Lançado originalmente para PC e Stadia em 2021, Grime agora chega aos consoles com inclusão da expansão Colors of Rot, que também é gratuita para quem já possui o game. Com tempo para aperfeiçoar sua obra, o estúdio israelense Clover Bite esculpiu um metroidvania de identidade mitológica estranha e profunda.
“O céu se partiu e o Fôlego se espalhou por tudo, uma dádiva forçada sobre o mundo.”
Na união de duas entidades, o Genitor do Mundo fecundou a outra criatura com o Fôlego. Desse útero preenchido surgiu o vórtice, o Coração da Espiral que tudo devora como um buraco negro. Ele é carregado pelo Invólucro, um corpo Esculpido criado das pedras ao redor, capaz de adentrar os monólitos que reproduzem um novo Invólucro cada vez que o anterior for destruído.
De corpo em corpo ele conserva suas qualidades,podendo crescer e prosseguir em um mundo sombrio habitado por seres feitos da mesma matéria que os cerca: pedras e plantas. Brotando da terra e caindo do Céu Partido, as criaturas rochosas receberam o Fôlego e, em sua deformidade, aspiraram uma forma harmoniosa, Esculpida, assim como a sua.
O vórtice, porém, não está interessado na ascensão simétrica. Ele é o Portador do Fim, aquele que cumpre a destruição que cabe às coisas criadas. Como diz o ser que está no Pilar do Mundo: “é a sua natureza. Você é uma força; alguém tem que sentir o impacto dela”. A mensagem é clara. Destrua. Absorva. Cresça.
Destrua
Grime se autointitula um soulslike e podemos ver essa característica em sua base: combate difícil baseado em gerenciamento de energia e leitura de comportamento do oponente, checkpoints que recarregam o Fôlego capaz de proporcionar a cura e também servem para realizar as melhorias de personagem, história críptica revelada por diálogos e fragmentos além do retorno para o local da morte para encontrar os restos do que foi perdido com a derrota.
Este último ponto, porém, traz uma diferença significativa: você não perde os pontos de experiência (chamados de Massa), mas é o multiplicador que concede bônus nesse quesito. Ou seja, Grime é menos punitivo porque sua derrota não implica em prejuízo, mas na perda de uma vantagem. Isso me deixou mais à vontade para arriscar morrer, sabendo que vou poder continuar subindo de nível mesmo assim.
O multiplicador se chama Ardor,uma mecânica interessante que representa uma porcentagem de bônus para a Massa obtida, até o máximo de 100%. Cada inimigo derrotado ou absorvido aumenta o Ardor de 3 a 6%, enquanto cada golpe sofrido reduz a contagem em 2%. Em caso de morte o número vai a zero e sua forma fracassada fica no local; destruí-la permite recuperar metade do Ardor perdido.
Nas primeiras duas ou três horas morri relativamente pouco e andava sempre com o Ardor no máximo. Após isso as mortes ficaram mais comuns, especialmente nos chefões os quais me demandaram numerosas tentativas, sempre reduzindo meu bônus pela metade até não restar nada. Isso me levou a parar de me importar com o Ardor e concentrar-me em aprender as lutas para finalmente superá-las.
É um clichê dizer que o combate nos jogos no estilo Souls é brutal; os chefões devastadores de Grime com certeza merecem esse rótulo, assim como algumas seções opcionais de plataforma que vão exigir bom uso das habilidades aprendidas pelo Invólucro e a persistência do jogador. Os chefes têm grande variedade de golpes e requerem atenção para aprender a coreografia; como diz um NPC, o espetáculo da destruição é como uma dança.
Dessa forma, Grime satisfaz aquela vontade de aprendizado em que um chefe inicialmente muito difícil vai se tornando mais digerível, até que, sabendo antecipar as investidas da criatura e as brechas para contra-ataques, você a derrota com controle da situação.
