O Brasil já registra mais de 685 mil mortos pela covid-19 e mais 34,5 milhões de infectados. No momento mais crítico da pandemia, ouvíamos notícias de milhares de mortes por dia e sentíamos esse drama na pele com a perda de familiares, amigos ou conhecidos. Depois da vacina, que demonstrou resultados logo nas primeiras doses, com maior eficiência após as doses de reforço, o índice de óbitos diminuiu significativamente, a ponto de os órgãos de saúde flexibilizarem as medidas de biossegurança. Hoje são raras as pessoas que andam de máscara ou comentam sobre o coronavírus no seu dia a dia. Acontece que ainda não foi decretado o fim da pandemia e muita gente continua morrendo todos os dias no mundo e no Brasil.
De acordo com o Consórcio de Veículos de Imprensa, formado pelo G1, O Globo, Extra, O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e UOL, a quantidade de mortos pela doença tem diminuído peremptoriamente, mas a média móvel nacional ainda é de 79 óbitos por dia. No dia 7 de setembro, por exemplo, a média era de 94 óbitos apurados. Em agosto, era 128. Contudo, ainda que a redução seja representativa, se considerarmos o último índice observado (79 mortes/dia) e multiplicarmos por 30 (referente a um mês), chegamos a mais de 2.300 mortes em consequência do vírus.
Diante disso, uma das questões a que se deve dar foco é: quem são essas vítimas? A infectologista Eveline Pipolo Milan, professora do Departamento de Infectologia da UFRN e médica no Hospital Giselda Trigueiro, referência para doenças infectocontagiosas no RN, explica que as principais vítimas são pessoas não vacinadas ou parcialmente vacinadas com 1 ou 2 doses e pessoas portadoras de sérias comorbidades descontroladas, como doenças cardiovasculares, renais e diabetes. “O que vemos hoje é que esse perfil de paciente, quando contrai covid, descompensa a doença ou doenças de base e, muitas vezes, vai a óbito mais pelo agravamento daquela doença que já era descontrolada e que se agravou pela covid”, complementa.
O RN é um dos 15 estados em queda de novos casos, segundo o levantamento do Consórcio de Veículos de Imprensa. Ion de Andrade, médico epidemiologista e professor e pesquisador da Escola de Saúde Pública do RN, explicou que a prevenção segue três fases: a prevenção primária, que consiste em evitar que as pessoas adoeçam, a prevenção secundária, que é o fornecimento de tratamento adequado caso a pessoa tenha sido contaminada, e a prevenção terciária, que é a reabilitação do paciente.
Ion alerta que, apesar da situação, o Brasil não definiu o quantitativo de leitos críticos que deve permanecer aberto para o caso de repique da covid, ou seja, o que deve ficar disponível caso venha a subir a média de casos e mortes. Se isso acontecer, mesmo com a experiência adquirida durante esses dois anos, as medidas adotadas seriam feitas de maneira improvisada.
“Há muitas questões que não estão dadas, mas que foram respondidas para outras doenças que são base para o funcionamento do SUS, como a aids e a tuberculose. Hoje a OMS (Organização Mundial de Saúde) já atestou a eficácia de alguns medicamentos para o controle de casos graves de covid, porém: esses medicamentos estão disponíveis? Se a pessoa adoecer, ela irá poder se tratar de maneira fácil? Além disso, ainda há a questão do diagnóstico, que se tornou muito fácil por causa dos testes de farmácia, mas a nossa população pobre tem acesso? Ela pode, tão facilmente quanto as pessoas de renda mais alta, se diagnosticar? Portanto, do ponto de vista da prevenção, ainda estamos muito atrás”, coloca o médico.
Na visão do especialista, estamos vivendo os ganhos da imunização, o que significa que os casos de covid que continuam acontecendo são, na maioria, casos leves, que não levam a internamentos ou óbitos. “A proporção de casos graves e caso totais se tornou muito menor em função da vacinação, portanto isso sublinha a importância da adesão. Essa é a principal ferramenta, hoje, para nós termos a covid-19 sob certo controle, comparativamente ao que foi nos anos anteriores quando as vacinas não estavam disponíveis” indica.
Eveline confirma que o número de casos, internações e óbitos foi caindo ao longo do tempo graças, principalmente, às vacinas aplicadas. Ion de Andrade também compartilha do mesmo pensamento e explica que, se olharmos os gráficos dos óbitos, a quantidade diminuiu muito, assim essas mortes se tornam menos visíveis à população porque atingem um número menor de pessoas. “Enquanto atualmente são centenas, elas já foram muitos milhares, portanto a magnitude não é a mesma, mas ainda é uma doença muito impactante quanto ao número de óbitos. É importante que se saiba que a covid veio para ficar e vai demorar muito para que isso seja uma página virada, o vírus continua circulando e pessoas continuam morrendo” finaliza.
