Ainda que o envelhecimento humano faça parte do processo natural da vida, a sociedade trava uma batalha constante contra as marcas, principalmente físicas, que o processo de amadurecimento traz na pele. Nessa fase da existência, as relações interpessoais tendem a diminuir, tornando, muitas vezes, a família a principal responsável pelas interações sociais e afetivas dessas pessoas que precisam de muita atenção e cuidado. Infelizmente, nem sempre isso acontece. Dados do último relatório do Disque 100, disponibilizado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), indicam que a violência contra o idoso cresceu 30% entre os anos de 2018 e 2019.
De acordo com o Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, relativo ao ano de 2022, 30.822 denúncias foram realizadas aos canais de comunicação do Governo Federal com vítimas na faixa etária acima de 60 anos. São Paulo foi o estado que registrou mais denúncias: 8.053 ao todo. Já no Rio Grande do Norte, a base de dados aponta que foram registradas 699 denúncias. O Painel de Dados é constituído por denúncias acolhidas pelos canais do Disque 100, Ligue 180 e do aplicativo Direitos Humanos Brasil. A última atualização foi feita no dia 3 de junho.
A aposentada Maria, 76, relata ter enfrentado dificuldades ainda quando morava com o neto. O sustento dos dois advinha do benefício da aposentadoria dela, visto que o jovem ainda era menor de idade. A sabedoria adquirida com a idade não foi capaz de ajudá-la a enfrentar esse novo desafio. “Minha filha o deixou para criar e foi morar no Rio de Janeiro, sem deixar nenhum contato ou dinheiro para manter o filho aqui”, conta. Ela relata os momentos em que o jovem, observando sua fragilidade e boa-fé, começou a administrar seu cartão do banco para benefício próprio, a abandonando sem nenhuma assistência.
Socorro, sua antiga patroa, sabendo das dificuldades que a ex-funcionária estava passando, decidiu agir em sua defesa e foi até ao bairro em que a aposentada residia, no município de São Gonçalo do Amarante. Ao chegar, a encontrou em péssimas condições de saúde, sem se alimentar direito e tomar as medicações que precisava. “Fomos investigar na Caixa Econômica como estava a situação da conta bancária dela. Acabamos descobrindo que a conta poupança estava praticamente sem nada”, diz Socorro. Demorou dois meses para Maria restabelecer sua saúde, passando essa temporada no apartamento dos seus antigos patrões. “À medida que ela se recuperou, procurei o outro filho dela que, prontamente, teve a ideia de alugar sua casa própria e voltar a morar com a mãe, juntamente com sua esposa”, completou.
A falta de respeito com o idoso, ainda que ocorra com maior frequência nas residências, também acontece em outros ambientes urbanos. De acordo com Josimar, 62, morador do município de Acari, o desrespeito com o idoso é bastante comum nos trajetos de transporte público intermunicipal. “Eu venho sempre de ônibus para Natal, a trabalho. É muito comum vermos os mais novos não cedendo os lugares para nós, idosos, mesmo nos assentos preferenciais”, relata. Ele explica que muitas vezes é necessário pedir ao motorista ou cobrador para intervir no direito a eles [idosos] garantido.
A guarda municipal Edmilza Fontes, que trabalha no município de São Gonçalo do Amarante, explica que a violência com essa população é constante, principalmente relacionada à violência financeira e psicológica. Ela destaca o trabalho conjunto com o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), que pede apoio da Guarda Municipal para o atendimento domiciliar em diversos casos, incluindo chamados envolvendo violência contra idosos, e as Unidades Básicas de Saúde (UBS). Edmilza reforça que grande parte das denúncias feitas pelos moradores do município não são realizadas por meio do Disque 100, mas sim pelo 190, que repassa certos chamados para a guarda municipal, e também pelo número disponibilizado pela própria equipe de guardas para a população.
Para a agente de segurança pública, é muito comum os familiares darem entrada com os idosos no único hospital de São Gonçalo do Amarante e deixar um número de contato errado, propositalmente, para que ninguém consiga entrar em contato com eles. Colocar em risco a vida ou a saúde da pessoa idosa, por meio de condições degradantes, privação de alimentos ou cuidados indispensáveis é um dos crimes previstos pela Lei 10.741/2003 que estabelece o Estatuto do Idoso. A pena prevista para o crime é de dois meses a um ano de detenção, além de multa. Se o crime ocasionar lesão corporal, a pena aumenta para um a quatro anos de reclusão. Se resultar em morte do idoso, a pena é de quatro a 12 anos de prisão.
