O desenvolvimento da física quântica tem proporcionado um grande avanço tecnológico nos últimos anos. Este ramo da física, que estuda o comportamento das partículas presentes em diferentes tipos de materiais, como condutores e isolantes de eletricidade, é incentivado para que possamos compreender as propriedades dos materiais e as melhores condições de aplicação junto às novas tecnologias. Uma das descobertas promissoras foi batizada de “bumerangue quântico” e foi publicada em artigo da Physical Review X 12, da American Physical Society (APS), pelo professor Tommaso Macrì e pelo pesquisador Flávio Noronha (UFRN), junto a um grupo internacional de pesquisa.
O artigo Observation of the Quantum Boomerang Effect apresenta a experiência do grupo de cientistas com a chamada “localização de Anderson” (Anderson localization), onde foi observado que, após ser lançada em qualquer direção, a partícula retorna ao seu ponto de partida e lá permanece. Embora a Anderson localization seja uma teoria conhecida há mais de cinco décadas, esse efeito bumerangue só recentemente foi previsto teoricamente.
“Apesar do papel central desempenhado pela localização de Anderson na compreensão moderna da matéria condensada, esse efeito “bumerangue quântico”, uma característica essencial do estado localizado, foi apenas recentemente previsto teoricamente e não foi observado anteriormente. Relatamos a observação experimental e caracterização deste surpreendente fenômeno da mecânica quântica”, esclarece o artigo.
Segundo o pesquisador Flávio Noronha, a maioria das investigações teóricas sobre o efeito bumerangue considerou sistemas de uma única dimensão (uma linha reta possui uma única dimensão, um plano possui duas dimensões, e um cubo por exemplo possui três dimensões). “No artigo também foi considerada apenas uma dimensão. Investigar sistemas de duas ou três dimensões tende a ser mais difícil. Mas pode ser que nesses sistemas o efeito bumerangue tenha características diferentes. É necessário investigar isso melhor”, analisa Noronha.
O artigo prevê que, havendo certo tipo de interação simplificada entre bósons, ocorreria o enfraquecimento do efeito bumerangue quântico: após realizar o retorno, a partícula pararia antes de chegar ao seu ponto inicial. O pesquisador afirma que estas questões permanecem: “Não sabemos o que ocorre com o efeito bumerangue na presença de outros tipos de interação entre partículas. Isso também precisa ser verificado através de mais estudos. Infelizmente é muito mais difícil realizar cálculos computacionais para verificar o comportamento das partículas na presença de desordem e interação simultaneamente”, lamenta.
Desordem
Explicando o que são as tais partículas quânticas, podemos estabelecer que as partículas que existem no universo podem ser classificadas em dois grupos, bósons e férmions, a depender de suas características. Exemplos de férmions incluem os prótons, os elétrons e diversos átomos. Outros átomos se comportam como bósons. Os fótons, que são as partículas relacionadas ao campo eletromagnético (inclusive a luz), são outro exemplo de bósons. Sabe aquela história de que “dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço”? Na física quântica dois férmions não podem ocupar o mesmo estado quântico. Já para os bósons não há essa restrição, pois vários bósons podem ocupar simultaneamente o mesmo estado.
“Certas interações envolvendo férmions podem fazê-los possuir propriedades muito diferentes dos férmions não interagentes. Dizemos que esses férmions interagentes são fortemente correlacionados. Exemplo disso é quando surge uma atração efetiva entre elétrons num material condutor, o que pode fazer com que em baixíssimas temperaturas cada par de elétrons se comporte como se fosse um bóson. Esses pares de elétrons podem percorrer o material sem experimentar nenhuma resistência elétrica, fenômeno esse que chamamos de supercondutividade. Já imaginou existirem materiais que conduzem eletricidade sem absolutamente nenhum desperdício de energia? Pois eles existem e são os super condutores, os quais já são utilizados em algumas tecnologias”, esclarece Noronha.
Outro fator que altera as propriedades dos materiais, além das interações, é a presença de desordem. Alguns materiais serão condutores se todos os seus átomos forem compostos pelo mesmo elemento químico e estiverem igualmente espaçados. Mas no mundo real os materiais costumam ter muitas impurezas (presença de outros elementos químicos) e defeitos nas posições dos átomos. Dizemos que esses materiais (ou sistemas de partículas) com impurezas ou defeitos são “desordenados”. A desordem pode levar a uma mudança drástica nas propriedades dos materiais. Um possível efeito da desordem é a localização de Anderson, que impede a condução das partículas ao longo do material. Durante a pesquisa na UFRN foram investigadas tanto a presença de interações de sistemas com férmions, que faz com que eles se tornem correlacionados, quanto a presença de desordem por meio de impurezas.