Média móvel
A média móvel de casos é calculada a partir da soma da quantidade de casos registrados em sete dias consecutivos e a divisão dessa quantidade por sete. Já a variação de casos é realizada levando em conta a variação da média móvel dos últimos 14 dias. Ambos os cálculos são feitos para todo o Brasil, ajudando a visualizar o panorama geral de cada local. Esses cálculos são necessários para o repasse mais preciso de informações para a população e para as unidades de saúde dos estados.
A média móvel é um cálculo criado para repassar à população o número de casos de covid-19 após o começo da pandemia, feito pelo Consórcio de Veículos de Imprensa, como resposta à decisão do governo de restringir, a partir de junho de 2020, os dados sobre a covid-19. Com essa forma de calcular, é possível ver com mais clareza os estados que estão em alta, em queda e estáveis em relação aos novos casos do coronavírus.
Memória
Os primeiros casos de pacientes com coronavírus foram confirmados em 31 de dezembro de 2019 na China e, após análise da OMS, foi constatado o vírus e a nova doença, nomeada de covid-19. Logo depois da descoberta do vírus, ele rapidamente se espalhou pelos cinco continentes e causou milhões de mortes pelo mundo. No Brasil, o primeiro caso da doença foi confirmado no dia 26 de fevereiro de 2020 pelo Ministério da Saúde (MS). No dia 27, o então ministro da pasta, Luiz Henrique Mandetta, realizou uma coletiva de imprensa afirmando que o protocolo adotado pelo Ministério não seria alterado, explicando que não seria possível fechar fronteiras. “É uma gripe. Como todo vírus, a medida de melhor controle é por etapas, é termos agilidade (no diagnóstico)”, afirmou durante a coletiva.
No dia 22 de janeiro de 2020, foi ativado no Brasil o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública para o novo coronavírus (COE Covid-19), estratégia prevista no Plano Nacional de Resposta às Emergências em Saúde Pública do Ministério da Saúde. Com muita cautela, o governo criou passos para monitorar o vírus, mas demorou a tomar medidas de segurança reais para a população. Eveline Pipolo destacou a rápida propagação da doença. “Todo agente infeccioso de transmissão respiratória tem essa tendência de propagação rápida. Daí a necessidade, diante da ameaça de uma pandemia, da implementação urgente de medidas enérgicas nas fronteiras”, relatou.
De acordo com ela, as medidas preventivas no Brasil demoraram muito para serem estabelecidas. “Lembro nitidamente quando Itália e Espanha se tornaram o epicentro da doença, um grupo de amigos meus encontrava-se de férias na Espanha. Eu os orientei a permanecerem em quarentena de 14 dias quando voltassem ao Brasil, mesmo que estivessem assintomáticos. Na época, tínhamos pouquíssimo acesso aos testes. Pois bem, meus amigos seguiram minhas recomendações, mas eles relataram que não foi dada nenhuma orientação na aeronave nem nos aeroportos por onde passaram. Perceba que, se medidas de bloqueio tivessem sido tomadas de forma precoce, o vírus não teria se propagado tanto”, relembra.
O papel da UFRN
A Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) teve papel importante na luta contra a covid-19 no RN. Seus pesquisadores participaram das ações de combate ao novo vírus desde a preparação do primeiro protocolo de atendimento para casos suspeitos, mas também na realização de testes, no primeiro momento da pandemia, auxiliando o estado a atender uma demanda crescente e necessária. Foram mais de 100 mil exames, a maioria custeada com recursos próprios ou por meio de parcerias institucionais, realizados pelo Instituto de Medicina Tropical (IMT/UFRN), com auxílio de diversas outras unidades acadêmicas. A Universidade teve participação significativa, ainda, em várias ações e pesquisas envolvendo o desenvolvimento de vacinas e outras alternativas de imunização da doença.
A UFRN colaborou também com a produção de álcool 70%, com o teleatendimento, confecção de máscaras, e a elaboração de uma série de medidas e material didático ou informativo para auxiliar as pessoas a compreenderem a realidade pós-covid-19. O Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde (LAIS/UFRN) desenvolveu uma série de ferramentas digitais fundamentais para o acompanhamento dos casos e do próprio tratamento. Além disso, foram inúmeros os profissionais que assumiram a linha de frente, atuando dentro e fora dos hospitais universitários. Parte significativa do trabalho da UFRN neste período tem sido registrada em seu portal institucional e concentrada no Hotsite Coronavírus.