Conforme o artigo 3º do Estatuto do Idoso, é obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar ao idoso a efetivação do direito à vida, saúde, alimentação, educação, cultura, esporte, lazer, trabalho, cidadania, dignidade e liberdade. Fontes, como é conhecida na Guarda, realiza palestras voltadas para a população em Unidades Básicas de Saúde, Praças, Centros Comunitários e Escolas no município onde trabalha, mas que devido a covid-19, as palestras informativas não tinham como ocorrer. “Na pandemia tivemos o maior índice de violência, devido as pessoas ficarem em casa, os familiares se aproveitavam para agir de maneira violenta com mais frequência, principalmente contra mulheres e idosas”, reforça.
Para o advogado Gilberto Meneses, tratar de assuntos relacionados aos idosos traz muita responsabilidade, uma vez que, ainda hoje, a violência contra a pessoa idosa é considerada um tabu na sociedade. “É muito importante o acompanhamento de um advogado para orientar a vítima em todos os procedimentos a serem realizados, tanto na fase de inquérito, como também na fase processual, se necessário, para atuar como assistente de acusação”. Ele destaca que, segundo o artigo 95º, da Lei do Idoso, os crimes contra a pessoa idosa são de ação pública incondicionada, portanto, o detentor exclusivo da ação penal é o Ministério Público. “O auxílio de uma secretaria de assistência social se faz necessário para que também as medidas legais sejam adotadas, visto que os laudos proferidos pelos profissionais servem como prova, para que os direitos daquela pessoa sejam assegurados”, conclui.
Disque 100
Com o intuito de ser um canal de denúncia disponível em todo Brasil, o Disque 100 foi institucionalizado no ano de 2003 como um serviço de denúncias e proteção contra violações de Direitos Humanos. O serviço, que funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana, atende situações de violações de direitos humanos à população no geral, incluindo violência contra pessoas idosas. Para entender melhor como e porque as denúncias foram realizadas no estado do Rio Grande do Norte, pesquisadores da UFRN, com colaboração da Secretaria Municipal de Saúde de Natal, realizaram análise espacial exploratória dos dados do Disque 100 entre os meses de dezembro de 2018 a novembro de 2019.
O diretor do Instituto do Envelhecer da UFRN (IEN), Kenio Lima, foi o orientador responsável pela construção do artigo. Ele aponta a dificuldade em conseguir registros de municípios menores do RN. “No artigo, chamamos atenção de que, na verdade, essa questão de conscientização, na grande maioria das vezes, fica contida nos grandes centros urbanos, talvez porque tenha mais violência, mas não quer dizer que nos municípios menores você não tenha um filho praticando violência contra a pessoa idosa. Quanto maior é o adensamento populacional, maior é a probabilidade de acontecer violência”, explica.
As investigações foram apenas observacionais, conduzidas de forma espectadora e sem interferência por parte dos pesquisadores envolvidos. Após a coleta das informações, que foram encaminhadas ao Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Idosa (CEDEPI/RN), os autores do artigo formularam um banco de dados constando todas as variáveis das vítimas, entre as quais estão: tipo de violência sofrida, gênero da vítima e do abusador, o local da agressão, se houve reincidência na violência e grau de parentesco entre as partes. “Solicitamos à base do Disque 100, sem identificação nominal, por uma questão ética, e fizemos análise a partir da base relativa ao período de 2018 e 2019, no Rio Grande do Norte”, informa Kenio. Nessa etapa, dois pesquisadores ficaram responsáveis por padronizar os tipos de violência descritos pelo denunciante.
Kênio também observou que durante a pandemia os casos ficaram mais acentuados. Com o isolamento social e grande parte da família presa no ambiente familiar, o estresse causado pelas novas dinâmicas de convívio acabaram refletindo nesse contato interpessoal das famílias com as pessoas idosas. Entre os gêneros, as mulheres são ainda mais propensas a sofrer algum tipo de violência familiar. “Isso acontece por vários motivos, o primeiro deles se dá pelas mulheres viverem mais, enquanto os homens tendem a morrer mais cedo. Tem também a questão do fato de simplesmente ser mulher. Quando é uma mulher idosa, ela tem ainda mais probabilidade de sofrer algum tipo de violência”, complementa.