Mesmo assim, ainda acho que alguns chefes têm uma barra de vida muito longa, especialmente pela frequência com que Grime recorre a uma inesperada e brutal segunda fase para o embate. Houve até um chefe opcional que após muito tempo para acabar com sua barra de vida, descobri que a luta tinha uma segunda fase muito pior.
Aprendi a passar da primeira fase levando apenas um ou nenhum golpe, mas a continuação ainda me triturava. Tentei por mais de uma hora até resolver deixar essa luta para depois e vencê-la quando estava perto do final da campanha.
Parte da dificuldade vem da cura limitada. Passei a maior parte do jogo com uma única barra de Fôlego para restaurar cerca de metade do meu total de Vida. A expansão Colors of Rot acrescentou uma nova forma de cura: as Pérolas Fetais, que apesar de recuperarem pouco, com certeza ajudam nas chances de sobrevivência.
Absorva
A absorção é um eixo que converge narrativa e gameplay como um tema coeso. Absorvemos os inimigos a partir de outra mecânica souslike, o aparar (ou parry), que consiste em realizar uma ação defensiva no momento exato em que o ataque inimigo o atingiria. No caso do Invólucro, ele usa o buraco negro que é sua cabeça para sugar o oponente para si, o que tem alguns desdobramentos.
Primeiro, isso causa dano. Os inimigos podem ter duas cores de barra de vida: vermelho (que pode ser totalmente absorvido com uma única aparada) e marrom (que não pode). As duas cores também se alternam numa mesma barra, implicando em diferentes fases na forma de abordar a luta.
Segundo, isso faz recarregar a sua barra de Fôlego, já que, além da massa corpórea do infeliz, você também está consumindo a própria essência da vida dele. Quatro absorções preenchem uma barra.
Terceiro, isso transmite Traços do absorvido para você. Após absorver um número pré-definido de seres do mesmo tipo, você ganha uma característica passiva desativada que pode ser adquirida e melhorada sob o custo de Pontos de Caça. Esses pontos são obtidos ao derrotar mini-chefes espalhados por todo o mundo, e podem aumentar sua porcentagem de Vida, Vigor e Cura, por exemplo.
Há itens que permitem realocar seus Pontos de Caça e de atributos, o que facilita na hora de se comprometer a gastar a pilhagem e permite experimentar com aspectos diferentes do combate. Vale mencionar que os itens de melhorias de armas também são muito generosos, e eu tenho o bastante para maximizar ao menos cinco delas.
Aos coitados que, como eu, não conseguem aprender a fazer a aparada corretamente mesmo tendo terminado todos os “Soulsborne Ring”: não se preocupem, em Grime essa ação é bem responsiva e me acostumei ao ponto de não precisar investir no Traço que aumenta o tempo de reação, o que ainda assim é uma opção bem vinda.
Cresça
Desde o momento em que se arrastou do pó que o formou, até chegar ao Pilar do Mundo para seguir seu destino, todo o crescimento do Invólucro é uma jornada de destruição e absorção por um mundo estranho, alienígena e inquietante.
Tudo ali é composto de pedras e plantas. Passamos por cavernas, desertos, mais cavernas, palácios megalíticos, ainda mais cavernas, jardins e… cavernas. Sim, Grime tem locais e personagens repletos de pedras, mas essas cavernas possuem variedade de cenário, atmosfera, design de nível e inimigos, compondo uma pluralidade bem executada.
Ainda que cada área seja labiríntica e interessante, a progressão de uma à seguinte é consecutiva, exceto pelas áreas opcionais. Dessa forma, não há uma região central que dê acesso gradual ao interconectar diversos outros lugares.
O mapa de Grime acaba se estendendo horizontalmente para a direita ao invés de formar um círculo que dá a volta em si mesmo como outros metroidvanias, o que não é um problema em si, mas impacta ao diminuir o fluxo das longas viagens ao revisitar locais passados. Ainda assim, o design de níveis é muito bom e cheio de caminhos que elevam a sensação de descoberta e recompensa com seus numerosos segredos. Após 27 horas de exploração, completei 96% de Grime.
