Silenciosa e negligenciada, a toxoplasmose atinge cerca de 2 milhões de pessoas no mundo, sendo assintomática em até 90% dos casos. Além da contaminação direta pelo protozoário Toxoplasma gondii, ela pode ser transmitida da mãe para o bebê durante a gestação ou parto. No RN, cerca de 70% das crianças atingidas não manifestam sintomas, mas podem ter o seu desenvolvimento comprometido sem os cuidados adequados. Considerando esse cenário e a lacuna no tratamento para a toxoplasmose congênita, projeto do Núcleo de Pesquisa em Alimentos e Medicamentos (Nuplam/UFRN) foca na transformação farmacêutica e manual de comprimidos para toxoplasmose em adultos, a fim de torná-los apropriados ao público infantil, que precisam do formato em xarope para fazer a deglutição.
Atualmente, a iniciativa está concluindo a formulação dos medicamentos pirimetamina e ácido folínico, ministrados no tratamento da toxoplasmose, e já finalizou a formulação e estudo a base da sulfadiazina. O esperado é que as pesquisas sejam publicadas e, posteriormente, encaminhadas ao Ministério da Saúde para servir como base ao protocolo de manipulação farmacêutica das substâncias. “O que a gente percebeu é que cada farmácia manipula com um veículo diferente, ou seja, uma base diferente que tem prazos de validade que variam de sete até 90 dias. Então, a gente precisa garantir que o medicamento esteja adequado e íntegro durante o tempo de uso”, adverte Lourena Mafra, vice-diretora do Nuplam e coordenadora da pesquisa.
Ela conta que a ideia do estudo surgiu durante seu trabalho como preceptora docente e coordenadora na residência multiprofissional em farmácia, realizada no Hospital Universitário Ana Bezerra (HUAB/UFRN). “Nesse meu tempo lá, percebi que ao longo dos anos o número de pacientes com toxoplasmose aumentava, principalmente, os bebês acometidos por toxoplasmose congênita. Então, a mãe terminava transferindo o parasita para o feto e quando o bebê nascia, chegava com o diagnóstico de positivo ou de provável. Como não existe medicamento para criança, é utilizada a associação dos três medicamentos também utilizados no tratamento de adultos: sulfadiazina, pirimetamina e ácido folínico”, esclarece.
Diante do cenário de toxoplasmose congênita em crianças no HUAB, a manipulação farmacêutica foi possibilitada por meio de uma parceria com o professor Idivaldo Micali, que tem uma farmácia de manipulação em Natal. O processo é comum na farmácia hospitalar, mas Lourena Mafra observa que o tratamento com os medicamentos transformados é complexo, ocorre de formas diferentes e tem sua posologia (dosagem) alterada conforme o crescimento da criança. “Então é um tratamento que precisa de um acompanhamento para que possa ser feito de forma adequada”, ressalta.
A docente assegura que, ainda durante o trabalho no HUAB, a transformação dos medicamentos em xarope abarcou tamanho número de demandas que foi preciso levar o trabalho para uma farmácia de manipulação, que devido à enorme demanda não conseguiu suprir a necessidade dos pacientes. Isso levou ao retorno da oferta dos medicamentos em comprimido, mas as perguntas: Será que isso é adequado? O ideal não é fazer a forma farmacêutica já pronta para a mãe administrar no bebê? permaneceram. A resposta veio com o projeto do Nuplam, que pensa tanto nas mães que precisam administrar os medicamentos nos seus filhos quanto nas consequências do uso inadequado dessas substâncias.
Manipulação complexa e a subnotificação
Uma vez lançado, o projeto vem enfrentando o desafio de trabalhar com a manipulação de três medicamentos com fórmulas e posologias distintas. Aliado a isso, existe o alto índice de subnotificação da toxoplasmose congênita, responsável por impedir o acesso atualizado aos dados epidemiológicos da doença. “Essa questão da subnotificação, onde a gente sabe que tem casos que não são tratados, é bastante grave e infelizmente não temos condições de fazer a parte de acompanhamento farmacêutico e auxiliar esses pacientes dentro da própria instituição (NUPLAM)”, aponta Lourena.
