Toda vez que seu pai chegava tarde em casa, vindo da rua, lembrava creme de morangos. Seu pai não gostava de creme de morangos. Mas a camisa que deixava dobrada sobre a cadeira, a calça, não enganavam o menino: era creme de morangos. “Que ideia é essa, garoto!”, respondia ao filho que queria saber se antes o velho havia passado em alguma sorveteria. Sua mãe então vinha lá da cozinha puxando a perna por conta da artrite; enxugava as mãos no avental e dizia: “Acabou o café.” Pronto. Era o suficiente para os céus virem abaixo. “Porra, como assim? O café já acabou? Esses meninos tão comendo café ou o quê?” O garoto e seus dois irmãos ficavam recolhidos a um canto, a mãe ficava recolhida a um canto. “Ah, tem outra coisa” – dizia a mãe – “não tem nada pra janta hoje à noite.” E um sonoro PUTA QUE PARIUUUUU!!! que saía daquela casa podia ser ouvido a quilômetros de distância, acompanhado de um esmurrar de mesa que fazia copos e talheres irem ao chão.
Ainda que o pai fosse estúpido ao extremo, o garoto o admirava. Detido nas crônicas esportivas, nas páginas policiais ou na cena política dos jornais que lia todos os dias, era aquela figura sentada em sua poltrona no centro da sala que o inspirava, não uma velha que só fazia levar gritos, lavava suas cuecas e que arrastava uma perna. “Esses grevistas ainda vão acabar com o país! Bando de desocupados filhos da puta!”, comentava o velho. “Quando crescer, quero ser igual ao meu pai!”, dizia o garoto de si para si.
“Vem cá, moleque!”, chamou o velho. De costas, enfiou a mão em um dos bolsos, contou e retirou uma cédula. A mesma pantomima quando não comprava fiado – o que era mais comum. “Vai ali comprar ovos no Zé do Açougue.” E o garoto ia no Zé do Açougue comprar ovos. Lá fora, Carlinhos brincava sozinho e viu Cesinha saindo de casa. “Tu vai aonde, Cesinha?”, perguntou Carlinhos. “Comprar ovos”, respondeu Cesinha.
“Posso ir contigo?”
“Pode.”
Então Cesinha e Carlinhos foram até Zé do Açougue. Cena que se repetia todos os dias. Porque sempre tinha alguém que jantava todos os dias. Então eram os mesmos gritos e esmurrar de mesas e os mesmos copos e talheres que iam ao chão.
Os dois esperaram Zé do Açougue virar os dois lados de uma peça de alcatra que estava em cima do balcão de mármore para outro cliente, ao mesmo tempo que limpava o suor que caía nas dobras da testa gorda com um trapo sujo. Então aproximou-se dos garotos e buscou o nome do velho no caderno de fiados enquanto tangia as moscas do balcão que lhe tiravam a paz pousando também no imenso bigode.“ É a dinheiro”, disse Cesinha. Então Zé do Açougue ficou olhando para os dois por alguns segundos e fechou o caderno. Foi pegar os ovos. Pegou a nota que Cesinha esticou. “Tem troco?”, perguntou Cesinha, dependurado com a ponta dos dedos no balcão de mármore, e Zé do Açougue apenas balançou a cabeça, procurando num maço de notas, misturado aqui e ali a pitadas de sangue talhado, sem nada lhe dizer.
“Minha pomada já chegou. Vá lá pegar em Marluce e leve esse pedaço de bolo pra ela.” Daí ia Cesinha levar um pedaço de bolo para Marluce e pegar com ela a pomada que sua mãe havia encomendado para amenizar as dores da artrite.
“Senta aí, meu filho, enquanto eu procuro”, disse Marluce. Lá fora seus filhos brincavam em suas bicicletas — algo que Cesinha nunca possuiu, uma bicicleta!, nem a TV a cores novinha onde passava um programa bem legal que assistia agora na sala da casa da Marluce — ela não tinha um marido, mas tinha quatro filhos. Foi meu admirador quem me deu, dizia à mãe de Cesinha enquanto tomavam café à tarde — inclusive as bicicletas das crianças!.
“Pronto, prontinho! Diga a sua mãe que a aplicação é três vezes ao dia. E que não tenha pressa em me pagar. Pode pagar até em quinzes dias”, disse Marluce com a pele besuntada de creme e o rosto coberto por maquiagem.
“Marluce?”
“O que, meu anjo?”
“Você passou por alguma sorveteria hoje?”
“Não, por quê?”
“Você está com cheiro de creme de morangos.”