrancarem da cara alguns dentes. Aí nos reencontramos na faculdade, eu na portaria, ele na limpeza, e pouco tempo depois chegou a notícia de seu assassinato. Foi morto a facadas por um desafeto. Havia-o encontrado bêbado, dormindo no chão de uma calçada, depois de uma vitória do Flamengo — era flamenguista roxo! Foi cobrar um soco que havia levado de Pitoco numa discussão sobre futebol. No reino animal, um soco na cara é uma questão de evolução. De sobrevivência.

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