Políticas públicas nacionais para os idosos
Assim como qualquer outro cidadão, os idosos precisam ter seus direitos respeitados e garantidos. O Estatuto do Idoso estabelece que essa parcela da sociedade goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, incluindo uma moradia que lhe assegure respeito e dignidade. No entanto, com o aumento da dependência na realização das tarefas do dia-a-dia, as violências, tanto físicas como psicológicas, podem acabar surgindo dentro do próprio seio familiar, sejam elas propositais ou não, por parte dos agressores. Violência física, psicológica, sexual, abandono, negligência, auto negligência e abuso financeiro são algumas das violências contra o idoso classificadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Mesmo com tantas classificações, não é simples identificar atos violentos praticados contra pessoas idosas, pois nem sempre elas deixam marcas físicas visíveis.
A promotora Flávia Felício, titular da 36ª Promotoria de Justiça de Natal, reforça que o Estatuto do idoso estabelece a obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público de assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação de seus direitos. “É dever de todos, enquanto família, Estado ou mesmo sociedade, assegurar aos idosos todas as oportunidades e facilidades para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”, explica a promotora. A 36ª Promotoria de Justiça do município de Natal atua nos crimes de menor potencial ofensivo, com penas de até dois anos.
Flávia Felício destaca que o Ministério Público pode ser a porta de entrada para a denúncia de crimes contra a pessoa idosa, seja na Promotoria Especializada, seja mediante denúncia anônima no canal da Ouvidoria do Ministério Público. “Não se deve calar diante da violação de pessoas idosas. Muitas vezes, essas pessoas são vítimas de ações ilícitas praticadas por pessoas da sua confiança, seja um cuidador ou alguém próximo, o que, sem dúvidas, dificulta e até mesmo impossibilita a busca por ajuda. Aproximar-se do idoso e perceber se há sinais físicos ou psicológicos de algum tipo de maus tratos, negligência ou abuso são medidas que auxiliam na descoberta de situações dessa violência. Havendo indícios de que o idoso está sendo violado de alguma forma, a orientação é buscar apoio, orientação, junto aos órgãos competentes, a fim de garantir a vida e a dignidade da vítima”, finaliza.
O Projeto de Lei 4.626/2020 propõe aumentar as penas dos crimes de abandono de incapaz e de maus-tratos, previstos no Código Penal. De acordo com os dados do Disque 100, a negligência consiste na violação de maior ocorrência no grupo de pessoas idosas, representando 41% dos registros em todo Brasil. No Rio Grande do Norte, ela é ainda mais predominante, sendo a causa de 77% das denúncias.
O Dia Mundial de Conscientização da Violência Contra a Pessoa Idosa, celebrado no dia 15 de junho, tem o objetivo de criar uma consciência mundial acerca da temática de proteção à vida do idoso, e sensibilizar a comunidade para o combate a este tipo de agressão. A data foi instituída em 2006, pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Rede Internacional de Prevenção à Violência à Pessoa Idosa.
Instituto do Envelhecer
Inaugurado em 2019, o Instituto do Envelhecer (IEN), foi criado no intuito de promover ações voltadas para a melhoria da qualidade de vida da pessoa idosa, dando suporte à atividade, ensino e pesquisa na UFRN. A assistente social Donália Cândida Nobre, vice-diretora do IEN, destaca a importância desse contato entre a instituição de ensino com as práticas voltadas para o público idoso.
Uma das muitas ações realizadas pelo IEN é voltada para a saúde dos servidores ativos da UFRN, englobando também idosos que residem no mesmo domicílio. “É importante trabalharmos com essas pessoas, principalmente aquelas que tiveram sequelas da covid-19 e que estão trabalhando”, explica a assistente social. As atividades, desenvolvidas como projeto de extensão, são realizadas em parceria com a Diretoria de Atenção à Saúde do Servidor (DAS/UFRN).
Neste ano, o Instituto abriu, pela primeira vez, campos de estágio para estudantes do curso de Serviço Social. A ideia, segundo Donália, é fazer com que os estudantes tenham esse contato com políticas públicas voltadas para os idosos, além de ter a possibilidade de discutir questões sociais enfrentadas por esse público. “Como assistente social, precisamos estar sempre possibilitando essas reflexões para os estudantes”, conclui.
Cursos de extensão voltados para promoção da educação inclusiva e colaborativa com a pessoa idosa também são ofertados pelo IEN. Um deles, que está em andamento, tem o objetivo de trazer à tona dois aspectos na formação de alunos e profissionais da área: a educação interprofissional inclusiva e a de não discriminação etária. Essa ação é realizada em cooperação com o Ministério Público do RN, representado pela Promotoria do Idoso e pelo Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Idosa do RN.
Fonte: Agecom/UFRN