Às vezes o jogo parece querer que você se perca antes de poder se encontrar, tendendo a colocar algumas balizas de mapa no final da região que elas revelam ou até após o chefão local, de maneira que você precisará aprender a se orientar naquele lugar e adquirir o mapa servirá para perceber os pontos ainda não explorados.
O tema do corpo humano é recorrente. As Cavernas Gotejantes possuem olhos que te seguem; no Deserto Informe há enormes rostos e mãos brotando das montanhas; o Covil do Devorador é um enfileirado de dentes por toda parte; em Lítico, cidade dos Deformados, os habitantes escavam seus irmãos diretamente do solo, pois todos eles são rochas que receberam o Fôlego mas permanecem presos na terra, conscientes e inertes.
Como um corpo, as vértebras sustentam o Pilar do Mundo e os nervos se espalham e conectam as partes, tornando-as um todo. Assim, o ciclo de fazer brotar vida a partir do pó, buscar ascensão pela forma esculpida, fracassar e retornar ao pó está profundamente expresso nos ambientes desse universo de mãos e bocas, artesãos e devoradores, criadores e destruidores.
As cores da podridão
Dá para entender o nome Grime, que significa sujeira ou fuligem, mas, honestamente, não captei as cores nem a podridão do título Colors of Rot. Como esta é a primeira vez que jogo Grime, não sei comparar com exatidão o que foi acrescentado, mas no menu é possível ver desde o início o que essa versão trouxe de diferente, listando as novidades sem especificá-las, como pode-se ver na imagem abaixo.
O destaque, é a nova área, Childbed (Cama da Criança), nome que permaneceu sem tradução no mapa. É uma localização perigosa e gigantesca, podendo ser acessada por várias outras zonas do jogo base. O chefe que domina o lugar é exigente e, após mais de uma hora de tentativas, ignorei-o por um tempo até voltar para derrotá-lo no final da campanha.
Ficou aparente que o rumo havia sido alterado em certo ponto para incluir uma incursão obrigatória a um dos trechos de Childbed, integrando essa área ao fio da história com o reposicionamento de um item-chave após um chefe novo.
Uma atualização pré-lançamento corrigiu os erros de congelamento que me forçaram a fechar o jogo, assim como os sumiços de partes do cenário. A performance ainda tem seus tropeços, embora não sejam graves. No entanto, a atualização também trouxe um erro de carregamento em que o jogo congela por uma fração de segundo, mostrando o símbolo de loading com uma porcentagem no centro da tela. Isso acontece com uma freqüência indesejável, mas felizmente não durante os combates.
Ao pó voltará
Grime é um ótimo jogo e fica acima da média dos metroidvanias em combate e riqueza de mundo. Mesmo assim, é preciso ressaltar que a alta dificuldade pode não agradar a todos. A atmosfera, mórbida e sem grandes excessos, dá o tom mitológico de acompanhar uma força que se move por um mundo estranho para cumprir sua existência. Apenas sua curiosidade é tão grande quanto seu senso de destruição e ambas serão saciadas ao explorar e absorver tudo o que o título tem a oferecer.
Prós
A ambientação diferenciada aprofunda a atmosfera;
Design de níveis vasto e repleto de segredos e desafios;
Batalhas contra chefes instigantes e elaboradas;
Boas ideias para o combate e as melhorias de personagem;
Música sombria e dramática;
Textos em PT-BR.
Contras
A grande extensão do mapa cria longas viagens para revisitar áreas passadas;
Algumas lutas contra chefes parecem ser longas demais;
Taxa de quadros por segundo inconstante;
Frequentes travamentos súbitos para loading, que duram uma fração de segundo.
Lúcio Amaral é jornalista e advogado pós-graduado em Direito e Processo Trabalhista. Certificado de Estudos Aprofundados em Psicanálise. Ganhador do II Prêmio de Rádio e Jornalismo em Saúde e Segurança do Trabalho, promovido pelo MPT em 2008.