Haverá nova onda?
O repique da covid assombra a população, porém, Ion de Andrade afirma que uma nova onda só poderia acontecer, com a gravidade que aconteceu no início, se a imunização perdesse sua capacidade de proteção. “Se a imunidade viesse a cair e as pessoas precisassem ser novamente vacinadas, de forma que esses dois componentes remeteriam à adesão da população a uma nova rodada de vacinação, caso viesse a ser necessário, e futuramente à adoção de novas políticas restritivas”, diz.
O médico complementa que a população vive mais tranquila depois de comprovado que pessoas vacinadas apresentam a doença de forma mais leve. Ele elogia os laboratórios que disponibilizaram o fármaco por serem honestos em dizerem que a proteção não era total. “Elas protegem, em média, 95% das formas graves da doença, mas significa que 5% dos doentes podem estar imunizados e desenvolver formas graves. Mesmo assim, a covid se torna menos agressiva aos olhos da população” pontua o médico.
Ion explica ainda que, mesmo que 5% seja um número baixo, enquanto o vírus circular de maneira intensa, há sempre pessoas contraindo a doença, mesmo vacinadas, e evoluindo para formas graves, principalmente se houver uma parcela que ainda não aderiu à vacinação, já que ainda não foi apresentada tecnologia que previna 100% dos casos graves.
A rapidez com que os imunizantes foram elaborados criou receio em parte da população, principalmente com o espalhamento de informações invalidadas pela OMS. O Brasil, que é referência mundial, participou ativamente das pesquisas para elaboração de vacinas, desde a Coronavac, do Instituto Butantan, até a Oxford-Astrazeneca que contou com a colaboração de sete pesquisadores nossos que ajudaram na realização dos testes. Além de ser testada na África do Sul e no Reino Unido, cerca de dez mil brasileiros foram voluntários no estudo duplo-cego. A professora Eveline Pipolo, que também integra o Centro de Pesquisas Clínicas (CePCLIN), integrou esse trabalho, colocando Natal e o Rio Grande do Norte entre os protagonistas.
“Em agosto de 2020, eu fui contactada pela doutora Sue Ann Costa Clemens, líder do Brasil nos estudos relacionados à vacina da Oxford. O estudo já havia sido iniciado nos centros de São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro, mas era necessário ampliar o número de voluntários envolvidos, então ela nos identificou e, em 15 dias, nos organizamos para dar início a esse estudo. Ele incluiu 1.534 pessoas, que foram acompanhadas até o início de 2022. A pesquisa começou no nosso centro, na CePCLIN, em setembro e, em janeiro, já tínhamos o resultado do êxito da vacina e a aprovação em caráter emergencial da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para o início da vacinação”.
Eveline conta que o estudo foi um grande desafio, pois a equipe nunca havia participado de algo tão robusto, com a participação de tantos voluntários e em tão pouco tempo. “Com mais de 100 pessoas envolvidas, estava sentido uma satisfação e orgulho enorme por participar do estudo de uma vacina concebida, planejada e criada por uma universidade de renome mundial, a Universidade de Oxford. Nos enche de satisfação saber que fizemos parte de algo tão grande. Foram meses de trabalho árduo, com pouquíssimo contato com a família. A gente começava a trabalhar às 7h e, muitas vezes, chegávamos em casa às 22h”, compartilha a infectologista.
Além do destaque nesse processo, Natal ainda foi responsável por outra medida durante o período pandêmico. O Laboratório de Inovação Tecnológica em Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (LAIS/UFRN) elaborou a Plataforma ADA para Integração da Pesquisa Clínica no Brasil. A ferramenta cataloga e integra os voluntários imunizados para o maior controle de aplicação do imunizante no período de testes nos centros responsáveis no Brasil. Na solenidade realizada para comemorar a criação do ADA, Esaú Custódio, diretor do Centro de Pesquisa Integrada do Hospital do Servidor, no Rio de Janeiro, pontuou a importância da criação do site. “Todos os centros de pesquisa no país estavam procurando uma solução para o problema. Levamos a demanda ao LAIS no dia 1º de outubro e, no dia 26, todos os voluntários que participaram dos estudos no nosso centro estavam devidamente cadastrados”, explicou.
Imagens: Cícero Oliveira
Fonte: Agecom/UFRN