O que nos é alheio

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Aproveitou que o sinal havia mudado de cor. Com o cartaz de papelão erguido sobre a cabeça, em letras tortas de um português ruim, pedia ajuda. Estava desempregado. Tinha mulher e filhos pra dar de conta. É preferível passar fome, padecer, a ter que pegar o que é dos outro, dizia sempre o pai a seus oito oito filhos, todos pequenos, que aprenderam a dura lição no chão de terra batida, enquanto raspavam angu de farinha no fundo de uma panela, umedecendo-o com os dedos — Tudo o que tinham para comer. — Deus olha tudo que nóis faz. Assim Bento cresceu e nunca tocou no que era alheio.O que por si só seria  motivo de orgulho para o pai , se vivo fosse.

Tinha ajeitado o vestido dela como quem arruma uma boneca. Não havia esquecido o batom ou maquiagem. Fica aqui, perto de sua mãe, esperando, que logo logo vêm te buscar, disse. Só depois atravessou a avenida.

Nem o chapéu de  palha que tinha à cabeça aliviava o sol abrasador daquela manhã, onde ardia ainda mais o asfalto. A mulher, grávida, descansava à sombra de uma árvore num canteiro da avenida movimentada, enquanto as crianças, sujas, descabeladas, brincavam não muito longe. Cinco, seis carros? Quantos até que o sinal abrisse de novo? Era preciso ter ligeireza. Porém, antes mesmo que tivesse se aproximado, um motorista se antecipou e disse que não tinha nada. Um outro alegava que os vidros de seu carro já estavam limpos. Por fim, conversando ao celular, um terceiro apenas apertou um botão, quando a janela subia pouco a pouco refletindo a pele queimada, os olhos encovados e o cartaz de papelão.Um grupo de garotos, todos fardados, no fundo de um ônibus o chamou. Era do outro lado da pista. Não saberia se daria tempo. Daria? Esgueirou-se como pode. Correu. Conseguiu. Na palma da mão suja e calejada, embalagens vazias de doces. Os garotos riam enquanto o ônibus dava partida. Bento colocou o cartaz debaixo do braço e foi até uma torneira em um dos canteiros, encher uma garrafinha d’água. Tirou o chapéu. Baixou a cabeça. Deixou-se ficar por alguns segundos nágua como  fazem os passarinhos, enquanto  a água escorria sobre o rosto cavo e sulcado. Um carro parou próximo. De dentro, uma mão estira uma cédula de dois reais. Ainda há gente boa nesse mundo, pensou. O sinal muda de novo. Com esforço, a mulher levanta agora. Carrega o menor dos filhos num dos braços, e outro, puxa pela mão. O corpo inchado, as pernas pesadas, faz com que não tenha tanta mobilidade quanto seu marido, alcançar tantos carros quando o sinal fecha. Porém, ainda assim compensa. Agora ela voltará à sombra daquela árvore. Descansar por um longo período. Até que chegue sua vez novamente.

As crianças participam. Apoiam-se na ponta dos pés até a janela. Uns motoristas dão balas, outros perguntam onde estão seus pais vagabundos? dizendo-lhes que elas deveriam estar numa escola. Elas então apontam — a mãe, grávida, debaixo de uma árvore, e o pai descansando de horas passadas ao sol.

Já é tarde. O sinal fecha. Bento ergue novamente o cartaz de papelão sobre a cabeça, indo de um a um. Não tenho. Da próxima vez. Vá fazer mais filhos, seus irresponsáveis . Um carro sinaliza. Estaciona num canto mais discreto, longe do tráfego. O vidro baixa pela metade e uma mão surge com um cédula. Uma cédula de cem reais. Ainda há gente boa neste mundo. A porta traseira do carro abre e sai sua garotinha. Tem no máximo dez anos. Olha para o pai. Não diz nada. Apenas baixa a cabeça. Bento toma sua mão e os dois saem calados.

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