O primeiro artigo sobre o efeito bumerangue foi publicado por pesquisadores na França em 2019, e previa um comportamento atípico em partículas quânticas num sistema com localização de Anderson devido à desordem. “Os pesquisadores da França descobriram que ao lançar uma partícula com certa velocidade inicial nesse sistema, sua trajetória média seria semelhante à de um bumerangue: a partícula se afasta do ponto inicial, faz um retorno e para exatamente no ponto onde iniciou seu movimento”.
Esse comportamento quântico é bem diferente da trajetória para uma partícula clássica: ao se afastar do ponto inicial, a partícula clássica teria sua velocidade reduzida até parar, sem chegar a fazer um retorno em direção ao ponto de origem. “É necessário investir bastante tempo investigando melhor a influência das interações no efeito bumerangue. Um grande desafio é entender como acontece o movimento simultâneo dos vários elétrons num material desordenado. Compreender se há uma espécie de efeito bumerangue nesse sistema e quais seriam suas características pode ser fundamental para novas aplicações tecnológicas”.
Nessa pesquisa, os cientistas relataram a observação experimental do efeito bumerangue: usando gás e um par de redes ópticas com deslocamento de fase, não apenas confirmaram a dependência prevista do efeito bumerangue mas também elucidaram o papel crucial das simetrias de estado inicial. Os pesquisadores também destacaram o papel fundamental da localização, ao observarem que, quando o chute estocástico destrói a localização dinâmica, o efeito bumerangue quântico também desaparece.
Investimento em ciência
O professor Macrì e os seus estudos sobre simulação e metrologia quântica com átomos de Rydberg se destacaram ao receber um fundo de pesquisa no valor de R$ 1 milhão do Instituto Serrapilheira, através do Fundo de Apoio à Ciência, um incentivo financeiro que busca identificar e apoiar pesquisas de excelência de jovens cientistas. O Serrapilheira, que é uma instituição privada e sem fins lucrativos, de fomento à ciência no Brasil, busca incentivar uma cultura de pesquisa científica no país.
Macrì também é líder do grupo de pesquisa Quantum Simulation and Technology (Quantech) do Programa de Pós-Graduação em Física (PPgF), é professor do Departamento Física Teórica e Experimental (DFTE/UFRN) e também pesquisador do CNPq. Suas pesquisas promovem a simulação quântica para aplicações em tecnologias quânticas, investigando especialmente os sistemas de longo alcance, nos quais partículas interagem mesmo distantes umas das outras. Esses estudos podem mais tarde ser direcionados para aplicações em redes de comunicação quântica, giroscópios, relógios atômicos, sensores e computadores quânticos, por exemplo.
Fenômeno
Os professores Tommaso Macrì e Flávio Noronha (DFTE/UFRN), além dos pesquisadores Roshan Sajjad, Jeremy Tanlimco, Hector Mas, Alec Cao, Eber Nolasco-Martinez, Ethan Simmons, David M. Weld (Department of Physics, University of California, Estados Unidos) e Patrizia Vignolo (Institut de Physique de Nice, Université Côte d’Azur, França) assim descreveram o experimento:
“De acordo com um célebre resultado de 1958 (P. W. Anderson, Absence of Diffusion in Certain Random Lattices , Phys. Rev. 109 , 1492 (1958)) da condensed-matter physic, a desordem induz um comportamento isolante, um fenômeno conhecido como Anderson localization. Uma partícula em um sistema Anderson localization, se lançada em qualquer direção, deve, em média, retornar ao seu ponto de partida e ali permanecer. Apesar do papel central desempenhado pela Anderson localization na compreensão moderna da matéria condensada, esse efeito “bumerangue quântico”, uma característica essencial do estado localizado, foi apenas recentemente previsto teoricamente e não foi observado anteriormente. Relatamos a observação experimental e caracterização deste surpreendente fenômeno da mecânica quântica.
Em nossos experimentos, expomos um gás de átomos de lítio ultrafrios a um par de redes ópticas com deslocamento de fase para realizar um “quantum kicked rotor”, uma realização momentum-space da Anderson-localized matter. Seguindo a dinâmica do momentum, observamos a característica saída e retorno à origem que é a assinatura do efeito bumerangue. Uma caracterização detalhada revela a dependência do efeito bumerangue na simetria e localização em time-reversal: Observamos que a interrupção de qualquer uma dessas condições destrói a dinâmica do bumerangue.
Esses experimentos validam uma poderosa dynamical probe da natureza exclusivamente quântica de uma localized state, aplicável a uma classe geral de sistemas desordenados. Os resultados sugerem uma variedade de tópicos interessantes para exploração futura, incluindo fenômenos de bumerangue ajustáveis em sistemas de alta dimensão e interação e implicações para a dinâmica eletrônica ultrarrápida em sólidos desordenados”.
Fonte: Agecom/UFRN