Em razão da ausência dos registros, também não há um grupo populacional específico e identificado com mais casos de toxoplasmose. Por outro lado, em uma escala geral, os países tropicais e em desenvolvimento são mais vulneráveis à infecção. Lourena explica que o último estudo do RN em torno da doença foi realizado em 2007 e publicado em 2009, apontando a soropositividade de 66,3% para a doença. “Aqui no estado o que a gente percebe é que os índices de toxoplasmose congênita continuam muito altos. Em conversa com o farmacêutico do HUAB, o mesmo relatou a permanência desse alto índice em Santa Cruz, mas é difícil compilar os dados das notificações”, observa.
Mesmo com as presentes limitações, o objetivo futuro é acompanhar os pacientes que foram diagnosticados no RN e orientá-los ao uso seguro dos medicamentos. A professora argumenta que o ideal seria desenvolver o xarope industrializado para as crianças, mas a subnotificação também é uma barreira nesse processo. Isso porque o público registrado não é grande o suficiente para despertar na indústria o interesse pela produção de medicamentos pediátricos para toxoplasmose. “Por isso que a gente termina desenvolvendo a adaptação ou transformação farmacêutica”, comenta.
Transmissão, riscos e tratamento
A toxoplasmose pode ser transmitida de três formas principais: ingestão de alimentos contaminados pelas fezes do gato – que apresentam os cistos do Toxoplasma gondii-, consumo de carnes mal cozidas e da gestante infectada para o feto. “A toxoplasmose, na grande maioria das vezes, é assintomática. A pessoa infectada não apresenta nenhuma condição clínica, sintoma ou sinal que diga que ela está doente. Então, o grande risco da toxoplasmose é em paciente gestante, porque ela pode transmitir para o feto, ou em paciente imunodeprimido, porque ele também pode desenvolver a neurotoxoplasmose (infecção do Sistema Nervoso Central [SNC] pelo parasita)”, alerta Lourena.
Quanto aos sintomas da toxoplasmose congênita, ocasionada pela transmissão vertical ou transplacentária do agente infeccioso, a docente sinaliza que os principais são microcefalia, calcificações cerebrais, deficiência mental e retinocoroidite, condição oftalmológica caracterizada pela destruição da retina. O grau de acometimento implica na carga de exposição da criança ao parasita da patologia, o que significa que ela pode nascer normal e aos poucos apresentar sintomas mais perceptíveis da toxoplasmose. Os problemas de visão não diagnosticados e tratados na infância, por exemplo, podem resultar no avanço e manifestação dos sintomas na vida adulta.
Além disso, a toxoplasmose é capaz de gerar o aborto fetal. Lourena constata, nesse sentido, a necessidade do tratamento dos bebês afetados pela doença, independente ou não da presença de sintomas, para que o parasita não se multiplique e cause problemas diagnosticados apenas na fase adulta. “Então o tratamento da toxoplasmose congênita é feito basicamente pela associação de dois antimicrobianos, que é a sulfadiazina e a pirimetamina, os quais agem sinergicamente bloqueando a via da síntese do folato (ácido fólico) pela inibição das enzimas de hipdropetorado sintase e hidrofolato redutase”, disse.
Ela explica que essas enzimas são essenciais para a sobrevivência do parasita e, por isso, o papel dos medicamentos é inibir suas produções e bloquear a replicação do agente invasor. Contudo, esse processo vem acompanhado de uma espécie de depressão da medula óssea e reduz a produção das células sanguíneas pela deficiência do ácido fólico. Para minimizar esse efeito adverso, causado pela pirimetamina, o ácido folínico é adicionado ao tratamento. Atualmente, o projeto finalizou a formulação, estudo e publicação sobre a sulfadiazina. Quanto ao ácido folínico e pirimetamina, os experimentos foram concluídos e estão em fase de compilação e escrita para o formato de artigo.
Fonte: Agecon/UFRN